Futebol: Histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias, Marco Rigobelli, org. 176 páginas. São Paulo: Draco, 2014.
Ficções fantásticas com temas esportivos não são comuns sequer nos mercados mais fortes do gênero, nem mesmo em outras artes além da literatura. Quadrinhos e cinema têm poucos exemplos, embora haja mais oferta de esportes fantásticos nos jogos eletrônicos, por motivos evidentes. Mas é curioso que exista tão pouco na literatura de ficção fantástica, quando é patente que é nela que o pioneirismo é geralmente praticado em todos os temas.
No Brasil, até o final do século passado, só existia uma única antologia de contos fantásticos sobre esportes, o livro Outras copas, outros mundos, organizado por Marcello Simão Branco e publicado pela editora-fã Ano-Luz em 1998. Mais que uma seleta de contos esportivos, esse livro propunha que todos os contos tratassem especificamente de futebol, o esporte mais apreciado pelos brasileiros que, curiosamente, não tinha nenhum texto no gênero, nem aqui nem em qualquer outra parte do mundo. A experiência foi muito bem-sucedida, e dela emergiu ainda o importante projeto Intempol de Octávio Aragão, derivado de um dos textos publicados ali. Mas foi um péssimo agouro para o desempenho do esporte: naquele ano, o Brasil perdeu o Copa do Mundo na França num jogo algo vexatório contra a poderosa seleção francesa comandada por Zinedine Zidane, com os craques Ronaldo Fenômeno em pânico no campo, e Edmundo no banco.
Talvez motivada pela nova edição brasileira da Copa do Mundo, a editora-fã paulista Draco decidiu retomar a ideia e apresentou em 2014 uma remontagem da antologia de 1998 sob o título Futebol: Histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias, organizada por Marco Rigobelli, republicando alguns dos textos vistos naquela, somados a inéditos, num total de dez contos, incluindo um do próprio organizador.
Dos autores republicados, Gerson Lodi-Ribeiro e Carlos Orsi comparecem respectivamente com "Pátria de chuteiras" e "Sob o signo de Xoth", justamente os textos presentes na antologia de 1998. O primeiro narra a final de uma copa do mundo na realidade alternativa favorita do autor, na qual a república de Palmares, treinada por um ex-craque da seleção brasileira, disputa com o Brasil não apenas aquele campeonato, mas a hegemonia do esporte. Já o excelente texto de Orsi envereda pelo horror, política e corrupção na fictícia cidade de Açaraí. Fábio Fernandes, que também participou da antologia de 1998, aparece com o inédito "2010: O ano em que faremos contrato", um texto curto na forma de uma entrevista com um boleiro que participou de uma partida entre atletas terrestres e alienígenas na qual o que realmente estava em jogo era o intercâmbio de tecnologia. Esse conto acabou sendo profético, pois a seleção terrestre levou o sonoro chocolate de treze a zero. Voltaremos a isso mais adiante.
Os demais autores comparecem com contos inéditos. Em "Boost", de Vinicius Lisboa, o futebol do futuro é praticado por atletas com reforço químico e o esporte se torna uma arena de violência explícita e morte, enquanto que em "O último grande craque", de Marcel Breton, são as próteses que desequilibram o espetáculo. Ambos os textos replicam o formato de entrevista visto no conto de Fernandes, o que torna a leitura um tanto enfadonha pela redundância da forma.
"Jogo puro", de Diego Matioli, também começa com uma entrevista, mas ela só dura alguns parágrafos, para depois adotar uma narrativa mais tradicional, em terceira pessoa. O conto tem laivos apocalípticos na medida que acontece após o arrebatamento bíblico, além da presença de demônios vivendo em meio à humanidade. Também aparecem aqui alguns tipos de "melhorias" nos atletas, desta vez mais para superpoderes mutantes, mas o autor tem o mérito de escapar muito bem das armadilhas narrativas criadas pelos contos anteriores.
"O último gol de Tião Canhoto", de Fabio Baptista, narra a história de um insuspeito craque do futebol varzeano que só atingia o estado de excelência quando sua amada Ritinha estava na torcida, uma mulher descrita como a mais feia do mundo. O conto não é ruim, mas a crueldade com que o autor trata da aparência da mulher cria tal constrangimento no leitor que eu não me surpreenderia se as leitoras protestassem fortemente contra ele. Fica aqui o meu protesto pessoal.
Sid Castro traz um sopro de ar fresco nesta sequência de histórias pesadas com o despretensioso "O rei do futebol". Não se trata do Pelé, mas de Arthur Friedenreich, que atuou no início da história do esporte no país, sendo o primeiro a atingir a marca dos mil gols convertidos na carreira. Outro diferencial do conto é a forma, apresentado como se fosse um jogo, com preliminar, primeiro tempo, intervalo, segundo tempo e pós-jogo no vestiário. O conto tem uma ambientação steampunk e traz até algumas referências históricas muito bem-vindas para os fãs do esporte. Não sei se são verdades, mas se não forem, deveriam ser.
O melhor texto da antologia é "O último jogo", de Rodrigo Van Kampen, conhecido editor da extinta revista Trasgo. Uma pérola rara da ficção fantástica brasileira, na linha do realismo fantástico latino americano. Conta a história de um grupo de meninos que amam jogar bola no campinho da vila, que nem é um campo de verdade, pois tem árvores pelo meio e um formato desengonçado mas, para eles, é exatamente como um grande estádio. Ali eles se divertem fantasiando campeonatos nacionais e internacionais, mas a coisa fica mesmo séria quando, numa certa manhã, surge no campinho uma árvore antiga e enorme, e dela saem assustadores bichos-papões que desafiam os garotos para uma partida decisiva: se os meninos vencerem, eles vão embora mas, se perderem, serão devorados ali mesmo. Maravilhamento poderoso para encher de lágrimas os olhos de quem um dia fantasiou ser um craque da bola num campinho de terra.
Fecha a seleção o texto "Nos gramados em cinzas da arena do abismo", de autoria do próprio organizador, Marco Rigobelli. Conta a história de um jogador que deve o sucesso de sua carreira a um pacto com o diabo. Mas, antes do fim do acordo, ele é convocado pelo cão para uma partida nas profundezas do inferno, com a promessa de, caso vença, ter sua alma libertada do contrato de perdição eterna. A ideia geral não é muito diferente da do conto anterior, mas não repete nem a ambientação, nem o estilo, nem o maravilhamento. Num erro de revisão, o autor chega a trocar o nome do protagonista.
Publicada em meio a euforia de um tempo em que tudo parecia dar certo no Brasil, esta antologia acabou, mais uma vez, por chancelar o fracasso da seleção brasileira, desta vez com o vergonhoso sete a um contra a Alemanha na semifinal. Mas o que mais perturba é o deliberado apagamento da antologia de 1998, da qual o organizador até emprestou contos mas não se dignou a sequer citar no prefácio, sinal claro da desagregação pelo qual o fandom passou e ainda passa ao longo deste século. Não custava reconhecer o pioneirismo de Outras copas, outros mundos, e isso acrescentaria dignidade ao trabalho. Sem isso, tornou-se uma antologia oportunista, esquecida em meio aos fracassos do futebol brasileiro.
Mas é sempre melhor olhar pelo ângulo favorável: valeu pelos bons textos publicados e por acrescentar mais alguns contos ao árido ambiente da fc&f esportiva nacional.
Sid Castro traz um sopro de ar fresco nesta sequência de histórias pesadas com o despretensioso "O rei do futebol". Não se trata do Pelé, mas de Arthur Friedenreich, que atuou no início da história do esporte no país, sendo o primeiro a atingir a marca dos mil gols convertidos na carreira. Outro diferencial do conto é a forma, apresentado como se fosse um jogo, com preliminar, primeiro tempo, intervalo, segundo tempo e pós-jogo no vestiário. O conto tem uma ambientação steampunk e traz até algumas referências históricas muito bem-vindas para os fãs do esporte. Não sei se são verdades, mas se não forem, deveriam ser.
O melhor texto da antologia é "O último jogo", de Rodrigo Van Kampen, conhecido editor da extinta revista Trasgo. Uma pérola rara da ficção fantástica brasileira, na linha do realismo fantástico latino americano. Conta a história de um grupo de meninos que amam jogar bola no campinho da vila, que nem é um campo de verdade, pois tem árvores pelo meio e um formato desengonçado mas, para eles, é exatamente como um grande estádio. Ali eles se divertem fantasiando campeonatos nacionais e internacionais, mas a coisa fica mesmo séria quando, numa certa manhã, surge no campinho uma árvore antiga e enorme, e dela saem assustadores bichos-papões que desafiam os garotos para uma partida decisiva: se os meninos vencerem, eles vão embora mas, se perderem, serão devorados ali mesmo. Maravilhamento poderoso para encher de lágrimas os olhos de quem um dia fantasiou ser um craque da bola num campinho de terra.
Fecha a seleção o texto "Nos gramados em cinzas da arena do abismo", de autoria do próprio organizador, Marco Rigobelli. Conta a história de um jogador que deve o sucesso de sua carreira a um pacto com o diabo. Mas, antes do fim do acordo, ele é convocado pelo cão para uma partida nas profundezas do inferno, com a promessa de, caso vença, ter sua alma libertada do contrato de perdição eterna. A ideia geral não é muito diferente da do conto anterior, mas não repete nem a ambientação, nem o estilo, nem o maravilhamento. Num erro de revisão, o autor chega a trocar o nome do protagonista.
Publicada em meio a euforia de um tempo em que tudo parecia dar certo no Brasil, esta antologia acabou, mais uma vez, por chancelar o fracasso da seleção brasileira, desta vez com o vergonhoso sete a um contra a Alemanha na semifinal. Mas o que mais perturba é o deliberado apagamento da antologia de 1998, da qual o organizador até emprestou contos mas não se dignou a sequer citar no prefácio, sinal claro da desagregação pelo qual o fandom passou e ainda passa ao longo deste século. Não custava reconhecer o pioneirismo de Outras copas, outros mundos, e isso acrescentaria dignidade ao trabalho. Sem isso, tornou-se uma antologia oportunista, esquecida em meio aos fracassos do futebol brasileiro.
Mas é sempre melhor olhar pelo ângulo favorável: valeu pelos bons textos publicados e por acrescentar mais alguns contos ao árido ambiente da fc&f esportiva nacional.
— Cesar Silva
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