Um
Dia Vamos Rir Disso Tudo, Maria Alice Barroso. Capa: Rolf
Gunther Braun. Orelha: Maria Helena Giordiani. 173 páginas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1976.
Em 1990, o Brasil vive
sob um regime autoritário. Menos pela repressão direta, os meios de controle
são mais sutis e indiretos, mas não menos, ou talvez, mais eficientes. A
sociedade funciona a partir de regras altamente burocráticas e organizadas por
recursos tecnológicos: Sociedade Altamente Tecnológica. Censura, mensagens
subliminares, consumo de rações alimentares que inibem a atividade sexual,
massificação do consumo e das artes, estas influenciadas e gerenciadas por
computadores – artificialmente inteligentes. Aos revoltosos, os expedientes
costumeiros: recolhimento compulsório a “centros de reeducação”, e para os
casos mais graves, o “desaparecimento”.
Este é o contexto
sinistro do romance Um Dia Vamos Rir Disso Tudo, uma história dentro de uma
história, porque é contado a partir de um romance escrito pela protagonista, no
qual ao repassar seus anos de juventude, nos revolucionários anos 1960, realiza
o contraste com sua velhice, vivendo sozinha em meio a um mundo distópico.
Assim, a jornalista Maria
repassa sua vida no Rio de Janeiro, em meio ao início da carreira de
jornalista, com a liberdade (e a reprovação machista) de uma mulher do interior
vivendo sozinha numa metrópole, o convívio com seus amigos intelectuais e o
romance com um boxeador. O primeiro contraste de sua vida, neste momento de
ordem pessoal. Isso porque Kid Monte é em tudo antítese do que ela é e aspira
para sua vida: um sujeito prático, que cultua o corpo e a natureza e com uma
postura ingênua e arredia à arte e ao pensamento mais elaborado. Como ela vai finalmente
notar ao escrever suas memórias, no fundo, se o boxeador lhe proporcionou os
maiores prazeres e alegrias, sua ausência na maturidade também simboliza sua
solidão e desesperança em meio a um mundo, de fato, embrutecido e desumanizado,
com quase total ausência de espontaneidade e individualidade.
Em alguns trechos da
obra, Maria, a personagem que escreve suas memórias, reflete, com um misto de
surpresa e perplexidade, sobre o que aconteceu à sociedade e as próprias
pessoas:
... não acredito que as pessoas cheguem a dizer algo
que não estivesse programado antes pelo Governo, através do SPECIT (Secretaria
do Pensamento Científico e Tecnológico) ou da FUCRIUM (Fundação de Utilização
da Criatividade Humana). Devido a um cerco muito sutil (nada do que se faz a
partir da revolução tecnológica foi implantado com violência: e aí descobrimos
que a morte por asfixia pode ser aplicada suavemente, muito suavemente),
atingimos este ano de 1990 com as pessoas, no mundo inteiro, muito comodamente
padronizadas, servindo docilmente aos desígnios dos Governos, sem questionar se
vale a pena obedecer ou não (como se a finalidade da vida de cada um de nós
fosse chupar caramelos e carregar bolas de gás nos passeios na calçada. Tudo
isso me desgosta, por vários motivos, mas o mais forte deles é que conseguiram
retirar do ser humano aquilo que poderíamos chamar de ´a touch of God´, ou
seja, o imponderável existente em cada um, que fazia com que as pessoas não se
repetissem e se interessassem umas pelas outras. (pgs. 13-14).
Pouco
a pouco fomos cedendo terreno para eles: o pior é que se me pedissem, no
passado, para que eu definisse o que era eles,
juro que não saberia. Eles estavam
atrás de cada porção de individualidade que nós perdíamos, nas crescentes
conquistas da massificação, e quanto mais nossa liberdade se restringia, mais
seguros e tranquilos eles se achavam. Quando olhei em torno me vi cercada de
pessoas de borracha, que apenas se assemelhavam aos seres humanos, nada mais.
(pg. 159).
Parece que não houve uma
tomada de poder frontal, mas sim um processo gradativo e irreversível em
direção ao autoritarismo. A autora constrói esse contexto para abordar o
regime político mais por seus efeitos indiretos, evitando a disputa política
tradicional. Assim, se mostra como uma eficiente alegoria sobre a ditatura
militar, especialmente na sua fase de distensão em meados dos anos 1970 – no
governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) –, quando passou a descontruir o grosso
do aparato mais repressivo em meio a uma tendência de maior estatização econômica
e burocratização do Estado – que ganhou até o neologismo de tecnocracia. E que não deixou de ser
surpreendente, principalmente para aqueles que golpearam a democracia em nome
do capitalismo.
Da mesma forma, não fica
claro como é que o mundo em geral também se tornou uma ditadura – pois em certo
momento é citado um governo intercontinental –, mas toda a situação é colocada
como relacionada à ruptura vivida pela própria protagonista, quando se separa de
Monte e de seus amigos, após um evento traumático numa festa que levou à morte
de um deles. Na verdade, todo o grupo se dissolve, e ela pouco fica sabendo dos
seus destinos, agora num contexto sócio-político totalmente desfavorável, três
décadas depois.
Um
Dia Vamos Rir Disso Tudo discute, sobretudo, os efeitos do
autoritarismo e do processo de modernização conservadora a ele relacionado, do
ponto de vista das relações sociais. Faz parte das chamadas ficções distópicas
da ficção científica brasileira, dos anos 1970, entre a primeira e a segunda
onda do gênero, ao refletir sobre os anos de chumbo. Claro que esta
classificação é feita a partir da perspectiva do gênero, pois o fato é que o
romance foi escrito dentro do contexto do mainstream,
aliás, como as outras obras do período. Mas isso é o de menos, o que vale é,
por um aspecto, sua contribuição à compreensão das caraterísticas da ditadura e
seus efeitos na sociedade brasileira da época, e por outro, da validade da FC
como meio de expressão dos possíveis efeitos de um contexto distópico.
Tanto é assim, que a
pesquisadora norte-americana Mary Elisabeth Ginway, em Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País
do Futuro (2005) – uma das principais análises já realizadas sobre a FCB – além
de reconhecer a importância da obra, a situa a partir da perspectiva da
condição feminina, ainda no rescaldo dos contestadores anos 1960 que, embora
menos, também tiveram impacto num país de capitalismo periférico como o Brasil.
Assim, não é casual que
este romance distópico seja escrito por uma mulher que projeta sua própria
figura numa autobiografia escrita no porvir. De como reflete sobre sua vida e
seu destino em meio a um mundo que perdeu sua humanidade, tornando-se
extremamente alienado, massificado e politicamente controlado. Assim, ela, uma
mulher idosa aos 63 anos, vive isolada numa chácara no interior de Minas, e que
foi motivada a relembrar sua vida, ao achar casualmente as luvas de Monte
dentro de uma mala. Mas ela se angustia porque receia que não irá publicá-lo,
pois se tiver essa ousadia, provavelmente será censurado e ela, por suas ideias
fora da ordem, porque contestadoras, poderá ser ´desaparecida´ pelo Estado.
Até onde eu sei, Maria
Alice Barroso (1926-2012) fez em Um Dia
Vamos Rir Disso Tudo sua única
incursão na ficção especulativa e que, curiosamente, não deixa de citar a
própria FC, como o tipo de literatura que sobreviveu na distopia, pois o que as
pessoas querem ler (os poucos que ainda o fazem) são narrativas de “realidades
tecnológicas romanceadas”. Ela foi uma figura presente na literatura brasileira
com certo destaque a partir de 1955, quando estreia com o romance Os Posseiros até sua última obra, a
novela infanto-juvenil de cunho futebolístico Bola no Pé, em 2010. Vencedora de prêmios como o Jabuti em 1989,
refletiu, em grande medida, sobre a condição dolorida, mas de necessária
emancipação da mulher numa sociedade em processo de transformação, em especial
a nossa. E, nesse cenário, incluiu a especulação sensível e arguta sobre,
provavelmente, o momento mais difícil de sua vida em sociedade, quando publicou
Um Dia Vamos Rir Disso Tudo. Um
título que, inclusive, traz embutida uma amarga ironia, como a própria
personagem sugere ao fim de suas memórias.
—Marcello Simão Branco
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