quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Conto de Fadas

 



Conto de Fadas (Fairy Tale), Stephen King. Tradução: Regiane Winarski. Capa: Will Staehle. Ilustrações internas: Gabriel Rodriguez (capítulos ímpares e epílogo) e Nicolas Delort (capítulos pares). 623 páginas. Rio de Janeiro: Suma, 2022.

 

Talvez este seja o primeiro livro de Stephen King que eu comprei e li quase ao mesmo tempo do seu lançamento nos EUA. Isso porque a Suma, selo da Editora Schwarcz, foi mais rápida do que o habitual e o lançou no Brasil praticamente junto com o lançamento norte-americano. Outra curiosidade, que também talvez não interesse a você, leitor dessa resenha, é que esse foi o último livro que eu comprei na finada Livraria Cultura, em sua sede da capital paulista, duas semanas antes de sua falência. E por acaso, pois o livro, de forma estranha, estava esquecido num canto numa seção de livros usados da livraria, e com a metade do seu verdadeiro preço de capa.

Mas eu compraria o livro pelo valor que fosse. Afinal, é de Stephen King, um dos meus autores favoritos e do qual acompanho praticamente toda a sua carreira, desde meados dos anos 1970. E não preciso dizer que, claro, gostei demais da leitura, como pretendo comentar a seguir.

Conto de Fadas não é uma história de horror tradicional, de cunho mais sobrenatural, como na primeira fase de sua carreira, ou no estilo dark fantasy, que o tem caracterizado desde, pelos menos, o fim dos anos 1990. Contudo, o sobrenatural é explorado da perspectiva da magia. Sim, é um romance mais próximo de ser identificado com o gênero fantasia, embora de uma forma bem peculiar em se tratando de King.

Após a morte súbita e violenta da mãe, a vida do adolescente Charles Reade entra em crise. Não apenas pelo fato óbvio da perda, mas porque o pai se torna um alcoólatra. Charles meio que se perde, cometendo várias pequenas maldades, ao lado de um amigo de infância, de caráter bem questionável. Como, por exemplo, roubar as muletas de um idoso, deixando-o sem ter como andar. Em desespero pelo pai estar desempregado e cheio de dívidas, Charles faz uma promessa pessoal “ao seu Deus”, de que se ele se redimisse, seu pai reencontraria um rumo na vida.

Então, de forma fortuita, certo dia Charles ouve os latidos de uma velha cadela, ao passar pela casa mais estranha da pequena cidade de Sycamore, em Illinois, e ao pular o portão, vê que o dono, o solitário Sr. Bowditch caíra da escada e quebrara a perna. Charles o socorre e, conforme os dias passam, não só visita o ancião no hospital, como se envolve cada vez mais com ele, passando a ser o seu cuidador, depois do seu retorno à casa. Ao mesmo tempo seu pai faz terapia nos Alcóolicos Anônimos – graças à ajuda de um amigo –, arruma um emprego e, um pouco depois, abre seu próprio negócio. Ao que parece, o garoto Charles havia realizado sua promessa ao cuidar de Bowditch e se afeiçoar intensamente à Radar, a pastora alemã dele. Mas a verdadeira virada em sua vida ocorre quando ele descobre a fonte da boa vida de Bowditch: um cofre lotado com pequenas bolas de ouro. De onde teriam vindo?

Bowditch hesita em contar, e só o faz por meio de uma gravação, pouco antes de sofrer um ataque cardíaco e morrer. Mas Charles já desconfiava de onde vinham, pois nos fundos da casa havia um barracão com barulhos estranhos. Ele resolve investigar e descobre a entrada de um outro mundo. Do barracão se desce uma longa escada em espiral até chegar a um lugar com estrelas no céu e duas luas. Fascinado e assustado, Charles vai lá uma vez e resolve ocultar o segredo, mas por causa da Radar decide voltar para tentar salvá-la de suas muitas doenças que poderiam levá-la à morte. Aqui é interessante notar que King usa do recurso tradicional da fantasia de portas ou passagens que se escondem em ambientes familiares. O próprio autor já havia usado esse recurso antes – numa história de ficção científica – no seu monumental Novembro de 1963, quando o protagonista descobre uma porta numa lanchonete que o leva de volta aos anos 1960, em meio ao contexto que levou ao assassinato do presidente John Kennedy.

Charles e Radar, então, adentram no mundo chamado de Empis. Um reino movido por magia e não tecnologia e habitado por pessoas e animais fantásticos. Mas Empis é um mundo danado. A vegetação é rala e tomada por pragas, os animais são deficientes ou de tamanho exagerado, e a maioria das pessoas têm a pele cinzenta e deformações horríveis pelo corpo. Mas Charles conhece algumas pessoas adoráveis, como Dora, a consertadora de sapatos, e membros de uma antiga família real que foi destronada. Ele quer apenas cumprir sua missão e encontrar o relógio do sol, que vai permitir que Radar não só seja curada, mas rejuvenescida, seguindo a orientação do velho Bowditch que, ao passar por ele, viveu mais de um século, além de ter conseguido sua fortuna em ouro. Mas no caminho, a jornada de Charles vai se tornando muito perigosa, pois ele descobre que as noites são tomadas por temíveis lobos e os chamados soldados noturnos, zumbis que emitem raios de suas armas, entre outras monstruosidades deste mundo amaldiçoado.

Charles cumpre sua missão original, mas ao ser aprisionado na cidade real de Lilimar irá viver sua verdadeira aventura por sua vida e a própria segurança de nosso mundo, já que ele descobre, em meio a torturas e prisão num calabouço há centenas de metros abaixo da superfície, que o que causou o Mal a Empis foi a traição de Elder, o filho mais novo da família real de Gallien, após se aliar com o demônio que habita o Poço Profundo, que lhe concedeu poderes que o tornaram o novo rei, nem que com isso, matasse a maior parte da nobreza e levasse mortes e destruição a um mundo antes belo e próspero.

Como o leitor já deve ter notado, estamos diante de um enredo de conto de fadas, subgênero da fantasia, que trabalha certas características, como a jornada de um herói improvável, um reino em desgraça, seres míticos, poderes sobrenaturais e muita magia. King trabalha todos esses elementos com muita destreza, utilizando várias referências sobre histórias parecidas, e apresentando ao longo da narrativa várias associações com clássicos de fundo infantil, como João e o Pé de Feijão (1807), de Benjamin Tabart, e adultos, como Algo Sinistro Vem Por Aí (1962), de Ray Bradbury, além da vinculação com os Antigos de H.P. Lovecraft, na figura de Gogmagog, o monstro supremo que estaria por trás do mal liberado sobre Empis.

Nesse sentido, e pela própria autoconsciência do protagonista, King faz um experimento literário que poderia chamar de metaficcional. Ou seja, uma ficção própria, mas que dialoga e se referencia com outras, mas sem deixar de ter uma voz própria, dada a sua intensidade e habilidade narrativa. E este diálogo também ocorre por meio da problematização do próprio conteúdo do subgênero, ao recolocá-lo numa vertente mais horrorífica, como originalmente as histórias deste filão se desenvolviam, até serem modificadas para serem lidas por crianças num ambiente familiar, um movimento de revisionismo literário que tomou a cena no final do século XIX.

A jornada de Charles Reade, mesmo contada de forma retrospectiva e em primeira pessoa, não faz com que deixemos de sentir aflição e temor por seu destino e de Radar. A cada página virada, ambos se veem em situações de perigo e, ao mesmo tempo, estranhos encantamentos. No fundo é uma história de expiação, mais que de redenção, num adolescente que foi obrigado a amadurecer mais rápido do que deveria, em virtude dos infortúnios súbitos de sua vida.

Conto de Fadas é uma das histórias mais à vontade de King. Mas isso não a torna menos impactante. O sentimento é talvez de emoção, mais pela aventura do que pelo terror, embora, como dito, a trama seja norteada pelo malefício causado ao mundo de Empis. Que, afinal, o que seria? Um mundo paralelo ao nosso? Um portal que leva a outro ponto do Universo? King não explora muito essas premissas, se concentrando mais na construção do mundo em si e suas próprias regras e valores.

Em suma, esta é a história de conto de fadas particular de King, e em que ele trabalha e explora vários dos conceitos do subgênero. Mas que, sobretudo, proporciona ao leitor, uma das experiências de entretenimento mais marcantes de redenção e arrebatamento. Que livro estranho e fascinante.

Marcello Simão Branco


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