Espere agora pelo ano passado (Now wait for last year), foi publicado originalmente em 1966, estava inédito em língua portuguesa até 2018 quando e chegou ao Brasil pelo selo Suma da Editora Companhia das Letras, com tradução de Braulio Tavares, exemplo perfeito e acabado do estilo dickiano potencializado no formato de romance (no qual há mais de um núcleo narrativo).
A história está centrada no casal Sweetscent. Eric é um médico importante e Katherine, sua esposa, é executiva de uma grande corporação. O casal está passando por uma crise e a separação parece iminente. Nesse momento, Eric é convocado para tratar de um paciente muito especial em uma cidade distante, alguém que ele não pode se dar ao luxo de recusar: trata-se de ninguém menos que o presidente do planeta Terra, cujo corpo está entrando em falência geral depois de ter abusado de diversos tratamentos para prolongar sua vida por séculos. E o homem não pode morrer justamente quando precisa participar de uma importante negociação com a delegação de um planeta alienígena com o qual a Terra mantém uma guerra prolongada.
Com a ausência do futuro ex-marido, Katherine decide fazer aquilo que mais gosta, e investe numa droga nova que promete uma profunda experiência mística. A droga é de fato tudo o que prometia e mais um pouco: ela também permite viajar no tempo! O problema é que se trata de uma substância altamente viciante e tóxica: se ela não tomar outra dose em 24 horas, morrerá, e se continuar tomando, morrerá em uma semana da mesma forma. Desesperada, Katherine pede socorro a Eric que, para ajudá-la, compromete sua missão e torna-se acusado pela morte do presidente da Terra. Para salvar a ambos, a Terra e, talvez, o próprio casamento – o que parece impossível –, Eric terá que desvendar o que está por trás da estranha droga e se envolver no mortal jogo de espionagem interplanetária.
PKD coloca na mesa todas as suas cartas: paranoia, intrigas políticas, um crime a ser desvendado, drogas, a fragilidade da mente, a natureza da realidade e do tempo, e uma corrida alucinada em que cada segundo conta. As linhas de ação nem sempre se interligam, o que cria abismos narrativos que o leitor precisará cruzar para entender o que está acontecendo e, para isso, terá de construir as pontes, que podem mudar a interpretação da história de um leitor para outro, ou de um mesmo leitor em momentos diversos.
Muitos podem achar que isso seja fruto de um problema de tradução ou de edição, mas é improvável. Braulio Tavares é um grande tradutor e especialista no gênero, e a edição da Suma é caprichosa, com encadernação em capa dura e o requinte da pungente ilustração de Fabrizio Lenci. Não há espaço aqui para falhas. Resta, portanto, a alternativa de que a obra foi feita assim propositalmente pelo autor, e decerto que é isso mesmo. PKD tem diversos livros com características similares, alguns um pouco mais que outros, e este é um dos "mais".
Para aqueles que conseguem superar esta corrida de obstáculos, o resultado é gratificante, um exemplo do tipo de ficção que influenciou uma infinidade de autores que vieram depois, especialmente o movimento cyberpunk, com o qual PKD é muitas vezes identificado como precursor. Mesmo que fosse só por isso – há muitos outros motivos além desse – penso que vale a pena o esforço.
— Cesar Silva
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