Depois da Bomba (Dr. Bloodmoney, or How we Got Along after the Bomb), Philip K. Dick. Tradução: Eurico Fonseca. Capa: A. Pedro. 248 páginas. Lisboa: Edição Livros do Brasil, Coleção Argonauta, n. 309, sem data. Lançamento original em 1965.
O título do romance faz
referência ao dr. Bruno Bluthgeld, cientista alemão que trabalha para o Exército
dos EUA, e que se traduz como bloodmoney
em inglês. Pois é da ação e consequência desse personagem que a trama se
desenrola. No passado, presente e futuro. Isso porque em 1972, Bluthgeld esteve
à frente de um teste nuclear realizado na atmosfera que redundou num fracasso
catastrófico: uma enorme onda radioativa se espalhou pelos EUA, trazendo morte
e doenças a milhares de pessoas.
Em 1981 Bluthgeld procura
viver de forma anônima em São Francisco, com o rosto envolto numa máscara que
esconde cicatrizes e com uma paranoia cada vez mais doentia, por se corroer
pelo mal que causou e pelo qual é odiado pela maioria das pessoas. Ele procura
ajuda de um psicanalista, o Dr. Stokstill, que trabalha em frente a uma loja de
venda e conserto de aparelhos de TV. Onde está o afro-americano Stuart
McConchie e também, mais recentemente, Hoppy Harrington, um deficiente que não
tem braços e pernas – decorrente de sua mãe ter ingerido talidomida em sua
gravidez –, mas que é muito inteligente e se move com uma espécie de cadeira
mecânica altamente sofisticada.
Dick expõe, inicialmente,
o contexto por meio desses personagens para, de súbito, jogar o leitor no
holocausto nuclear. Sim, os EUA sofrem um ataque maciço, provavelmente da União
Soviética, e tem o país praticamente destruído. A cidade onde os três vivem é
destruída, e o restante da história se passa no que restou da Califórnia, onde
alguns agrupamentos urbanos sobreviveram de forma precária – sem eletricidade,
água, combustível e pouca comida –, e no interior foram criadas algumas
comunidades relativamente autônomas e isoladas umas das outras, com suas
próprias leis e formas de organização do poder.
Sete anos depois, em
1988, reencontramos Bluthgeld, Harrington e McConchie. O primeiro isolado num
sítio onde cria ovelhas, o segundo integrado à comunidade de West Marin e o
terceiro vivendo de bicos na pequena cidade de Berkeley. A eles somos
apresentados a outros personagens, não menos que memoráveis em sua estranheza e
humanidade como, por exemplo, a menina Edie Keller, que, devido a uma mutação
genética provocada pelo ataque nuclear, leva em seu ventre o feto do irmão Bill,
numa aliança siamesa, e no qual ele se comunica telepaticamente com ela, e com os
mortos; e o astronauta Walter Dangerfield, que vive numa nave em órbita
sozinho, já que no mesmo dia que partiria para Marte com sua esposa, foi
surpreendido pelo ataque nuclear. Após a morte dela, virou uma espécie de disc
jóquei, se comunicando com as comunidades na superfície por meio de
transmissões radiofônicas, onde veicula músicas e leituras de romances.
Mas este conjunto
singular de personagens se situa num contexto pós-apocalíptico, por vezes
crível e por vezes estranho, embora não inteiramente impossível. Isso porque
nesse novo mundo, os efeitos radioativos possibilitaram a emergência de
inteligência e capacidade de comunicação com os humanos por parte de cães e gatos,
além de ratos com inacreditáveis capacidades musicais e matemáticas. Além
disso, várias pessoas apresentam diferentes tipos de mutações e deficiências.
Contudo, os sobreviventes permaneceram na superfície da Terra, pelo menos após vários
viverem nos primeiros anos em espaços subterrâneos, como fez McConchie.
Dick procura mostrar não
propriamente uma tentativa de reconstrução social, mas sobretudo de
sobrevivência e adaptação a este novo mundo. Com isso, passa a centrar a
narrativa principalmente na comunidade de West Marin, para onde converge os
personagens já citados e outros que lá vivem. Mas nem todos realmente se
adaptam a esta nova realidade. Ao invés, e de forma gradativa, se deterioram
psicologicamente, tornando-se uma ameaça para os demais.
O dr. Bluthgeld é paranoico
e acha que vai ser descoberto e assassinado, principalmente por qualquer pessoa
nova que apareça em West Marin. Um professor chega a ser executado pela
comunidade quando se descobre que pretendia realmente matá-lo. Mas ele, de fato,
passa a imaginar que provocou o próprio holocausto e precisa provocar outro
para uma nova “purificação” da humanidade. Louco ou não, o fato é que seus
poderes imaginários passam a ter alguma espécie de realidade, quando
tempestades terríveis se abatem sobre West Marin. Isso provoca a reação de
Hoppy Harrington, um sujeito tão habilidoso manualmente, a despeito – ou por
causa – de sua debilidade, quanto ressentido pelas humilhações do passado. Com
crescente influência e megalomania imagina-se como a salvação de uma possível
nova danação.
Um sentimento que vai se
tornando cada vez mais nítido com o avançar da leitura é de irrealidade. Como
se fossemos colocados dentro de um sonho que, aparentemente, não é nosso, mas
que não conseguimos nos desvencilhar. Como bem apontou David Pringle, no livro Science Fiction: The 100 Best Novels (1985)
– que incluiu este romance de Dick –, é como se o leitor sonhasse o sonho de
outro, e dentro do seu contexto particular, se tornasse crível, mesmo com
situações cada vez mais inverossímeis.
Dick apresentou dois
títulos iniciais para Depois da Bomba:
In Earth´s Diurnal Course e A Terran Odissey, mas acabou por
concordar com a sugestão do prestigioso editor Donald Wollheim (1914-1990), numa
alusão ao filme de sucesso da época, Doutor
Fantástico (Dr. Strangelove or: How I
Learned to StopWorrying and Love the Bomb; 1964), de Stanley Kubrick. E
embora não seja intencional, pode ser visto como uma instigante especulação
sobre as consequências de um mundo devastado pela guerra insanamente desejada
pelo general louco interpretado por George C. Scott.
É a contribuição de Dick
ao tema do pós-apocalipse nuclear, talvez o mais abordado pela FC durante a
segunda metade do século XX, dado o grau de pesadelo próximo que se instaurou
não só nos EUA, mas, em todo o mundo. Dick o faz à sua maneira, expondo
principalmente, a desesperança e perturbação das pessoas, com efeitos também
físicos sobre muitos deles. Vários personagens são mesmo passíveis de certa
comiseração, num futuro que perdeu o sentido e, no qual, inclusive, o suicídio
não provoque mais tanta perplexidade ou repúdio.
Depois
da Bomba foi finalista do Prêmio Nebula em 1965, escrito no
período tematicamente mais maduro de Philip K. Dick, a década de 1960, ao lado
de outros romances tão misteriosos quanto fascinantes como, por exemplo, O Homem do Castelo Alto (The Man in the High Castle; 1962), Os Três Estigmas de Palmer Eldritch (The Three Stigmata of Palmer Eldritch;
1965), O Caçador de Androides (Do Androids Dream of Electric Sheep;
1968) e Ubik (Ubik; 1969). Ora, todos
eles foram publicados no Brasil, menos Depois
da Bomba – que recebeu, inclusive uma segunda edição em Portugal, pela
coleção Antecipação número 3, com o título de Os Sobreviventes –, numa ausência que chega a ser espantosa, dada
sua relevância para a FC e para o conjunto da obra do autor.
—Marcello Simão Branco
Muito boa resenha, bem aprofundada. Aqueles resumos que aparecem nos livros da Argonauta fazem uma ode sem fim as obras mas terminam em não explicar nada, isso quando não deixam um bom livro com a impressão de ser ruim. Outro livro de Dick que senti muita dificuldade em terminar foi " Os 3 estigmas de Palmer Eldrich" Gostaria muito de ler sua opinião sobre ele também. Acho que muita coisa ficou obscura, comecei a ler e parei duas vezes no meio.
ResponderExcluirOs 3 Estigmas de Palmer Eldrich é obscuro de propósito, pois faz parte da perturbação mental do personagem. É um livro fascinante, que merece ser relido.
ResponderExcluir