segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Demónio

 



Demónio (Demon), John Varley. Volumes 1 e 2. Tradução: Sophie Penberthy Vinga. Capas: autorias não identificadas. 200 e 245 páginas, respectivamente. Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica nos. 118 e 119, 1986. Lançamento original em 1984.

 

Neste romance que conclui a Trilogia de Gaia, formada além de Demónio, por Titã (1979) ler resenha aqui -, e Feiticeira (1980) - resenha aqui -, os eventos são retomados 20 anos depois de a feiticeira Cirocco Jones – que originalmente havia sido a capitã da nave terrestre Ringmaster –, haver se insurgido contra uma das versões da deusa governante do mundo artificial, Gaia, para tentar recuperar a viabilidade de um mundo com risco de destruição.

Mas a divindade ressurge e agora de forma totalmente over: uma Marilyn Monroe de 15 metros de altura – imagine isso! –, procurando dominar pela sedução e um poder sobre-humano. Pois nessa nova encarnação, Gaia se esquivou de qualquer limite ou bom-senso, voltada totalmente para sua megalomania em que procura transformar seu próprio mundo num estúdio de cinema. Ela vê e revê compulsivamente filmes e mais filmes norte-americanos, num festival de cinema ininterrupto e itinerante no interior de uma fortaleza chamada Pandemonium, onde também existe um exército poderoso a seu dispor.

Com isso, reencontramos Cirocco, a heroína que pensava ter dado cabo das loucuras e crueldades de Gaia, mas que é chamada novamente à ação para liderar uma nova e mais dramática resistência aos caprichos e arbítrios da governante da roda artificial que orbita Saturno. Cirocco é acompanhada nesta nova missão por alguns dos seus mais fiéis companheiros, como os formidáveis titânides, seres centauróides criados por Gaia e postos sob a responsabilidade de sua reprodução a cargo de Cirocco. O que se tornou um encargo pesado demais para ela, numa espécie de maldição lançada por Gaia por ela a ter desafiado. Além dos titãnides, velhos parceiros, como Chris e Robin, além de novos com destaque, como Nova, filha de Robin e Conal, que se torna uma espécie de guarda particular de Cirocco. Mas para além da resistência em si, está em jogo a sobrevivência dos titânidades como espécie e a chance de libertação de Cirocco: descobre-se que o pequeno Adam, o caçula de Robin tem o poder necessário para garantir a sobrevivência dos titânidades. Mas não só: eis que ressurge também a antiga tripulante e amante de Cirocco, Gaby Plauget, com misteriosas aparições aparentemente sobrenaturais para pessoas determinadas, principalmente, é claro, Cirocco, onde ela passa informações valiosas sobre os passos de Gaia e como derrotá-la. Como se verá, o próprio destino da trilogia estará conectado não só ao embate entre Cirocco e Gaia, mas também ao que representará Gaby neste contexto.

Em sua loucura, ou verdadeira intenção de poder desmedido, a deusa governante de Titã fomenta uma guerra nuclear na Terra. Assim de amiga da humanidade torna-se a sua maior inimiga. Os humanos sobreviventes, desesperados, emigram para o mundo dela, tornando-se explorados de todas as maneiras. Passam a sobreviver na maior metrópole de Titã, Bellinzona, onde reina o caos e a violência. Dividida em guetos, e sem lei definida, toda a sorte de injustiças e iniquidades são cometidas, num autêntico embrutecimento da condição humana. A ponto de bebês serem comercializados e carne humana ser vendida no mercado central da cidade.

Pois este lugar se tornará estratégico para a causa da resistência, quando é literalmente invadido e resgatado do caos estimulado por Gaia. Cirocco, com uma força expedicionária de dezenas de titãnides assume o poder, e restaura a lei, a ordem e um mínimo de decência e humanidade. Por trás dessa ação está a intenção de formar um poderoso Exército de centenas de milhares de homens para marchar em direção ao Pandemônio e derrotar definitivamente Gaia e libertar o pequeno Adam, raptado pela divindade.

Alguns aspectos, em particular, chamam a atenção neste livro: primeiro a ausência da nomeação do mundo como Titã. Neste terceiro livro se menciona Gaia, como a deusa e como o próprio mundo, como este fosse uma extensão da divindade. Me pareceu confuso, mas certamente Gaia aprovaria. Em segundo lugar, Varley desenvolve alguns temas candentes como paralelos ao contexto principal, mas os larga meio que pelo caminho, como se fossem pontas soltas. Exemplos temos em relacionamentos promissores, mas sem continuidades, e principalmente o pós-holocausto nuclear terrestre que tornaria a história ainda mais dramática se fosse mais integrado à trama geral. Teria pensado o autor em desenvolvê-los posteriormente, como novos episódios, transformando a trilogia numa série? Só ele mesmo poderia responder, mas o fato é que ficaram pelo caminho no prosseguimento de sua obra. E me incomodou a vinculação cultural de Gaia à cultura cinematográfica norte-americana, como se representasse toda a Terra. Todas as citações e referências são de estúdios, filmes e artistas do seu próprio país, num chauvinismo que destoa do contexto que se mostrou tão arrojado em outras áreas, como a da liberdade de comportamento, sexual, principalmente, como poucas vezes visto na FC.




Como nota o leitor, Demónio – com acento circunflexo, pois foi assim que foi grafado na edição lusitana –, é uma história extremamente movimentada, a que oferece mais sequências de ação e conflitos em toda a trilogia. Mas, de certa forma, este plano maior do enredo se mostra muito previsível – ao contrário, principalmente de Feiticeira, talvez o mais surpreendente deles –, como se quase suas 400 e poucas páginas se justificassem para o inevitável embate final entre Cirocco e Gaia. Nesse sentido, os dramas pessoais, mais particulares, vistos nos dois primeiros livros, não recebem o mesmo tratamento dramático, tornando a conclusão da saga menos intimista, ainda que reserve um belo sentimento de libertação.

Em seu devido contexto, contudo, A Trilogia de Gaia se constitui numa das iniciativas de construção de mundo mais interessantes e complexas da ficção científica, que talvez não receba mais reconhecimento por não haver obtido a mesma continuidade de publicação e popularidade de obras semelhantes como, por exemplo, a portentosa série Duna (1965-1985), de Frank Herbert (1920-1986), levada ao cinema e depois à TV e que foi trabalhada pelo autor por 20 anos, enquanto Varley abordou o seu universo ficcional por apenas cinco. Em todo caso, é possível encontrar na internet sites e blogs de fãs apaixonados pela trilogia, a ponto de reproduzir mapas de Titã – o que senti falta num mundo descrito com tantas minúcias – e da própria estrutura da roda giratória. Sensacional.

Os três livros foram publicados em Portugal, na saudosa coleção FC Europa-América, mais ou menos nos mesmos anos dos lançamentos originais, e merecem ser lançados de forma inédita aqui no Brasil. Como nos últimos anos têm ocorrido uma certa recuperação do tempo perdido, com o lançamento de obras inéditas dos anos 1970 e 1980, se algum editor mais engajado estiver a ler esta resenha, considere seriamente a possibilidade de trazer ao nosso país estes três livros fascinantes.

Pois John Varley, seu criador, é um dos mais inteligentes e provocativos autores surgidos no cenário da FC nas últimas décadas do século passado, com um hábil equilíbrio entre a aventura e momentos de sense of wonder, rigor científico e ricas especulações sobre o destino da humanidade, a partir de uma visão mais aberta e contestadora dos valores tradicionais, em especial do mundo ocidental.

Marcello Simão Branco


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