Contos
Fantásticos Amor e Sexo. Organização, apresentação e
traduções de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Imã Editorial, 2011. 226 páginas.
A ficção científica é um gênero que prescinde de limites de tempo, espaço e também de assunto. Certa vez o escritor Octavio Aragão afirmou que “tudo é FC”. Causou muita polêmica, pois foi mal compreendido fora do contexto em que sua sentença deveria ser aplicada. O fato é que, em tese, qualquer tema é passível de ser discutido dentro da ficção científica. Assim, amor e sexo, dois assuntos relacionados como dos mais importantes para o ser humano, embora pouco lembrados como temas próprios de FC&F, também podem ganhar tratamento no interior do gênero.
Mas
esta nova antologia de Braulio Tavares, surgida nos estertores de 2011, não é
apenas uma seleção caprichada de contos e noveletas sobre FC. Como o próprio
título sugere, há uma mistura, com histórias também de horror e fantástico, por
vezes de forma pura, por vezes de forma híbrida em termos de limites de gênero.
Mas dada a alta qualidade média das histórias, mesmo puristas de um gênero ou
outro, acredito que não se incomodarão com esta proposta mais abrangente.
O
livro é bem produzido, com uma capa que inspira mais o estranhamento do que a
sensualidade, alterna algumas páginas na cor preta com a branca e tem pequenas
ilustrações igualmente sugestivas entre um texto e outro, assinadas por Odilon
Redon (1840-1916) que, desconfio, deve
ter sido descoberto durante o processo de pesquisa para o livro.
A
antologia tem dez narrativas e um posfácio assinado pelo organizador. Se observei acima a variedade de gêneros, o
rol de autores que os representam não fica atrás: há os clássicos, como Conan
Doyle e Poe, passando por nomes mais ligados ao realismo mainstream , como Balzac, e aqueles mais contemporâneos, voltados à
FC, como Delany e Silverberg. Além disso a antologia promove a estreia no país
de pelo menos um autor, Jonh Crowley, e publica novamente o talento ainda a ser
descoberto pelo leitor brasileiro do australiano Greg Egan.
Contos
Fantásticos Amor e Sexo não é uma antologia que reúne aventuras amorosas
com finais felizes ou grandes desempenhos sexuais dos personagens. Ao
contrário, como ressalta sem uma certa surpresa o próprio organizador no
posfácio não há finais felizes, bem resolvidos nas histórias selecionadas. Amor
e sexo são abordados do ponto de vista dramático e, por consequência,
psicológico. Para Tavares, é de uma literatura mais complexa o tratamento do
amor e do sexo como problemas, não como soluções. Desencadeiam situações
dramáticas, e não como possíveis conclusões de uma trajetória. Já numa ficção
de caráter mais realista ou mesmo pornográfica, busca-se uma solução
satisfatória para os personagens e para o leitor. A sensação de um romance
feliz ou a plena excitação sexual.
Neste
sentido, a FC&F brasileira teve ao menos duas tentativas, primeiro com Como Era Gostosa a Minha Alienígena!:
Antologia de Contos Eróticos Fantásticos, (2003), e depois com Érótica Fantástica (2012), ambas
organizadas por Gerson Lodi-Ribeiro. São antologias que, de maneira geral,
ressaltaram mais o sexo e seus efeitos em si. A primeira principalmente pela
ótica das relações sexuais não usuais entre humanos e monstros ou alienígenas,
e a mais recente com uma maior mistura de temas e gêneros, em torno do sexo e
da sensualidade.
Mas
se, ao invés, o resultado da antologia selecionada por Tavares apresenta um tom
mais cinzento, não falta emoção às histórias, pois elas problematizam o desejo
e a paixão, em um nível médio mais sofisticado do que o usualmente encontrado,
seja em livros mainstream ou mesmo no
interior da FC&F, por vezes remetidos aos chavões ou a reafirmações de
estereótipos em seu desenvolvimento ou solução. Assim, algumas histórias deste
livro primam pelo estranhamento, outras pela intensidade trágica do drama e
também algumas por uma melancolia esperançosa.
O
texto de abertura, “Para Sempre, e Gomorra!”, de Samuel R. Delany foi publicado
em 1967 na controversa e influente antologia Dangerous Visions, organizada por Harlan Ellison. No contexto da
corrida espacial procura especular como será quando (e se) os astronautas
estiverem tão adaptados à vida no espaço, que terão uma constituição física
diferente das pessoas que vivem na Terra. No conto são os chamados spacers que passam a ser objeto de desejo
e perversão sexual, talvez instigados por sua androginia.
Robert
Silverberg abordou o tema do sexo por mais de uma vez, e quando vi seu nome na
capa pensei que veria no livro a tão tocante quanto improvável história de amor
de um golfinho por uma mulher, em “Ismael Apaixonado” (1970). Mas o texto
presente é “No Grupo”, uma pungente história de sexo grupal no futuro em que um
dos integrantes sente falta de um relacionamento mais antigo, com uma única parceira.
Publicado em 1973, ainda ecoa a liberação sexual dos anos 1960, e tem o mérito
de ser uma nova história do autor publicada no Brasil, depois de inacreditáveis
19 anos.[1]
John
Crowley e Greg Egan procuram refletir sobre a questão da memória e da intimidade
levadas ao paroxismo em seus textos, respectivamente “Neve” e “Mais Perto”. Na
primeira, um viúvo fica obcecado com a possibilidade de relembrar (e reviver)
todos os momentos ao lado de seu amor perdido, através de vídeos gravados dos
momentos que viveram juntos. Na segunda, uma espécie de pen-drive acoplado no cérebro – chamado de Ndoli – torna possível
que uma pessoa partilhe inteiramente dos pensamentos, memórias e sensações da
outra. Cada vez mais perto, numa intimidade que leva à fusão, tanto no texto de
Crowley como no de Egan, conduz a resultados que dissimulam, anulam o que também
compõem o desejo, a paixão e o amor: a busca por um complemento do que nos
falta.
Numa
chave de maior romantismo, Ruth Rendell e o desconhecido William M. Lee apresentam
as duas histórias que me causaram o maior impacto emocional. Em “O Duplo”, a
autora inglesa conta sobre uma jovem que por acaso encontra a sua versão mais
velha num parque. Ela fica muito perturbada, pois seguindo as crenças
esotéricas de sua mãe, acredita que morrerá depois de um ano devido a este
encontro. Mas é seu nomorado que
potencializa o drama, ao se aproximar cada vez mais da versão mais madura. O
desfecho é ambíguo, pois tanto pode ser fruto do mal entendido gerado no
triangulo amoroso, como por de fato ser causado por uma espécie de maldição.
“Uma
Mensagem de Charity” é um dos textos românticos mais bonitos e delicados que já
li. Fala de um amor impossível – e por isso mesmo não concretizável, portanto,
não feliz – entre uma garota do século 18 e um garoto contemporâneo do final do
século 20. Mas como isso é possível? Ambos ficam
doentes e, sob febre e delírios, compartilham telepaticamente os pensamentos
através do tempo. Telepatia pertence tradicionalmente à FC, mas nesta história
também pode ser remetida ao fantástico. Seja como for, ambos se apaixonam. Mas
a garota sofre uma acusação de bruxaria, por inadvertidamente dizer estar
ouvindo vozes em sua mente, e precisará da orientação de seu distante amor para
se safar da fogueira. O romance acaba
não prosperando – não haveria como –, mas a mensagem final deixada por ela no
contato final entre os dois não deixa dúvidas sobre o grande amor vivido. Um
amor que lutou não contra a barreira do espaço, mas do tempo!
Honoré
de Balzac, Conan Doyle e Poe representam os autores mais clássicos neste livro
e suas histórias dão um toque mais, digamos, respeitável à obra em termos de
reconhecimento literário. Neste particular, soma-se também o brasileiro Fausto
Cunha que embora não tenha o mesmo status
que os outros apresenta em termos temáticos o conto “61 Cigni”, que também sublinha
a questão da solidão como central e a incompreensão de relações mal resolvidas.
Seja em termos trágicos como no conto de Cunha e Balzac, ou na solução mais
sobrenatural ou mística em Poe e Conan Doyle.
Com
esta nova antologia, Braulio Tavares reafirma sua condição de pesquisador
dedicado, e um selecionador refinado e maduro. Atento tanto à busca da
qualidade, quanto à formação do leitor com textos de autores mais sancionados,
como de outros mais obscuros mas não menos interessantes, pelo menos para o
tema em questão. Nesse sentido é um livro que acrescenta e enriquece a reflexão
sobre as muitas questões do amor e do sexo, por um viés não convencional, e
também por isso muito iluminador do quanto podem render histórias emocionantes
e surpreendentes dentro do ramo fantástico da literatura.
-- Marcello Simão Branco
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