Na edição de 2008 da Festa Literária Internacional de Parati, a participação do escritor e roteirista britânico Neil Gaiman surpreendeu a todos, centralizando o assédio da imprensa e dos fãs, que formavam filas imensas para conseguir um autógrafo do escritor. Gaiman chegou a ficar mais de cinco horas numa seção de autógrafos.
Houve alguma ciumeira quanto a isso, afinal a maior parte dos fãs de Gaiman são leitores de histórias em quadrinhos, um tipo de literatura não muito bem visto nos meios mais eruditos e até bem pouco tempo, os roteiristas de quadrinhos e os escritores de livros viviam em universos bem diferentes. Gardner Fox, que durante anos escreveu roteiros para a editora de quadrinhos DC, publicou muitos romances de gênero, e um e outro escritores ficaram mais conhecidos pelas adaptações de seus livros à nona arte, como os americanos Robert E. Howard (de Conan, o bárbaro) e Edgar Rice Burrougs (de Tarzan dos macacos).
Essa história começou a mudar depois que o roteirista inglês Alan Moore estreou nos EUA escrevendo para a revista O monstro do pântano. O grande sucesso de Moore motivou a editora DC a contratar seu colega Neil Gaiman, escritor nascido em 1960 em Portchester, Inglaterra, para reformular a personagem Orquídea Negra, que resultou numa minissérie ilustrada por seu parceiro de projetos anteriores, o também inglês Dave McKean.
Em seguida, Gaiman recebeu da DC a missão de reformular Sandman, super-herói de pouca profundidade e quase nenhum apelo. Ao longo da série, publicada entre 1988 e 1996, Gaiman elaborou uma narrativa cheia de drama e mistério com doses maciças de referências literárias, e tornou a revista no maior sucesso dos quadrinhos em todo o mundo. As histórias tinham um tom fantástico e melancólico que agradava leitores de todas as idades e sexos – tanto que Sandman é a revista mais lida entre as mulheres. Em 1991, Gaiman ganhou o prêmio literário Fantasy World com o roteiro de Sandman “Sonhos de uma noite de verão”.
A primeira experiência literária de Gaiman foi o romance Belas maldições (Good omens), escrito em parceria com Terry Pratchett (1948-2015) e publicado em 1990, uma sátira às histórias de horror escatológico. Em 1999, publicou a minissérie em quadrinhos Livros de Magia, que muitos acreditam ser precussor de Harry Potter, da também britânica J. K. Rowling.
Gaiman escrevia roteiros cada vez mais literários para o mercado de quadrinhos, ficando na periferia da literatura, como Stardust, ilustrado por Charles Vess, e Sandman: Os caçadores de sonhos, ilustrado por Yoshitaka Amano. Em 1996, novelizou a série de TV britânica Lugar nenhum (Neverwhere).
Em 2002, Gaiman finalmente entrou pela porta da frente do mercado literário com o romance Deuses americanos (American gods), agraciado com os prêmios Hugo e Nebula. No ano seguinte repetiu a dose com a novela infantil Coraline. Em 2005 publicou o romance Os filhos de Anansi (Anansi boys) e, no ano seguinte, a antologia Fumaça e espelhos (Smoke and mirrors). Enfim, em 2008, foi publicada no Brasil a coletânea Coisas frágeis (Fragile things), que é objeto desta resenha. Publicada em 2006 na Inglaterra e premiada com o Locus 2007, a coletânea contava originalmente com 32 peças, entre contos, noveletas e poemas, entre eles um miniconto na apresentação. Gaiman declarou não ter gostado do tratamento que a editora Conrad deu a coletânea, pois a edição brasileira traduziu apenas nove textos, ignorando o restante não se sabe por quais motivos. Entre os textos cortados, há dois contos também premiados com o Locus: "Forbidden brides of the faceless slaves in the secret house of the night of dread desire" (2005) e "Closing time" (2004). Por aí já imaginamos o que perdemos os leitores brasileiros.*
Mas antes pouco do que nada. Os nove contos publicados são todos de excelente qualidade e muitos deles dialogam com outros trabalhos de Gaiman e com obras de outros autores. A começar pela noveleta "Um estudo em esmeralda" (A study in emerald) escrita sob encomenda para uma antologia temática. Trata-se de uma ficção alternativa envolvendo Sherlock Holmes - a famosa personagem de Sir Arthur Conan Doyle - e a cosmologia mística de H. P. Lovecraft. O detetive da história e seu assistente-narrador são chamados pela polícia de Londres para investigar o assassinato de um membro da realeza européia que visitava a cidade. A rainha estava especialmente interessada na solução desse caso politicamente constrangedor. As investigações levam a dupla a um teatro, onde encontram entre os atores os suspeitos do crime, ativistas políticos que combatem a monarquia britânica e mundial, uma vez que a Terra dessa realidade não pertence mais aos homens. Trata-se de uma raras histórias inteligentes de final surpresa, em que tudo o que se viu revela não ser de fato o que se pensava. A moldura lovecraftiana dá um ar moderno à peça, que pode ser perfeitamente alinhada a onda steampunk. O trabalho ganhou merecidamente o prêmio Hugo para melhor noveleta em 2004.
"A vez de Outubro" (October in the chair) foi escrito para a antologia Conjunctions, de Peter Straub, e recebeu o prêmio Locus de melhor conto em 2003. Os meses do ano encontram-se anualmente numa floresta para contarem suas experiências. Há alguma confusão, já que os meses não se entendem muito bem quanto a ordem de apresentação. Alguns são expansivos e falastrões, outros introspectivos e melancólicos, e cada um vai contando a sua história. Outubro conta sobre um menino que, oprimido pela presença superior de seu irmão gêmeo, decide fugir de casa. Alguns quilômetros de caminhada e logo depois do pôr-do-sol, ele encontra um vilarejo arruinado e ali conhece o fantasma de um outro garoto. Ambos passam a noite se divertindo entre as ruínas e, quando chega o dia e a hora de dizer adeus, o jovem terá de tomar a mais importante decisão da sua vida. Um conto suave e de aparência singela, mas extremamente assustador, como caberia à Ray Bradbury a quem Gaiman dedicou o conto.
"Lembranças e tesouros" (Keepsakes and treasures) foi escrita originalmente para uma antologia de histórias em quadrinhos e é a história mais barra-pesada do livro. Quem conta a história é Smith, leão de chácara de um figurão do submundo londrino chamado Sr. Alice, que está negociando a compra do lendário Tesouro dos Shahinai por um valor astronômico em diamantes e não quer que nada dê errado, pois os vendedores são gente perigosa e desconfiada. A compra sigilosa é realizada num prédio antigo e labiríntico em que paira um clima de irrealidade. O tesouro é o homem mais lindo do mundo, um jovem perfeito criado especialmente para esse fim, o qual o Sr. Alice pretende usar como seu preciso objeto sexual.
"Os fatos no caso da partida da senhorita Finch" (The facts in the case of the departure of Miss Finch) é mais divertido, embora tenha uma boa carga de horror. Escrito sob inspiração de um desenho de Frank Frazetta – a famosa ilustração em que uma jovem belíssima caminha entre dois tigres dentes-de-sabre – o conto é narrado por um homem que foi convidado a acompanhar um casal de amigos a uma peça de teatro circense experimental, cuja única seção será apresentada nos subterrâneos de Londres. Ele deve acompanhar a esquisita senhorita Finch, uma intelectual retraída, especialista em biogeologia, na presença da qual ninguém fica muito a vontade. O espetáculo desloca-se por vários salões decrépitos e mal iluminados, com a apresentação de números estranhos e perigosos, nem sempre bem sucedidos. O público acredita que tratam-se de truques e segue se divertindo na medida do possível. Já no fim do espetáculo, a senhorita Finch é convidada para participar de um dos números que propõe realizar seu maior sonho, porém o maior sonho da biogeóloga está extinto há alguns milhares de anos.
"O problema de Susan" (The problem of Susan) tem um fundo metalingüístico elegante e bem armado, pois toda a história se desenrola durante uma entrevista que uma jornalista faz com uma velha senhora especialista em livros infantis. Por outro lado, trata-se também de uma ficção alternativa, uma vez que Gaiman toma emprestado aqui a personagem Susan de As crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis. Enquanto a conversa segue, a envelhecida Susan retoma de alguma maneira sua aventura no guarda-roupa e reencontra a feiticeira e o leão. Mas eles agora estão ali para selar o seu destino, depois que ela cresceu e continuou.
"Golias" (Goliath) foi escrito sob encomenda para o site do filme Matrix, antes que ele estreasse. Gaiman diz que leu o roteiro do filme e então escreveu esta história, em que um homem tem sua vida de fracasso reconstruída pela Matrix, uma vida que agora ele goza plenamente e na qual realiza todos os seus sonhos, mas cujo objetivo é que ele se sacrifique pelo planeta quando chegar a hora. E ela chegou.
"Como conversar com garotas em festas" (How to talk to girls at parties) foi publicado primeiro nesta antologia e indicado ao prêmio Hugo 2007 de melhor conto. Narra a aventura de dois adolescentes – um tímido e outro despachado – que vão a uma festa que eles não sabem exatamente onde acontece. No caminho, o jovem despachado instrui o seu colega tímido em como se aproximar das garotas. Quando estão na região da festa, escutam o sons de música e imediatamente concluem ser ali o lugar que procuram. Logo estão paquerando as garotas, o despachado avançando o sinal enquanto o tímido faz tentativas com várias meninas. Mas a paquera dos garotos vai ficando cada vez mais estranha porque aquela não era exatamente a festa que eles estavam procurando.
"Pássaro-do-Sol" (Sunbird) ganhou o prêmio Locus 2006 de melhor conto. Gaiman confessa que tentou emular o estilo do escritor americano R. A Lafferty, pouco publicado em língua portuguesa. Esta divertida história trata de um grupo de gourmets que formam uma sociedade secreta dedicada a devorar toda a espécie de comida. Depois de muito anos de experiências bizarras, parece tudo já foi deglutido e não há mais nenhum prato novo no cardápio. Então um deles, justamente o mais pobre – na verdade, um mendigo – propõe que eles comam o lendário pássaro do sol da Cidade de Sol, no Cairo. Por absurda que soasse a sugestão, ela acaba aceita pelo grupo, que monta uma custosa expedição ao Egito em busca da iguaria, que o mendigo conhece muito bem por motivos que serão explicados na altura devida.
Em "O monarca do vale" (The monarch of the glen), Gaiman retoma Shadow, o personagem de seu romance Deuses americanos, ao lado de Smith e o Sr. Alice, vistos em "Lembranças e tesouros", para recontar a luta de Beowulf e Greendel no seu cenário original, as regiões remotas da Escócia. Shadow está vagando pela região e seu tamanho e habilidade são notados por um aldeão, que o convida para trabalhar de segurança numa festa de ricaços que vai acontecer num castelo ali por perto. Ele é alertado por uma funcionária do hotel para que não aceite o serviço, que é muito mais perigoso do que parece, mas Shadow está sem dinheiro e acaba aceitando. Quando chega o dia do evento e Shadow comparece para o serviço, é aceito com muita cortesia e instruído nas normas de conduta de uma festa dessa natureza. Mas suas funções ali vão muito além de simplesmente proteger os ricaços da antipatia dos aldeões. Trata-se do trabalho mais longo da coletânea.
Em todas as peças Gaiman demostra habilidade plena nas ferramentas narrativas e nos protocolos dos gêneros. Os contos dialogam com peças importantes da fantasia mundial, dando-lhes um especial toque contemporâneo.
É impossível não comparar a ficção de Gaiman com a de Ray Bradbury – pra quem o autor dedicou o volume, juntamente com Harlan Ellison e Robert Sheckley – com a significativa diferença que Bradbury trata do meio-oeste americano e Gaiman fixa-se nos cenários britânicos que são o seu berço.
Gaiman caminha a passos largos para se tornar o grande nome da literatura de fantasia nos próximos anos, mesmo sem ter uma heptalogia adaptada para o cinema, embora já tenha alguns de suas histórias filmadas, como o romance infantil Coraline (2009) e a hq Stardust (2007), além do roteiro para a animação Beowulf, dirigida por Robert Zemeckis, entre outros. O carisma de Neil Gaiman emana das reais e palpáveis qualidade e sinceridade de seu trabalho. Fiquemos, então, de olho-vivo nele.
— Cesar Silva
* Em 2010, a editora Conrad publicou os textos cortados em um segundo volume, Coisas frágeis II.
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