quarta-feira, 20 de abril de 2022

Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas

 

Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas, de Robert Aickman. Traduções: Alcebiades Diniz, Bruno Costa, Oscar Nestarez e Ronaldo Gomes. Capa: Casa Rex/Tulio Caetano. Artigo: Cid Vale Ferreira. Posfácio: Philip Challinor. 286 páginas. São Paulo: Ex Machina/Sebo Clepsidra, 2021.

 


Em sua primeira publicação no Brasil, o britânico Robert Aickman (1914-1981) se diferencia enormemente do padrão médio das histórias sobrenaturais e fantásticas. Pode parecer um exagero, mas estamos diante de um autor que faz de suas histórias uma experiência para além de um bom entretenimento. E talvez por isso não tenha constituído uma carreira popular, mesmo em sua terra, que dirá de outras paragens mais distantes. Aickman tem um texto direto e fluente, mas, ao mesmo tempo, intrigante e desconcertante.

Autor de prestígio inegável e algumas obras-primas, selecionadas neste volume especial que ora tenho em mãos, é, também, um autor fora dos padrões convencionais. Suas histórias de horror têm componentes sobrenaturais, mas nada é óbvio. Pelo contrário, o leitor está sujeito a surpresas e momentos de puro desconcerto sobre o que acontece com o personagem e com si mesmo. Ao invés da construção de narrativas mais explícitas ou referentes aos padrões do gênero, Aickman os subverte. Estamos diante de um autor que faz da imbricação entre a riqueza de ambientação de cenários e o desenvolvimento de personagens complexos, o contexto para sugerir sensações, que podem ser de surpresa, medo, inquietação ou desconcerto total sobre as implicações. Talvez por isso e, ao que parece, sem querer parecer pedante, Aickman se definia como um autor de strange tales, em vez de simplesmente como de horror, ou ghost stories, como alguns críticos o definem. A sensação de estranhamento faz parte do seu ethos, presente em todas as histórias desta coletânea, com diferentes tons e desdobramentos.

Este volume contém nove de suas 48 histórias curtas publicadas em sua carreira, entre as décadas de 1950 e 1980. Não é informado, contudo, se elas foram selecionadas entre suas coletâneas originais, embora seja o mais provável, pois não achei nenhuma delas com o mesmo conteúdo da que foi traduzida para a língua portuguesa. Em todo caso, a seleção é de altíssimo nível. Uma amostra relevante do que de melhor escreveu Robert Aickman e do trabalho competente de escolha das histórias.

“The Hospice” (1975) abre o livro. É a história de um homem que, ao pegar um atalho para voltar para casa, se perde. Já no início da noite, se depara com uma espécie de pousada. Pretende apenas fazer uma refeição rápida e seguir seu rumo. Mas, ao entrar no local, o que parecia banal vai ganhando contornos cada vez mais estranhos. Um animal o morde e some; ao pedir um jantar frugal, lhe é servido um banquete; uma mulher bonita se oferece a ele; não há telefone e, sem gasolina no carro, é obrigado a passar a noite e dividir um quarto com um sujeito muito estranho, que sugere que a hospedaria é, na verdade, uma espécie de asilo. Ao amanhecer procura se esvair do local e, mais que isso, de uma experiência tão inusitada como perturbadora.

Se a primeira história fala de um sujeito que adentra numa realidade oculta, em “As Espadas” (“The Swords”; 1975) estamos diante de um jovem que vivencia sua primeira experiência sexual. Sem dúvida, uma situação no qual paira tanto a insegurança quanto o desejo. Mas esta tensão é levada ao paroxismo. Numa viagem de negócios por uma cidadezinha do interior, um jovem encontra um decadente parque de diversões. Entra numa tenda e se depara com um show no qual uma mulher é repetidamente trespassada por espadas. Confuso, deixa o local por receio de que possa chegar a sua vez de participar do espetáculo. Mas, ao reencontrá-la no dia seguinte, é tomado por um desejo incontrolável, que o fará levá-la ao seu quarto de hotel. Narrada em primeira pessoa, o que acentua o caráter confessional, pode parecer convencional, mas em se tratando de Aickman, o desfecho é não menos que intrigante.

Em “Repique Macabro” (“Ringing the Changes”; 1964), a história que serve de título ao livro, um jovem casal recém-casado decide passar a lua-de-mel numa pequena e desconhecida cidade litorânea da Inglaterra. Mas ao chegar ouvem o badalo incessante de sinos, além da total ausência de pessoas na rua. No hotelzinho que reservaram estranham ao saber que só uma pessoa está hospedada – e há muito tempo. E os sinos aumentam em quantidade e volume. Chega a noite sem luar e as coisas ficam cada vez mais obscuras. Sem aguentar mais os sinos e o comportamento estranho da dona do hotel e seu filho, eles resolvem ir embora. Mas não há ninguém para conduzi-los a lugar algum. Em certo momento da noite, os sinos silenciam, mas começa então uma procissão de pessoas gritando, cantando e dançando nas ruas, até invadirem o hotel. Um verdadeiro pesadelo de medo se estabelece, numa situação tão surpreendente quanto aterradora, que pegou de surpresa um casal convencional que só queria um lugar tranquilo para se amar. Há muito tempo que não ficava tão envolvido com uma história de horror. Como se fosse próxima, fiquei apreensivo ao virar mais uma página, num drama que envolve o despertar dos mortos. Obra-prima.

O tom de estranheza se acentua ainda mais em “Ravissante” (1968). Anos após fazer amizade com um pintor fracassado, um sujeito recebe uma carta informado a morte do artista e de que ele era um dos beneficiários do testamento. Além do valor de 100 libras – relevante na época –, ele levou também um quadro e uma maleta com seus escritos, cedidos por sua esposa. Ela sempre ausente e antipática à época em que ele conviveu com o casal. Ao abrir a maleta, o sujeito encontra um relato de viagem feita pelo pintor à Bélgica, onde conheceu a enigmática Madame A., viúva de um pintor que ele admirava. Pois ela, mesmo idosa, acabou por envolvê-lo num jogo de sensualidade assustador, por meio do contato com as roupas íntimas de sua filha adotiva. É uma história dentro de uma história que aborda os meandros do fazer artístico e suas motivações, muitas vezes incompreensíveis ao próprio artista. Além de um estranho jogo de poder e erotismo entre uma mulher que se revela poderosa – como uma bruxa? – ante um sujeito que se submete de forma desconcertada e inexorável.

A noveleta seguinte, “Niemandswasser” (1975), acentua o aspecto sobrenatural. Um príncipe tem uma desilusão amorosa, vê seu amigo sofrer um acidente que lhe decepa uma das mãos e, deprimido, se isola da sociedade à espera de seu fim. Neste contexto mórbido, ele descobre que o acidente com seu amigo foi provocado por uma mulher tão linda quanto terrível, que saiu de dentro de um lago, onde, eventualmente, ele também terá de encarar seu destino. Estamos diante de um conto sobre a lenda de uma sereia, e o aspecto fatalista torna a leitura um pouco sufocante.

O que não é o caso de “Páginas do Diário de uma Menina” (“Pages from a Young Girl´s Journal”; 1975), primeiramente publicada em The Magazine of Fantasy & Science Fiction, em 1973 e vencedora do World Fantasy Award em 1975, quando da publicação na coletânea Cold Hand in Mine. Segue a linha das duas histórias anteriores, com mulheres poderosas, ainda que no caso desta o desenvolvimento seja progressivo e não aparente. Em viagem pelo interior da Itália com seus pais, no início do século XIX, uma menina pré-adolescente inglesa registra os fatos e sentimentos em seu diário. Após eles chegarem à cidade de Ravena, são hospedados num casarão por uma condessa, e depois de uma festa, a jovem sofre uma transformação brutal ao conhecer um cavalheiro estranho que lá compareceu. De uma garota tímida e sensível, se transforma numa predadora movida a sangue e desejo. De maneira muito hábil somos expostos à construção de uma vampira, mas o que mais chama a atenção é a completa mudança de personalidade da protagonista. A ponto de não mais ser reconhecida por seus próprios pais. Excelente narrativa de horror vampírico, ao mostrar o ponto de vista de alguém que passa de vítima a algoz. Esta história é complementada no livro pelo bom ensaio “Páginas de uma Iniciação pelo Sangue”, de Cid Vale Ferreira.

A novela a seguir é “O Quarto Interior” (“The Inner Room”; 1966), das mais fascinantes do livro. Lene – novamente uma menina –, ganha uma casa de bonecas no seu aniversário. Comprada numa loja de antiguidades, não é propriamente um brinquedo, mas uma espécie de maquete. De estilo gótico e assustador era mobiliada e habitada por várias bonecas. De tão grande, teve de ser transportada por uma perua. A história se passa no período entre guerras e, por meio da casa, a vida de Lene e sua família é contada, com diferentes destinos para cada um, a maioria estranhos e nada felizes. Já adulta e viúva, num certo dia Lene se perde em um bosque ao tentar pegar um atalho para chegar numa vila. E, em meio à chuva, relâmpagos e trovões, se depara com a casa. Mas não é tudo. O que é realmente incrível é quem ela encontrará em seu interior, e que consequência poderá trazer para a ela. Pois através da casa, no qual a realidade e o sobrenatural se sobrepõe, Lene vive uma revelação sobre suas culpas e terrores, que, aparentemente, estavam controlados.

 Sensação semelhante é mostrada na novela “Bosque Adentro” (In the Wood; 1968). O casal Harry e Margareth Sawyer viaja para a Suécia, onde ele trabalha na construção de uma estrada. Após passar alguns dias em Sovastad, ele tem de ir a Estocolmo, e ela pede para ficar hospedada num lugar que havia visto num dos passeios com os casais colegas de trabalho. Margareth ficara encantada com Kurhus, uma hospedaria localizada próximo ao topo de uma montanha e rodeada por bosques. De início tudo parecia belo, mas a estranheza só fez crescer à medida que ela adentrou no recinto. Não há serviços adequados e o lugar fica vazio a maior parte do tempo. Mesmo assim, ela conhece outra hóspede inglesa, e fica a saber que em Kurhus ninguém dorme. Nunca. Era um lugar habitado por insones. Sem esperança de cura, para o que era, de fato, uma doença.

Menos que alarmada, Margareth ficou intrigada, ainda mais com o estranho bosque, onde os insones vagavam feito zumbis. Incomodada e, aos poucos, assustada, ela foi embora no dia seguinte para Sovastad, onde aguardaria o retorno do marido. Mas, tão estranho ao que ela experimentou na hospedaria, foi a reação das pessoas à sua presença, de volta ao mundo dos normais. Tratada de forma seca, rude e com certa pena, como se ela fosse uma condenada, tal qual os perdidos da hospedaria. Novela perturbadora, no qual o horror se apresenta de forma singular, numa situação limítrofe entre o psicológico e o sobrenatural, ou melhor, estranho, e se acentua de forma desestabilizadora. Tanto para os personagens, como para o leitor. O melhor texto da coletânea, ao lado de “Repique Macabro”. E, que me deixou perplexo, ao reverberar pelo resto do dia as implicações sobre a transformação de Margareth.

A coletânea é concluída com “O Mar Cor de Vinho” (The Wine-Dark Sea; 1966). Em mais uma das quatro histórias com viajantes, somos apresentados a Grigg, um turista inglês em viagem pelas ilhas gregas. Apesar dos cenários paradisíacos, ele estava entediado, até que, ao ver um barco chegar a uma pequena ilha, ficou interessado em conhecê-la. Principalmente depois das seguidas negativas das pessoas, dizendo que seria impossível ir até lá, pois ninguém teria interesse no lugar. Ele acaba por furtar uma lancha sem dono e vai para a ilha. Mas o que ele encontra no lugar está além de qualquer experiência de viagem – ou mesmo de vida – que ele jamais poderia imaginar. A ilha é uma antiga cidadela de origem antiga e desconhecida, habitada por três mulheres lindas que se identificam como feiticeiras, pois assim são chamadas pelas pessoas do lugar onde Grigg havia viajado. Elas não são gregas – os abominam como “estúpidos” –, mas tampouco turcas ou albanesas. Vivem de forma despojada e em contato íntimo com a natureza, desprovidas de luxo e de desejos materiais. Até que um evento terrível e decisivo mudará o destino de todos eles. Mais uma história intrigante, cheia de significados e abertas a muitas interpretações. Grande desfecho para o livro.

Podemos dizer que o que mais caracteriza as ficções de Aickman mostradas nesta coletânea, é tanto o estranhamento em si, quanto a inadequação entre a vida moderna, e algumas coisas que existiam e meio que ficaram para trás, ou à margem. Mas que, contudo, continuam presentes como uma espécie de passivo e se revelam em toda a sua força e desestabilidade quando descobertas por pessoas com alguma sensibilidade para além do lugar-comum da mediocridade cotidiana. Mas, infelizmente para elas, pagam um preço alto demais para suas crenças, identidade e, em alguns casos, suas próprias vidas.

As editoras Ex Machina e Sebo Clepsidra fizeram uma grande contribuição ao conhecimento literário do fantástico e sobrenatural ao lançarem Robert Aickman no Brasil. É um bom exemplo de que há autores importantes, com algo realmente valioso a mostrar a serem lançados no mercado editorial brasileiro. E o fato de serem editoras de nicho, com um trabalho editorial de alta qualidade, só vai de encontro ao perfil literário do próprio autor. Ele mesmo um escritor influente entre uma pequena elite literária em língua inglesa, conhecido ainda por poucos, mas que merece sair de certo ostracismo. Como salienta o verbete sobre ele em The Encyclopedia of Fantasy (1997): “… Aickman é de interesse absorvente em nosso contexto porque demonstra a gama de significados que podem ser extraídos de dispositivos de qualquer forma de literatura fantástica, quando esses dispositivos são tratados com seriedade por um escritor de alta qualidade.” Assim, se sua ficção estranha, de fato, pode provocar ou consternar leitores mais comuns, ele merece ser lido e apreciado por aqueles que buscam, justamente, uma literatura que tem uma prosa refinada, mas ainda mais, encaminha o leitor para lugares e situações absolutamente desconcertantes. Ninguém que leu este livro será o mesmo depois de terminá-lo.

 Marcello Simão Branco

 

2 comentários:

  1. Quem se interessou pelo livro, pode adquiri-lo aqui: https://www.seboclepsidra.com.br/aickman

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  2. Não conhecia este autor, vou ver o livro.

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