Conto
de Fadas (Fairy Tale), Stephen King. Tradução: Regiane
Winarski. Capa: Will Staehle. Ilustrações internas: Gabriel Rodriguez
(capítulos ímpares e epílogo) e Nicolas Delort (capítulos pares). 623 páginas.
Rio de Janeiro: Suma, 2022.
Talvez este seja o
primeiro livro de Stephen King que eu comprei e li quase ao mesmo tempo do seu
lançamento nos EUA. Isso porque a Suma, selo da Editora Schwarcz, foi mais
rápida do que o habitual e o lançou no Brasil praticamente junto com o
lançamento norte-americano. Outra curiosidade, que também talvez não interesse
a você, leitor dessa resenha, é que esse foi o último livro que eu comprei na
finada Livraria Cultura, em sua sede da capital paulista, duas semanas antes de
sua falência. E por acaso, pois o livro, de forma estranha, estava esquecido num
canto numa seção de livros usados da livraria, e com a metade do seu verdadeiro
preço de capa.
Mas eu compraria o livro
pelo valor que fosse. Afinal, é de Stephen King, um dos meus autores favoritos
e do qual acompanho praticamente toda a sua carreira, desde meados dos anos
1970. E não preciso dizer que, claro, gostei demais da leitura, como pretendo
comentar a seguir.
Conto
de Fadas não é uma história de horror tradicional, de cunho
mais sobrenatural, como na primeira fase de sua carreira, ou no estilo dark fantasy, que o tem caracterizado
desde, pelos menos, o fim dos anos 1990. Contudo, o sobrenatural é explorado
da perspectiva da magia. Sim, é um romance mais próximo de ser identificado com
o gênero fantasia, embora de uma forma bem peculiar em se tratando de King.
Após a morte súbita e
violenta da mãe, a vida do adolescente Charles Reade entra em crise. Não apenas
pelo fato óbvio da perda, mas porque o pai se torna um alcoólatra. Charles meio
que se perde, cometendo várias pequenas maldades, ao lado de um amigo de
infância, de caráter bem questionável. Como, por exemplo, roubar as muletas de
um idoso, deixando-o sem ter como andar. Em desespero pelo pai estar
desempregado e cheio de dívidas, Charles faz uma promessa pessoal “ao seu
Deus”, de que se ele se redimisse, seu pai reencontraria um rumo na vida.
Então, de forma fortuita,
certo dia Charles ouve os latidos de uma velha cadela, ao passar pela casa mais
estranha da pequena cidade de Sycamore, em Illinois, e ao pular o portão, vê
que o dono, o solitário Sr. Bowditch caíra da escada e quebrara a perna.
Charles o socorre e, conforme os dias passam, não só visita o ancião no
hospital, como se envolve cada vez mais com ele, passando a ser o seu cuidador,
depois do seu retorno à casa. Ao mesmo tempo seu pai faz terapia nos Alcóolicos
Anônimos – graças à ajuda de um amigo –, arruma um emprego e, um pouco depois,
abre seu próprio negócio. Ao que parece, o garoto Charles havia realizado sua
promessa ao cuidar de Bowditch e se afeiçoar intensamente à Radar, a pastora
alemã dele. Mas a verdadeira virada em sua vida ocorre quando ele descobre a
fonte da boa vida de Bowditch: um cofre lotado com pequenas bolas de ouro. De
onde teriam vindo?
Bowditch hesita em contar,
e só o faz por meio de uma gravação, pouco antes de sofrer um ataque cardíaco e
morrer. Mas Charles já desconfiava de onde vinham, pois nos fundos da casa
havia um barracão com barulhos estranhos. Ele resolve investigar e descobre a
entrada de um outro mundo. Do barracão se desce uma longa escada em espiral até
chegar a um lugar com estrelas no céu e duas luas. Fascinado e assustado,
Charles vai lá uma vez e resolve ocultar o segredo, mas por causa da Radar
decide voltar para tentar salvá-la de suas muitas doenças que poderiam levá-la
à morte. Aqui é interessante notar que King usa do recurso tradicional da
fantasia de portas ou passagens que se escondem em ambientes familiares. O
próprio autor já havia usado esse recurso antes – numa história de ficção
científica – no seu monumental Novembro
de 1963, quando o protagonista descobre uma porta numa lanchonete que o
leva de volta aos anos 1960, em meio ao contexto que levou ao assassinato do
presidente John Kennedy.
Charles e Radar, então,
adentram no mundo chamado de Empis. Um reino movido por magia e não tecnologia
e habitado por pessoas e animais fantásticos. Mas Empis é um mundo danado. A
vegetação é rala e tomada por pragas, os animais são deficientes ou de tamanho
exagerado, e a maioria das pessoas têm a pele cinzenta e deformações horríveis
pelo corpo. Mas Charles conhece algumas pessoas adoráveis, como Dora, a
consertadora de sapatos, e membros de uma antiga família real que foi
destronada. Ele quer apenas cumprir sua missão e encontrar o relógio do sol,
que vai permitir que Radar não só seja curada, mas rejuvenescida, seguindo a
orientação do velho Bowditch que, ao passar por ele, viveu mais de um século,
além de ter conseguido sua fortuna em ouro. Mas no caminho, a jornada de
Charles vai se tornando muito perigosa, pois ele descobre que as noites são
tomadas por temíveis lobos e os chamados soldados noturnos, zumbis que emitem
raios de suas armas, entre outras monstruosidades deste mundo amaldiçoado.
Charles cumpre sua missão
original, mas ao ser aprisionado na cidade real de Lilimar irá viver sua
verdadeira aventura por sua vida e a própria segurança de nosso mundo, já que
ele descobre, em meio a torturas e prisão num calabouço há centenas de metros
abaixo da superfície, que o que causou o Mal a Empis foi a traição de Elder, o
filho mais novo da família real de Gallien, após se aliar com o demônio que
habita o Poço Profundo, que lhe concedeu poderes que o tornaram o novo rei, nem
que com isso, matasse a maior parte da nobreza e levasse mortes e destruição a
um mundo antes belo e próspero.
Como o leitor já deve ter
notado, estamos diante de um enredo de conto de fadas, subgênero da fantasia,
que trabalha certas características, como a jornada de um herói improvável, um
reino em desgraça, seres míticos, poderes sobrenaturais e muita magia. King
trabalha todos esses elementos com muita destreza, utilizando várias
referências sobre histórias parecidas, e apresentando ao longo da narrativa
várias associações com clássicos de fundo infantil, como João e o Pé de Feijão (1807), de Benjamin Tabart, e adultos, como Algo Sinistro Vem Por Aí (1962), de Ray
Bradbury, além da vinculação com os Antigos de H.P. Lovecraft, na figura de
Gogmagog, o monstro supremo que estaria por trás do mal liberado sobre Empis.
Nesse sentido, e pela
própria autoconsciência do protagonista, King faz um experimento literário que
poderia chamar de metaficcional. Ou seja, uma ficção própria, mas que dialoga e
se referencia com outras, mas sem deixar de ter uma voz própria, dada a sua intensidade
e habilidade narrativa. E este diálogo também ocorre por meio da
problematização do próprio conteúdo do subgênero, ao recolocá-lo numa vertente
mais horrorífica, como originalmente as histórias deste filão se desenvolviam,
até serem modificadas para serem lidas por crianças num ambiente familiar, um
movimento de revisionismo literário que tomou a cena no final do século XIX.
A jornada de Charles
Reade, mesmo contada de forma retrospectiva e em primeira pessoa, não faz com
que deixemos de sentir aflição e temor por seu destino e de Radar. A cada
página virada, ambos se veem em situações de perigo e, ao mesmo tempo,
estranhos encantamentos. No fundo é uma história de expiação, mais que de redenção,
num adolescente que foi obrigado a amadurecer mais rápido do que deveria, em
virtude dos infortúnios súbitos de sua vida.
Conto
de Fadas é uma das histórias mais à vontade de King. Mas isso
não a torna menos impactante. O sentimento é talvez de emoção, mais pela
aventura do que pelo terror, embora, como dito, a trama seja norteada pelo malefício
causado ao mundo de Empis. Que, afinal, o que seria? Um mundo paralelo ao
nosso? Um portal que leva a outro ponto do Universo? King não explora muito
essas premissas, se concentrando mais na construção do mundo em si e suas próprias
regras e valores.
Em suma, esta é a
história de conto de fadas particular de King, e em que ele trabalha e explora
vários dos conceitos do subgênero. Mas que, sobretudo, proporciona ao leitor,
uma das experiências de entretenimento mais marcantes de redenção e
arrebatamento. Que livro estranho e fascinante.
—Marcello Simão Branco
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