sexta-feira, 21 de agosto de 2015

As Cidades Indizíveis, Fábio Fernandes e Nelson de Oliveira, orgs.


As Cidades Indizíveis, Fábio Fernandes & Nelson de Oliveira, orgs. 179 páginas. Capa de M. D. Amado. Rio de Janeiro: Llyr Editorial, 2011
 
Nos últimos anos têm-se verificado um aumento exponencial no número de antologias lançadas no mercado brasileiro de ficção científica e fantasia. A maioria delas composta por autores nacionais e de nomes pouco conhecidos mesmo dentro do fandom, na maioria novatos em início de carreira. Em 2011, uma das antologias que gerou mais expectativa foi As Cidades Indizíveis. Embora tenha reunido apenas autores nacionais, eles não são neófitos no ofício da escrita, ainda que assim possamos considerar parte deles em relação à fc&f.
O livro apresenta nove histórias sobre a cidade enquanto espaço de representação dos dilemas e esperanças da civilização humana. De fato, a cidade é um dos espaços clássicos de ação do drama humano, e no caso particular da fc&f, tem uma tradição muito sólida e antiga, que remonta a séculos antes desses gêneros terem a conformação que modernamente adquiriram. Em especial no campo da ficção científica, a cidade tem representado um espaço privilegiado dos dramas humanos, seja na forma de utopias, distopias, cenários futuristas de mundos alternativos ou hipertecnológicos. Das várias cidades clássicas, podemos citar a dicotomia ideológica entre Anarres e Urrás, de Os Despossuídos (1974), de Ursula K. Le Guin; ou as utopias tecnicista e humanista de Diaspar e Lys, de A Cidade e as Estrelas (1953), de Arthur C. Clarke (1917-2008). Isso sem falar nas hipertecnológicas, como a do filme Metrópolis (1927), ou do êxodo da vida urbana, como exposta no romance fix-up Cidade (1952), de Clifford D. Simak (1904-1988), entre muitos outros exemplos.
Contudo, a proposta dos organizadores Fernandes e Oliveira vão contra essa corrente mais exteriorizada da cidade enquanto palco de ação e transformação. Eles concebem a própria cidade como protagonista, chegando mesmo ao ponto de atribuir-lhe certa consciência, como se ela fosse um organismo vivo e como tal pudesse sentir e influir sobre seus habitantes humanos. Como eles reconhecem, a ideia não é, em si, nova. Os organizadores expõem a dívida criativa para com, entre outras, Macondo, de Gabriel García Márquez, a Buenos Aires de Cortázar (1914-1984), as cidades orientais visitadas por Marco Polo e repensadas por Calvino, ou ainda a cyberpunk Sprawl, de William Gibson.
Ao se ler a antologia, percebe-se que a proposta temática está bem amarrada, pois todas as histórias comungam dessa premissa. Algumas para expô-la de forma mais inteligível, como na movimentada noveleta “Harmonia”, de Roberto de Sousa Causo, que imagina um espaço urbano indígena numa dimensão paralela mais idílica e em contraposição à degradação dos valores humanos da cidade de São Paulo; outras, para construir uma reflexão mais política ou multicultural, como no criativo texto de abertura, “Galimatar”, de Fábio Fernandes, em que, num futuro não muito distante, a grande metrópole do mundo situa-se no Norte da África, e uma linguagem ritualizada através da gastronomia serve de guia para uma maior interação entre pessoas de culturas diferentes.
A estas duas histórias acima citadas que são, a meu ver, as melhores do livro, podemos somar ainda a de Ana Cristina Rodrigues, “O Longo Caminho de Volta”, conto interessante, mas que não se define entre uma proposta mais literária ou de aventura de fantasia. Em contraponto, há outro conjunto mais homogêneo e, diria, tematicamente mais ousado, que busca justamente explorar esta noção de cidades sencientes. Textos como “Céu do Nunca”, de Guilherme Kujawski; “O Dia em que Vesúvia Descobriu o Amor”, de Octavio Aragão; “Primeiro de Abril: Corpus Christi”, de Luiz Bras; “Mnemomáquina”, de Ronaldo Bressane, e a história radical e delirante que fecha o livro, “Cidade Vampira (Entidade Urbana)” de Fausto Fawcett. Há uma clara intenção pós-moderna de desconstruir uma narrativa mais convencional — e até mesmo da compreensão mais cartesiana que a acompanharia —, levando a uma reconstrução em bases mais fragmentadas, desconexas, sem necessário vinculo com o nexo racional. O problema é que esta é uma tarefa intelectual difícil e o risco de falha é grande, se o autor não souber concatenar bem a proposta criativa com o estilo narrativo. E é o que ocorre nos casos de Aragão e Kujawaski, este último com um texto quase ininteligível. Assim também se dá com o tom opressivo e o resultado mal-sucedido de Luís Henrique Pellanda no conto “O Coletivo”, em que é difícil terminar a leitura.
Se há uma proposta temática e uma característica literária que permeia a maioria dos autores, talvez seja justamente no desenvolvimento da prosa que o livro tenha se tornado quase um fardo. De um certo ponto em diante, creio que a partir do fim da leitura do complexo e instigante texto de Luiz Bras —  o que melhor se sai nesta proposta mais radical —, há como que uma certa repetição entre o estilo de prosa e os enredos, todos parecendo semelhantes e, no fim das contas, com pouca clareza, tornando a leitura um desafio nem sempre estimulante, porque torna-se também cansativo.
Em suma, As Cidades Indizíveis realmente deixa de comunicar-se de forma mais aberta, tornando-se um livro de histórias herméticas e, por consequência, às vezes confusas ou pretensiosas. Mas reconheço que um livro como este tem um propósito e se dirige, preferencialmente, a um tipo de leitor com características mais subjetivas ou literariamente menos convencionais. Como minha análise parte de uma linha de visão mais voltada a um tipo de enredo e estilo narrativo mais claro e de dramas mais exteriorizados, daí o meu desconforto com o resultado final do livro. Seja como for, em termos de acréscimo ao tema da cidade dentro da fc&f, o resultado geral é insatisfatório.

– Marcello Simão Branco

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