Labirinto Digital, Mario Kuperman. Capa: Vivian Valli. 158 páginas. São Paulo: Marco Zero, 2004.
Desde a eleição de 2018 o
presidente que esteve à frente do Brasil até 2022 – e felizmente não foi
reeleito – e seus apoiadores fanáticos, difundem a tese de que as urnas
eletrônicas não são seguras, podem ser fraudadas. Mas apesar de divulgarem, vez
ou outra, depoimentos e vídeos atestando isso, provaram-se, elas sim todas fajutas.
Pura manipulação mentirosa destinada, no fundo, a desacreditar as urnas para o
manter no poder de forma ilegal e autoritária. Inauguradas em 1998, as urnas
eletrônicas brasileiras são comprovadamente seguras, aperfeiçoadas a cada
rodada eleitoral, e com repetidas e complexas verificações de sua
confiabilidade, por instituições do país e do exterior, fazendo da eleição brasileira
a mais confiável do mundo. Pois bem. Este romance, Labirinto Digital, aborda um tema semelhante.
No Brasil de um futuro
próximo, além das eleições para os cargos eletivos, os cidadãos votam nos
projetos de lei, sempre que são colocados em pauta no Congresso. Mas, na
verdade, o mecanismo chamado de televoto – acoplado e acionado nos televisores
– não confere aos eleitores o poder de decisão. É apenas uma consulta prévia,
para que os parlamentares tenham uma noção do que desejam. Depois de saberem o
resultado, deputados e senadores votam de forma definitiva, independentemente
do preferido pelos seus eleitores.
Diego Bonato, recém-formado
como agente da Polícia Federal, em Brasília, recebe sua primeira missão: ir até
Manaus investigar uma pista que indica que pode estar havendo fraude no
televoto da cidade. Mas ele meio que investiga às cegas, seguindo apenas uma
vaga desconfiança por parte de seu chefe. Com isso, o agente tateia entre
várias pessoas, como políticos, empresários, burocratas e até uma cartomante
que, de forma irônica, é que lhe dará um rumo mais racional para suas
investigações. Além destas figuras, ele conhece, de forma casual, uma linda
mulher chamada Eleonora, uma chilena que está ilegal no país e teme ser expulsa.
Ela faz parte de uma rede de contrabando de artesanatos, e também pelo
encantamento por sua beleza, Diego hesita em agir contra ela e, aos poucos,
devido aos rumos surpreendentes da investigação, passa a questionar também suas
próprias certezas sobre seu papel de policial e do sistema que jurou defender.
O agente conhece também
Laudelino Machado, um funcionário graduado da Central de Comunicações de Manaus,
órgão responsável pelo monitoramento do resultado do televoto na cidade, que
passa a auxiliá-lo nas investigações, procurando um possível sabotador dentro
do órgão. Mas o interesse de Machado é menos na lisura dos pleitos e mais no
próprio Diego, com suas tentativas de seduzi-lo. Aqui é interessante notar que
o romance apresenta um personagem homossexual e, mais importante, tal
orientação sexual não carrega, ao que parece, nenhuma carga de preconceito
social. Tanto é que mais adiante, Machado termina por se casar com um colega de
trabalho. A esta bem-vinda mudança de valores sociais, uma outra chama mais
atenção: as crianças vivem com os pais até os cinco anos. Depois são educadas
em internatos mantidos pelo Estado, e cortam os laços com seus genitores. Certamente,
este novo valor é, no mínimo, controverso e, mais surpreendente, adotado apenas
em alguns países. O Chile de Eleonora, por exemplo, mantém a família como o
núcleo central da criação e unidade social.
Para além dessas mudanças
sociológicas, o autor indica que o Brasil é um país economicamente desenvolvido,
ou próximo disso, embora os costumes políticos clientelistas ainda joguem um
peso importante nas relações políticas e sociais – como Diego Bonato irá
descobrir para sua decepção. Além disso, o Brasil ainda convive com uma
clivagem entre os interesses do Sul e do Norte do país, assunto que continua
contemporâneo, principalmente do ponto de vista das regiões menos afluentes, o
Norte e o Nordeste. Talvez para acentuar este aspecto, Kuperman situou a história
em Manaus. Uma capital do Amazonas futurista, com videofones e carros voadores,
mas onde o debate sobre a preservação da floresta continua sendo o tema mais
importante. Ainda mais porque se aproxima a votação de um projeto de lei que
pode levar a uma maior flexibilidade na exploração econômica do bioma. Pois
este é o outro ponto de coincidência do romance com a atualidade, após termos o
mesmo governo autoritário a incentivar o desmatamento criminoso, que atingiu
níveis recordes.
Em sua investigação, o
policial descobre a existência de uma organização secreta e, aparentemente
invisível, chamada ácrata. De inspiração anarquista, ela estaria por trás das
fraudes. Que de fato terminam por ser identificadas pelo namorado de Machado,
que atesta que os resultados do televoto não mudaram os resultados das
consultas, mas diminuíram as porcentagens da abstenção. Contudo, como irá
descobrir Diego, o responsável não será um ácatra, mas alguém identificado com
a causa de preservação da floresta.
Labirinto
Digital é um romance interessante e surpreendentemente convergente
com o momento atual, com boas ideias, mas mal desenvolvidas. Embora
apresentados como uma organização subversiva, no fim nem se sabe quem são os
ácatras, ou como realmente atuam. Fica muito vago. Já a chilena que se torna
namorada de Diego e abala suas certezas, fica indefinida na trama. Inclusive
com cenas que ficam soltas e sem continuidade posterior. E, por fim, após a
descoberta de que ocorre mesmo uma fraude, os parlamentares pressionados acabam
por aprovar uma lei que torna a consulta não só consultiva, mas deliberativa.
Ou seja, os eleitores passam a decidir diretamente sobre os projetos.
Isso é celebrado de forma
efusiva como um avanço democrático. De fato, em tese é, mas o autor não explora
as possíveis consequências danosas: falta de reflexão prévia à votação, com a
inevitável consequência plebiscitária de temas importantes decididos ´no calor
da hora´, risco enorme de os interesses dos eleitores individuais serem
influenciados ou corrompidos por grandes interesses corporativos e econômicos, além
do risco de manipulação das informações. Estas possíveis consequências dialogam
com as do conto “A Queda de Roma, Antes da Telenovela” (2011), do escritor português
Luís Filipe Silva – publicado na antologia Assembleia
Estelar: Histórias de Ficção Científica Política. No caso desta história,
se especula que o voto direto do eleitor através de um recurso tecnológico,
acabe banalizando a política, que ficaria inserida como se fosse mais um
programa de TV, facilitando assim a captura dos projetos de lei por grupos
interessados.
Todas essas medidas que
poderiam advir do avanço de uma democracia direta, são controladas, por assim
dizer, por mecanismos antimajoritários, da desgastada democracia liberal:
instituições que procuram controlar umas às outras e os partidos políticos, que
canalizam e representam diferentes ideias e demandas da sociedade. Em sentido
amplo, locus de vivências e disputas legitimas
dentro de um regime político aberto e mais transparente. Pois eles fazem uma
mediação, ainda que imperfeita, dos muitos interesses em jogo, em torno de
valores, projetos e postos de obtenção de poder.
Em suma, Labirinto Digital é um romance que surge
como promissor antes da leitura, mas se revela incompleto durante e depois
dela. Deveria ter desenvolvido melhor os personagens e suas motivações além de,
principalmente, as muitas e ricas possibilidades do contexto macro do enredo em
si, mostrado como confuso e superficial. E tal deficiência se acentua ao se
estar diante de um autor experiente que, até 2004, já havia publicado seis
outros livros de ficção, além do longa metragem Jogo da Vida e da Morte (1972), que dirigiu e dividiu o roteiro com
o prestigioso escritor Mário Prata, que versa sobre a história shakespereana de
Hamlet em tempos contemporâneos. Já nos seus 82 anos, Kuperman tem uma obra
que, podemos dizer, se situa entre temas de costumes burgueses e forte crítica
social de suas injustiças e contradições. Pena que, como já dito, esta verve
tenha sido mal trabalhada em seu romance de ficção científica.
—Marcello Simão Branco
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