Repique
Macabro e Outras Histórias Estranhas, de Robert Aickman.
Traduções: Alcebiades Diniz, Bruno Costa, Oscar Nestarez e Ronaldo Gomes. Capa:
Casa Rex/Tulio Caetano. Artigo: Cid Vale Ferreira. Posfácio: Philip Challinor.
286 páginas. São Paulo: Ex Machina/Sebo Clepsidra, 2021.
Em
sua primeira publicação no Brasil, o britânico Robert Aickman (1914-1981) se
diferencia enormemente do padrão médio das histórias sobrenaturais e
fantásticas. Pode parecer um exagero, mas estamos diante de um autor que faz de
suas histórias uma experiência para além de um bom entretenimento. E talvez por
isso não tenha constituído uma carreira popular, mesmo em sua terra, que dirá
de outras paragens mais distantes. Aickman tem um texto direto e fluente, mas,
ao mesmo tempo, intrigante e desconcertante.
Autor
de prestígio inegável e algumas obras-primas, selecionadas neste volume
especial que ora tenho em mãos, é, também, um autor fora dos padrões
convencionais. Suas histórias de horror têm componentes sobrenaturais, mas nada
é óbvio. Pelo contrário, o leitor está sujeito a surpresas e momentos de puro
desconcerto sobre o que acontece com o personagem e com si mesmo. Ao invés da
construção de narrativas mais explícitas ou referentes aos padrões do gênero,
Aickman os subverte. Estamos diante de um autor que faz da imbricação entre a
riqueza de ambientação de cenários e o desenvolvimento de personagens
complexos, o contexto para sugerir sensações, que podem ser de surpresa, medo,
inquietação ou desconcerto total sobre as implicações. Talvez por isso e, ao
que parece, sem querer parecer pedante, Aickman se definia como um autor de strange
tales, em vez de simplesmente como de horror, ou ghost stories, como
alguns críticos o definem. A sensação de estranhamento faz parte do seu ethos, presente em todas as histórias
desta coletânea, com diferentes tons e desdobramentos.
Este
volume contém nove de suas 48 histórias curtas publicadas em sua carreira,
entre as décadas de 1950 e 1980. Não é informado, contudo, se elas foram
selecionadas entre suas coletâneas originais, embora seja o mais provável, pois
não achei nenhuma delas com o mesmo conteúdo da que foi traduzida para a língua
portuguesa. Em todo caso, a seleção é de altíssimo nível. Uma amostra relevante
do que de melhor escreveu Robert Aickman e do trabalho competente de escolha
das histórias.
“The
Hospice” (1975) abre o livro. É a história de um homem que, ao pegar um atalho
para voltar para casa, se perde. Já no início da noite, se depara com uma
espécie de pousada. Pretende apenas fazer uma refeição rápida e seguir seu
rumo. Mas, ao entrar no local, o que parecia banal vai ganhando contornos cada
vez mais estranhos. Um animal o morde e some; ao pedir um jantar frugal, lhe é
servido um banquete; uma mulher bonita se oferece a ele; não há telefone e, sem
gasolina no carro, é obrigado a passar a noite e dividir um quarto com um
sujeito muito estranho, que sugere que a hospedaria é, na verdade, uma espécie
de asilo. Ao amanhecer procura se esvair do local e, mais que isso, de uma
experiência tão inusitada como perturbadora.
Se
a primeira história fala de um sujeito que adentra numa realidade oculta, em
“As Espadas” (“The Swords”; 1975) estamos diante de um jovem que vivencia sua
primeira experiência sexual. Sem dúvida, uma situação no qual paira tanto a
insegurança quanto o desejo. Mas esta tensão é levada ao paroxismo. Numa viagem
de negócios por uma cidadezinha do interior, um jovem encontra um decadente
parque de diversões. Entra numa tenda e se depara com um show no qual uma mulher é repetidamente trespassada por espadas.
Confuso, deixa o local por receio de que possa chegar a sua vez de participar
do espetáculo. Mas, ao reencontrá-la no dia seguinte, é tomado por um desejo
incontrolável, que o fará levá-la ao seu quarto de hotel. Narrada em primeira
pessoa, o que acentua o caráter confessional, pode parecer convencional, mas em
se tratando de Aickman, o desfecho é não menos que intrigante.
Em
“Repique Macabro” (“Ringing the Changes”; 1964), a história que serve de título
ao livro, um jovem casal recém-casado decide passar a lua-de-mel numa pequena e
desconhecida cidade litorânea da Inglaterra. Mas ao chegar ouvem o badalo
incessante de sinos, além da total ausência de pessoas na rua. No hotelzinho
que reservaram estranham ao saber que só uma pessoa está hospedada – e há muito
tempo. E os sinos aumentam em quantidade e volume. Chega a noite sem luar e as
coisas ficam cada vez mais obscuras. Sem aguentar mais os sinos e o
comportamento estranho da dona do hotel e seu filho, eles resolvem ir embora.
Mas não há ninguém para conduzi-los a lugar algum. Em certo momento da noite,
os sinos silenciam, mas começa então uma procissão de pessoas gritando,
cantando e dançando nas ruas, até invadirem o hotel. Um verdadeiro pesadelo de
medo se estabelece, numa situação tão surpreendente quanto aterradora, que
pegou de surpresa um casal convencional que só queria um lugar tranquilo para
se amar. Há muito tempo que não ficava tão envolvido com uma história de
horror. Como se fosse próxima, fiquei apreensivo ao virar mais uma página, num
drama que envolve o despertar dos mortos. Obra-prima.
O
tom de estranheza se acentua ainda mais em “Ravissante” (1968). Anos após fazer
amizade com um pintor fracassado, um sujeito recebe uma carta informado a morte
do artista e de que ele era um dos beneficiários do testamento. Além do valor
de 100 libras – relevante na época –, ele levou também um quadro e uma maleta
com seus escritos, cedidos por sua esposa. Ela sempre ausente e antipática à
época em que ele conviveu com o casal. Ao abrir a maleta, o sujeito encontra um
relato de viagem feita pelo pintor à Bélgica, onde conheceu a enigmática Madame
A., viúva de um pintor que ele admirava. Pois ela, mesmo idosa, acabou por
envolvê-lo num jogo de sensualidade assustador, por meio do contato com as
roupas íntimas de sua filha adotiva. É uma história dentro de uma história que
aborda os meandros do fazer artístico e suas motivações, muitas vezes
incompreensíveis ao próprio artista. Além de um estranho jogo de poder e
erotismo entre uma mulher que se revela poderosa – como uma bruxa? – ante um
sujeito que se submete de forma desconcertada e inexorável.
A
noveleta seguinte, “Niemandswasser” (1975), acentua o aspecto sobrenatural. Um
príncipe tem uma desilusão amorosa, vê seu amigo sofrer um acidente que lhe
decepa uma das mãos e, deprimido, se isola da sociedade à espera de seu fim.
Neste contexto mórbido, ele descobre que o acidente com seu amigo foi provocado
por uma mulher tão linda quanto terrível, que saiu de dentro de um lago, onde,
eventualmente, ele também terá de encarar seu destino. Estamos diante de um
conto sobre a lenda de uma sereia, e o aspecto fatalista torna a leitura um
pouco sufocante.
O
que não é o caso de “Páginas do Diário de uma Menina” (“Pages from a Young
Girl´s Journal”; 1975), primeiramente publicada em The Magazine of Fantasy
& Science Fiction, em 1973 e vencedora do World Fantasy Award em 1975,
quando da publicação na coletânea Cold Hand in Mine. Segue a linha das
duas histórias anteriores, com mulheres poderosas, ainda que no caso desta o
desenvolvimento seja progressivo e não aparente. Em viagem pelo interior da
Itália com seus pais, no início do século XIX, uma menina pré-adolescente
inglesa registra os fatos e sentimentos em seu diário. Após eles chegarem à cidade
de Ravena, são hospedados num casarão por uma condessa, e depois de uma festa,
a jovem sofre uma transformação brutal ao conhecer um cavalheiro estranho que
lá compareceu. De uma garota tímida e sensível, se transforma numa predadora
movida a sangue e desejo. De maneira muito hábil somos expostos à construção de
uma vampira, mas o que mais chama a atenção é a completa mudança de
personalidade da protagonista. A ponto de não mais ser reconhecida por seus
próprios pais. Excelente narrativa de horror vampírico, ao mostrar o ponto de
vista de alguém que passa de vítima a algoz. Esta história é complementada no
livro pelo bom ensaio “Páginas de uma Iniciação pelo Sangue”, de Cid Vale
Ferreira.
A
novela a seguir é “O Quarto Interior” (“The Inner Room”; 1966), das mais
fascinantes do livro. Lene – novamente uma menina –, ganha uma casa de bonecas
no seu aniversário. Comprada numa loja de antiguidades, não é propriamente um
brinquedo, mas uma espécie de maquete. De estilo gótico e assustador era
mobiliada e habitada por várias bonecas. De tão grande, teve de ser
transportada por uma perua. A história se passa no período entre guerras e, por
meio da casa, a vida de Lene e sua família é contada, com diferentes destinos
para cada um, a maioria estranhos e nada felizes. Já adulta e viúva, num certo
dia Lene se perde em um bosque ao tentar pegar um atalho para chegar numa vila.
E, em meio à chuva, relâmpagos e trovões, se depara com a casa. Mas não é tudo.
O que é realmente incrível é quem ela encontrará em seu interior, e que
consequência poderá trazer para a ela. Pois através da casa, no qual a
realidade e o sobrenatural se sobrepõe, Lene vive uma revelação sobre suas
culpas e terrores, que, aparentemente, estavam controlados.
Menos
que alarmada, Margareth ficou intrigada, ainda mais com o estranho bosque, onde
os insones vagavam feito zumbis. Incomodada e, aos poucos, assustada, ela foi
embora no dia seguinte para Sovastad, onde aguardaria o retorno do marido. Mas,
tão estranho ao que ela experimentou na hospedaria, foi a reação das pessoas à
sua presença, de volta ao mundo dos normais. Tratada de forma seca, rude e com
certa pena, como se ela fosse uma condenada, tal qual os perdidos da hospedaria.
Novela perturbadora, no qual o horror se apresenta de forma singular, numa
situação limítrofe entre o psicológico e o sobrenatural, ou melhor, estranho, e
se acentua de forma desestabilizadora. Tanto para os personagens, como para o
leitor. O melhor texto da coletânea, ao lado de “Repique Macabro”. E, que me
deixou perplexo, ao reverberar pelo resto do dia as implicações sobre a
transformação de Margareth.
A
coletânea é concluída com “O Mar Cor de Vinho” (The Wine-Dark Sea; 1966). Em
mais uma das quatro histórias com viajantes, somos apresentados a Grigg, um
turista inglês em viagem pelas ilhas gregas. Apesar dos cenários paradisíacos,
ele estava entediado, até que, ao ver um barco chegar a uma pequena ilha, ficou
interessado em conhecê-la. Principalmente depois das seguidas negativas das
pessoas, dizendo que seria impossível ir até lá, pois ninguém teria interesse
no lugar. Ele acaba por furtar uma lancha sem dono e vai para a ilha. Mas o que
ele encontra no lugar está além de qualquer experiência de viagem – ou mesmo de
vida – que ele jamais poderia imaginar. A ilha é uma antiga cidadela de origem
antiga e desconhecida, habitada por três mulheres lindas que se identificam
como feiticeiras, pois assim são chamadas pelas pessoas do lugar onde Grigg
havia viajado. Elas não são gregas – os abominam como “estúpidos” –, mas
tampouco turcas ou albanesas. Vivem de forma despojada e em contato íntimo com
a natureza, desprovidas de luxo e de desejos materiais. Até que um evento
terrível e decisivo mudará o destino de todos eles. Mais uma história
intrigante, cheia de significados e abertas a muitas interpretações. Grande
desfecho para o livro.
Podemos
dizer que o que mais caracteriza as ficções de Aickman mostradas nesta
coletânea, é tanto o estranhamento em si, quanto a inadequação entre a vida
moderna, e algumas coisas que existiam e meio que ficaram para trás, ou à
margem. Mas que, contudo, continuam presentes como uma espécie de passivo e se revelam
em toda a sua força e desestabilidade quando descobertas por pessoas com alguma
sensibilidade para além do lugar-comum da mediocridade cotidiana. Mas,
infelizmente para elas, pagam um preço alto demais para suas crenças,
identidade e, em alguns casos, suas próprias vidas.
As
editoras Ex Machina e Sebo Clepsidra fizeram uma grande contribuição ao
conhecimento literário do fantástico e sobrenatural ao lançarem Robert Aickman
no Brasil. É um bom exemplo de que há autores importantes, com algo realmente
valioso a mostrar a serem lançados no mercado editorial brasileiro. E o fato de
serem editoras de nicho, com um trabalho editorial de alta qualidade, só vai de
encontro ao perfil literário do próprio autor. Ele mesmo um escritor influente
entre uma pequena elite literária em língua inglesa, conhecido ainda por
poucos, mas que merece sair de certo ostracismo. Como salienta o verbete sobre
ele em The Encyclopedia of Fantasy (1997): “… Aickman é de interesse
absorvente em nosso contexto porque demonstra a gama de significados que podem
ser extraídos de dispositivos de qualquer forma de literatura fantástica,
quando esses dispositivos são tratados com seriedade por um escritor de alta
qualidade.” Assim, se sua ficção estranha, de fato, pode provocar ou
consternar leitores mais comuns, ele merece ser lido e apreciado por aqueles
que buscam, justamente, uma literatura que tem uma prosa refinada, mas ainda
mais, encaminha o leitor para lugares e situações absolutamente
desconcertantes. Ninguém que leu este livro será o mesmo depois de terminá-lo.
Quem se interessou pelo livro, pode adquiri-lo aqui: https://www.seboclepsidra.com.br/aickman
ResponderExcluirNão conhecia este autor, vou ver o livro.
ResponderExcluir