quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Um Dia Vamos Rir Disso Tudo

 



Um Dia Vamos Rir Disso Tudo, Maria Alice Barroso. Capa: Rolf Gunther Braun. Orelha: Maria Helena Giordiani. 173 páginas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976.

 

Em 1990, o Brasil vive sob um regime autoritário. Menos pela repressão direta, os meios de controle são mais sutis e indiretos, mas não menos, ou talvez, mais eficientes. A sociedade funciona a partir de regras altamente burocráticas e organizadas por recursos tecnológicos: Sociedade Altamente Tecnológica. Censura, mensagens subliminares, consumo de rações alimentares que inibem a atividade sexual, massificação do consumo e das artes, estas influenciadas e gerenciadas por computadores – artificialmente inteligentes. Aos revoltosos, os expedientes costumeiros: recolhimento compulsório a “centros de reeducação”, e para os casos mais graves, o “desaparecimento”.

Este é o contexto sinistro do romance Um Dia Vamos Rir Disso Tudo, uma história dentro de uma história, porque é contado a partir de um romance escrito pela protagonista, no qual ao repassar seus anos de juventude, nos revolucionários anos 1960, realiza o contraste com sua velhice, vivendo sozinha em meio a um mundo distópico.

Assim, a jornalista Maria repassa sua vida no Rio de Janeiro, em meio ao início da carreira de jornalista, com a liberdade (e a reprovação machista) de uma mulher do interior vivendo sozinha numa metrópole, o convívio com seus amigos intelectuais e o romance com um boxeador. O primeiro contraste de sua vida, neste momento de ordem pessoal. Isso porque Kid Monte é em tudo antítese do que ela é e aspira para sua vida: um sujeito prático, que cultua o corpo e a natureza e com uma postura ingênua e arredia à arte e ao pensamento mais elaborado. Como ela vai finalmente notar ao escrever suas memórias, no fundo, se o boxeador lhe proporcionou os maiores prazeres e alegrias, sua ausência na maturidade também simboliza sua solidão e desesperança em meio a um mundo, de fato, embrutecido e desumanizado, com quase total ausência de espontaneidade e individualidade.

Em alguns trechos da obra, Maria, a personagem que escreve suas memórias, reflete, com um misto de surpresa e perplexidade, sobre o que aconteceu à sociedade e as próprias pessoas:

 

... não acredito que as pessoas cheguem a dizer algo que não estivesse programado antes pelo Governo, através do SPECIT (Secretaria do Pensamento Científico e Tecnológico) ou da FUCRIUM (Fundação de Utilização da Criatividade Humana). Devido a um cerco muito sutil (nada do que se faz a partir da revolução tecnológica foi implantado com violência: e aí descobrimos que a morte por asfixia pode ser aplicada suavemente, muito suavemente), atingimos este ano de 1990 com as pessoas, no mundo inteiro, muito comodamente padronizadas, servindo docilmente aos desígnios dos Governos, sem questionar se vale a pena obedecer ou não (como se a finalidade da vida de cada um de nós fosse chupar caramelos e carregar bolas de gás nos passeios na calçada. Tudo isso me desgosta, por vários motivos, mas o mais forte deles é que conseguiram retirar do ser humano aquilo que poderíamos chamar de ´a touch of God´, ou seja, o imponderável existente em cada um, que fazia com que as pessoas não se repetissem e se interessassem umas pelas outras. (pgs. 13-14).

 

    Pouco a pouco fomos cedendo terreno para eles: o pior é que se me pedissem, no passado, para que eu definisse o que era eles, juro que não saberia. Eles estavam atrás de cada porção de individualidade que nós perdíamos, nas crescentes conquistas da massificação, e quanto mais nossa liberdade se restringia, mais seguros e tranquilos eles se achavam. Quando olhei em torno me vi cercada de pessoas de borracha, que apenas se assemelhavam aos seres humanos, nada mais. (pg. 159).

 

Parece que não houve uma tomada de poder frontal, mas sim um processo gradativo e irreversível em direção ao autoritarismo. A autora constrói esse contexto para abordar o regime político mais por seus efeitos indiretos, evitando a disputa política tradicional. Assim, se mostra como uma eficiente alegoria sobre a ditatura militar, especialmente na sua fase de distensão em meados dos anos 1970 – no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) –, quando passou a descontruir o grosso do aparato mais repressivo em meio a uma tendência de maior estatização econômica e burocratização do Estado – que ganhou até o neologismo de tecnocracia. E que não deixou de ser surpreendente, principalmente para aqueles que golpearam a democracia em nome do capitalismo.

Da mesma forma, não fica claro como é que o mundo em geral também se tornou uma ditadura – pois em certo momento é citado um governo intercontinental –, mas toda a situação é colocada como relacionada à ruptura vivida pela própria protagonista, quando se separa de Monte e de seus amigos, após um evento traumático numa festa que levou à morte de um deles. Na verdade, todo o grupo se dissolve, e ela pouco fica sabendo dos seus destinos, agora num contexto sócio-político totalmente desfavorável, três décadas depois.

Um Dia Vamos Rir Disso Tudo discute, sobretudo, os efeitos do autoritarismo e do processo de modernização conservadora a ele relacionado, do ponto de vista das relações sociais. Faz parte das chamadas ficções distópicas da ficção científica brasileira, dos anos 1970, entre a primeira e a segunda onda do gênero, ao refletir sobre os anos de chumbo. Claro que esta classificação é feita a partir da perspectiva do gênero, pois o fato é que o romance foi escrito dentro do contexto do mainstream, aliás, como as outras obras do período. Mas isso é o de menos, o que vale é, por um aspecto, sua contribuição à compreensão das caraterísticas da ditadura e seus efeitos na sociedade brasileira da época, e por outro, da validade da FC como meio de expressão dos possíveis efeitos de um contexto distópico.

Tanto é assim, que a pesquisadora norte-americana Mary Elisabeth Ginway, em Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2005) – uma das principais análises já realizadas sobre a FCB – além de reconhecer a importância da obra, a situa a partir da perspectiva da condição feminina, ainda no rescaldo dos contestadores anos 1960 que, embora menos, também tiveram impacto num país de capitalismo periférico como o Brasil.

Assim, não é casual que este romance distópico seja escrito por uma mulher que projeta sua própria figura numa autobiografia escrita no porvir. De como reflete sobre sua vida e seu destino em meio a um mundo que perdeu sua humanidade, tornando-se extremamente alienado, massificado e politicamente controlado. Assim, ela, uma mulher idosa aos 63 anos, vive isolada numa chácara no interior de Minas, e que foi motivada a relembrar sua vida, ao achar casualmente as luvas de Monte dentro de uma mala. Mas ela se angustia porque receia que não irá publicá-lo, pois se tiver essa ousadia, provavelmente será censurado e ela, por suas ideias fora da ordem, porque contestadoras, poderá ser ´desaparecida´ pelo Estado.

Até onde eu sei, Maria Alice Barroso (1926-2012) fez em Um Dia Vamos Rir Disso Tudo sua única incursão na ficção especulativa e que, curiosamente, não deixa de citar a própria FC, como o tipo de literatura que sobreviveu na distopia, pois o que as pessoas querem ler (os poucos que ainda o fazem) são narrativas de “realidades tecnológicas romanceadas”. Ela foi uma figura presente na literatura brasileira com certo destaque a partir de 1955, quando estreia com o romance Os Posseiros até sua última obra, a novela infanto-juvenil de cunho futebolístico Bola no Pé, em 2010. Vencedora de prêmios como o Jabuti em 1989, refletiu, em grande medida, sobre a condição dolorida, mas de necessária emancipação da mulher numa sociedade em processo de transformação, em especial a nossa. E, nesse cenário, incluiu a especulação sensível e arguta sobre, provavelmente, o momento mais difícil de sua vida em sociedade, quando publicou Um Dia Vamos Rir Disso Tudo. Um título que, inclusive, traz embutida uma amarga ironia, como a própria personagem sugere ao fim de suas memórias.

Marcello Simão Branco

 

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