quarta-feira, 5 de agosto de 2020

As Melhores Histórias de Viagens no Tempo

As Melhores Histórias de Viagens no Tempo: Os Contos dos Autores Mais Consagrados da Ficção Científica (The Best Time Travel Stories of the 20th Century), Harry Turtledove e Martin H. Greenberg, organizadores. Tradução de Gilson César Cardoso de Sousa. 462 páginas. São Paulo: Editora Jangada, 2016. Edição original de 2005.



O tema da viagem no tempo é um dos mais duradouros e clássicos da ficção científica. Uma de suas primeiras manifestações e a mais importante, data de 1895 quando H.G. Wells (1866-1946) publicou A Máquina do Tempo (The Time Machine), talvez seu livro mais influente e que estabeleceu os parâmetros para uma viagem no tempo a partir de uma ideia científica, conforme indicada no próprio nome do romance.1

Viajamos no tempo a todo o momento, segundo a segundo, ou à velocidade de 24 horas por dia, como dizia Arthur C. Clarke (1917-2008). Mas num sentido mais ortodoxo o conceito de viagem no tempo sempre foi problemático para aqueles que entendem que a ficção científica deve extrapolar uma possibilidade de desenvolvimento do que é cientificamente possível. Mas, como mostram estudos teóricos nas fronteiras do conhecimento, a ideia de se movimentar fora do contínuo linear de uma seta que vai sempre para frente vem sendo questionado.2

Em todo caso isso nunca atrapalhou aqueles que abordaram o subgênero, que atravessou todo o século XX apresentando verdadeiras maravilhas de criatividade e encantamento, especialmente na literatura. Romances como, entre outros, The Legion of Time (1938), de Jack Williamson (1908-2006); A Luz e as Trevas (Lest Darkness Fall) (1939), de L. Sprague de Camp (1907-2000) – resenha aqui; O Fim da Eternidade (The End of Eternity) (1955), de Isaac Asimov (1920-1992); A Porta para o Verão (The Door into Summer) (1956), de Robert H. Heinlein (1907-1988), e Tempestade no Tempo (Time Storm) (1977), de Gordon R. Dickson (1923-2001). Mas também em outras formas de arte como, por exemplo, no cinema. É só lembrarmos de filmes seminais como A Máquina do Tempo (The Time Machine) (1960), adaptação do romance de Wells, dirigida por George Pal (1908-1980); a série de cinco filmes de O Planeta dos Macacos (The Planet of the Apes) (1968-1973); Um Século em 43 Minutos (Time, After Time) (1979), de Nicholas Meyer, e Os Doze Macacos (The Twelve Monkeys) (1996), de Terry Gillian.

Como indicado no título da antologia os organizadores pretenderam oferecer as melhores histórias curtas do gênero escritas durante o século XX. Tem uma intenção canônica, portanto, de estabelecer as histórias mais influentes e representativas do subgênero. De fato, conforme veremos a seguir, temos, senão todas as melhores histórias, muitas delas. Desta forma, mesmo que algumas tenham ficado de fora, isso não desmerece o objetivo dos organizadores, porque as histórias selecionadas são todas muito boas, algumas realmente excepcionais.

O livro contém 18 relatos, apresentados em ordem cronológica de publicação. Começa em 1941 e chega até 1989. Percorre, portanto, o miolo do século XX, não ele inteiro. Por serem textos curtos foram publicados, em sua grande maioria, nas tradicionais revistas de FC norte-americanas, de Astounding Science Fiction até a Issac Asimov´s Science Fiction Magazine. Mesmo assim, a grande maioria não é um conto, mas sim noveletas e novelas, e conforme os anos avançam as histórias tendem a ficar mais longas. Talvez uma característica mais de mudanças nos estilos e gostos literários, do que com o desenvolvimento da temática em si.

Por causa da importância da proposta da antologia, ao contrário do que tenho feito habitualmente, irei resenhar cada uma das histórias. A intenção é conferir se a proposta dos antologistas é bem-sucedida, na seleção e representatividade das histórias e dos autores.

A primeira história é de Theodore Sturgeon (1918-1985), a noveleta “Ontem Foi Segunda-Feira” (“Yesterday was Monday”), publicada na Astounding Science Fiction, em junho de 1941. Harry Wright, um simples mecânico, acorda numa quarta-feira de manhã, mas não se recorda da terça-feira. Poderia apenas ser um lapso passageiro de memória – talvez fruto de stress ou de uma ressaca –, mas conforme vai perceber poucas horas depois ele despertou numa realidade diferente. As pessoas trabalham na construção de cenários de uma peça de teatro. E cada cenário corresponde a um dia diferente. Absolutamente desconcertado ele procura por alguma explicação racional, mas quanto mais busca, mais sobressai a dúvida e a estranheza. No fundo, ao que parece, ele acordou antes da hora e se viu num cenário (dia) diferente. Uma história intrigante e aberta a outras interpretações.

A história seguinte é a noveleta “O Armário do Tempo” (“Time Locker”), de Henry Kuttner (1915-1958). Outra história publicada na Astounding Science Fiction, na edição de janeiro de 1943. É uma aventura divertida e inusitada sobre um armário que some com os objetos lá colocados, pois vão parar num futuro desconhecido. Narrado com humor e com a presença de dois personagens nada honestos, que procuram dar um golpe um no outro, reflete sobre o espaço e suas possíveis transformações no tempo. Uma joia.

Arthur C. Clarke comparece com “A Seta do Tempo” (“Time´s Arrow”), conto publicado pela primeira vez na Science-Fantasy, edição de verão em 1950. E já conhecida do leitor brasileiro e português, pois vista antes nas coletâneas Encontro com Futuro (Editora Pallas), Em Busca do Futuro (Edições 70, Portugal) e Dinossauros! (Editora Aleph). A publicação nesta última já indica que é um conto de viagem no tempo com dinossauros. Mas o retorno ao passado de dezenas de milhões de anos surge como uma imagem sutil, porém poderosa e reveladora. É uma aventura hard instigante, por explorar o conceito de entropia negativa (seta do tempo) num contexto paleontológico surpreendente. É uma história boa, mas há um outro conto ainda melhor de Clarke no subgênero: “Todo o Tempo do Mundo” (“All the Time in the World”), visto pela primeira vez em 1952 na edição de julho de Startling Stories – e publicada no Brasil nas antologias O Outro Lado do Céu e Sobre o Tempo e as Estrelas, ambas da Editora Nova Fronteira. Conta a história de Robert Ashton, um ladrão que é contratado por uma mulher misteriosa, na verdade um alienígena vindo cem mil anos do futuro. Sua decisão de ajudar ou não o alienígena a roubar alguns objetos do Museu Britânico pode levar ao fim do mundo, pois um dos objetos é uma ogiva nuclear que pode ser ativada. Tem um final de impacto inesquecível.

Na sequência temos um conto de Jack Finney (1911-1995) intitulado “Estou com Medo” (I´m Scared”), publicado em 1951 na revista mainstream Collier´s. A história relata uma série de incidentes inexplicáveis, na linha do saudoso programa de TV “Acredite se Quiser”. Dá conta de pessoas que vivem experiências de lapso de tempo, seja no desaparecimento de alguém, numa foto que registra o que ainda não ocorreu ou a audição no rádio de um programa ao vivo, mas de alguém que já morreu – neste caso poderia ser uma gravação, mas parece que o autor não imaginou tal recurso, talvez porque não existia na época em que escreveu. A história não especula, mas seriam, talvez, portais que se abririam na estrutura do espaço-tempo. O personagem principal vai entrevistando pessoas que viveram estas experiências, são interessantes por si, mas talvez fosse melhor se apenas um (ou dois) relatos fosse contado em detalhes. No Brasil Finney é mais conhecido pelo romance Vampiros de Almas (The Body Snathers) (1955) – uma metáfora do anticomunismo através de uma invasão alienígena –, mas ele também foi um especialista no sub-gênero de viagem no tempo escrevendo vários contos e publicando um dos livros mais celebrados Time and Again (1970). O livro narra um programa ultrassecreto do governo americano que recruta um jovem para voltar no tempo. Quando ele se apaixona por uma mulher do século XIX, deve escolher entre o passado e o presente. Recebeu uma sequência, From Time to Time, em 1995.

Ray Bradbury (1920-2012) é presença obrigatória num livro como este. Afinal escreveu “Um Som do Trovão” (“A Sound of Thunder”), um dos contos mais importantes sobre viagens no tempo, e o segundo no volume a abordar uma viagem ao passado com dinossauros. Visto pela primeira vez na edição de junho de 1952 da Collier´s inaugurou uma premissa própria que se tornou influente dentro e fora da FC, o tal “efeito borboleta”. Uma mudança insignificante no passado provocaria uma cadeia de eventos novos, que poderia alterar de modo irreversível o futuro. Toda uma nova história evolutiva e/ou social poderia acontecer. Com seu talento habitual Bradbury imprime um sentido de tragédia à morte acidental da borboleta e, mais que isso, de um ponto de não retorno para a realidade antes existente. Já conhecido do leitor brasileiro pela publicação nas coletâneas Os Frutos Dourados do Sol (The Golden Apples of the Sun, da Francisco Alves Editora), F de Foguete (R is Rocket, da Hemus) e Contos de Dinossauros (Dinossaurs Tales, da Editora Artes & Ofícios), entre outras, é um clássico da ficção científica.

Assim como “Nave da Morte” (“Dead Ship”), de Richard Matheson (1926-2013). Publicada primeiramente na edição de março de 1953 de Fantastic Story Magazine, é uma história surpreendente e perturbadora, que flerta com o horror. Três astronautas encontram num planeta sua própria nave destruída com eles mesmos mortos. Como explicar isso? Teriam vistos eles no futuro? Seria uma alucinação induzida pelos eventuais habitantes do planeta? Para provar esta hipótese, após decolarem, o capitão decide voltar. Mas eles perceberão que não havia alucinação alguma. Era a pura e mortal realidade. Autor também do ótimo romance de viagem no tempo Em Algum Lugar do Passado (Somewhere in Time) (1975), “Nave da Morte” recebeu uma ótima adaptação escrita pelo próprio Matheson para o seriado Além da Imaginação (Twilight Zone) (1963).

Uma terceira história sobre dinossauros é “Arma para Dinossauros” (“A Gun for Dinossaur”), escrita por L. Sprague de Camp. Publicada originalmente na edição de março de 1956 de Galaxy Science Fiction, apareceu antes no Brasil, na já citada antologia Dinossauros! organizada por Gardner Dozois (1947-2018) e Jack Dann. Camp escreve com inspiração e humor a aventura de um safári de dinossauros, mostrando com riqueza de detalhes o processo de caça e as particularidades envolvidas para se abater animais enormes e ferozes. De quebra dialoga com “Um Som de Trovão”, de Bradbury – outra história de safári com dinossauros –, ao resolver a questão do efeito cumulativo desastroso de uma ínfima mudança no passado: 1) viagens para no mínimo 100 mil anos atrás, de modo a diluir eventuais mudanças na história humana, e 2) a impossibilidade de ver a si mesmo – evitando o paradoxo – com um mecanismo espaço-temporal natural que evita isso, trazendo de volta de forma abrupta ao presente àquele que tenta, como um tipo de ricochete ou efeito bumerangue.

Poul Anderson (1926-2001) também é uma referência no subgênero, autor da coletânea Os Guardiões do Tempo (The Time Patrol) (1955), que apresentou os patrulheiros do tempo, uma polícia temporal que tenta evitar abusos e punir os que burlam as leis que regem as viagens no tempo – serviu de inspiração ao universo ficcional da Intempol, criado por Octávio Aragão. Inclusive, talvez fosse mais representativo selecionar a noveleta “A Patrulha do Tempo” (“Time Patrol”) (1955), mas Harry Turtledove e Martin H. Greenberg (1941-2011) optaram pela noveleta “O Homem que Chegou Cedo” (The Man who Came Early”), vista pela primeira vez na edição de junho de 1956 de The Magazine of Fantasy and Science Fiction.

É uma novela intrigante sobre um soldado americano lotado numa base militar na Islândia, em 1967 que, devido a uma forte tempestade, vai parar mil anos no passado. Narrada com energia e com personagens atuantes, chama a atenção por ser contada do ponto de vista de quem recebe o viajante do tempo – normalmente é o oposto –, e de mostrar com riqueza de detalhes o modo de vida rústico dos aldeões medievais e a extrema inadaptabilidade do sujeito do século XX, em especial nas atividades práticas, quase só o que havia naquela época.

O conto a seguir é “Rainbird” (idem), do estilista e fantasista R.A. Lafferty (1914-2002). Publicado pela primeira vez na edição de dezembro de 1961 de Galaxy Science Fiction trabalha com a ideia do paradoxo embutido na volta ao passado para se encontrar com si mesmo. Higgston Rainbird foi um inventor talentoso, mas em cada retorno ao passado, um novo mundo tinha de ser construído de novo.

Um dos mestres da FC hard Larry Niven foi selecionado com o conto “Leviatã” (“Leviatan”), primeiramente publicado na edição de agosto de 1970 da Playboy – e aqui no Brasil na primeira versão da revista, chamada Homem no. 27, de outubro de 1977. Temos aqui a quarta história sobre viagem no tempo com dinossauros – e a terceira para caçá-los. O diferencial é a volta a um fluxo temporal de uma outra realidade, muito interessante, mas faltou elaborar mais o conceito, tornando a narrativa mais clara e atraente.

Joel Haldeman também está presente, com a noveleta “Projeto de Aniversário” (“Anniversary Project”) (1975), publicado na Analog, de outubro de 1975. Lembra um pouco o espetacular romance Vênus mais X (Venus plus X) (1960), de Theodore Sturgeon, no qual um homem do século XX é levado a um futuro distante em que a sociedade é igualitária, e as pessoas são sexualmente ambíguas. Temos aqui com a noveleta de Haldeman, portanto, a primeira narrativa do livro a abordar o futuro. E muito distante. Um jovem casal é subitamente levado por um ´raio do tempo´ à Terra de daqui há milhares de anos. As pessoas são andróginas, telepatas, vivem cerca de mil anos e socialmente isoladas devido à extinção do oxigênio da atmosfera. Trouxeram o casal porque depois de conhecerem a literatura do passado, querem saber mais sobre a cultura e os costumes dos seres humanos de tempos remotos. Mas um acontecimento inesperado faz com que o casal volte no tempo do fim de suas vidas até o início do seu relacionamento. História brilhante, mas um pouco resumida. Renderia ainda mais como uma novela ou mesmo como romance. De qualquer forma, um dos pontos mais altos da antologia.

O já citado Jack Dann também comparece com o conto “Inversão do Tempo” (“Timetipping”) (1975), visto primeiro na antologia Epoch, editada por Robert Silverberg e Roger Wood. Parte de uma premissa desconcertante: tempos passados e futuros que se misturam, e provocam um caos na vida das pessoas, tornando quase impossível uma convivência em sociedade. Nesse sentido, lembra um pouco o já citado Tempestade no Tempo, de Gordon R. Dickson, embora muito longe da qualidade deste clássico. Entre outras razões porque Dann opta por uma linha de ação religiosa para a narrativa, através da vida do único personagem que não muda. Uma pena, porque soa pouco inspirado e cansativo, principalmente para quem não é familiarizado com o judaísmo.

As seis últimas histórias são as mais longas do livro – à exceção da de John Kessel –, e foram todas publicadas nos anos 1980 na premiada revista Isaac Asimov´s Science Fiction Magazine, sob a edição de Gardner Dozois, e tem em comum uma apurada perspectiva humanista e socialmente crítica. A primeira delas é “Vigia de Incêndio” (“Fire Watch”), de Connie Willis, vista primeiro na Asimov´s de fevereiro de 1982. Premiada com o Hugo e o Nebula, a novela é precedida pela epígrafe do pirata e poeta Walter Raleigh (1552-1618): “A história triunfou sobre o tempo, que antes só sucumbira diante da eternidade”, e indica o tema a ser tratado.

Os historiadores fazem pesquisas de campo visitando o passado para conhecer in loco seus objetos de estudo. De certa forma, a História, um campo de conhecimento dedutivo e de interpretações ad hoc, transformou-se em experimental. Connie Willis explora a fundo esta possibilidade na figura de um jovem pesquisador que retorna à Londres em 1940 para, de forma disfarçada, é claro, atuar como vigia de incêndio da Catedral de Saint Paul. Seu trabalho é tentar impedir que ela seja destruída pelos seguidos bombardeios nazistas, que arrasavam a cidade naquela época. Com personagens densos e humanos e uma reconstituição histórica que impressiona – dá a impressão visual de estarmos lá –, é uma FC histórica não menos que notável. E que ainda serve como a narrativa que antecedeu o premiado romance O Dia do Juízo Final (The Doomsday Book) (1992), em que Willis utiliza uma das personagens da novela para viajar à Idade Média, em plena Peste Negra – resenha aqui.

A história seguinte é “Rumo a Bizâncio” (“Sailing to Byzantium”), de Robert Silverberg. Outra novela de cunho histórico, uma característica já vista no autor quando publicou o romance Os Correios do Tempo (Up the Line, 1969), em que as viagens ao passado são um negócio lucrativo através de agências de turismo. E também na ótima novela “Estação dos Exilados” (“Hawksbill Station”) (1967) – depois expandida para o romance de mesmo nome no ano seguinte – em que presos políticos são deportados para uma prisão no passado distante. Além também de uma variação do tema com o romance Os Intemporais (The Time Hoopers) (1967), em que a motivação para despachar pessoas para o passado é a superpopulação. Como se vê, Silverberg tem currículo no assunto.



Primeiro publicado na edição de fevereiro de 1985 na Asimov´s – veja a capa acima –, “Rumo a Bizâncio” é o texto ficcional mais fascinante da antologia, premiado com o Nebula e finalista do Hugo. No século L (cinquenta) a Terra é povoada por cidadãos que passam o tempo viajando entre as cinco cidades de todo o planeta. São reconstruções quase perfeitas de metrópoles do passado, que após um certo tempo são desfeitas para que novas sejam construídas. Neste futuro estranhíssimo, Charles Williams é um sujeito do século XX, chamado de visitante, que viaja também, e ao lado da bela Gioia, uma das cidadãs. Mas o que Charles irá descobrir é como veio parar lá, quem realmente ele é, e que função desempenha neste futuro exótico e extraordinário. Esta novela de Silverberg é mais que uma ficção científica histórica, e sim uma complexa e sensível alegoria do que realmente significa ser humano. Uma obra-prima.

Em “O Produto Puro” (“The Pure Product”), de John Kessel publicada na Asimov´s de março de 1986, um viajante vindo do futuro perambula pelos EUA no final do século XX. Sem objetivos ou destino, rouba um carro, transa com uma jovem desconhecida, ateia fogo num pedestre, aplica golpes com cheques sem fundo, e compara os costumes das pessoas desta época com a de figuras históricas que conheceu no passado distante. A noveleta é lida com fluência e leveza, mas não há maior empatia ou envolvimento com a história e, menos ainda, com o protagonista.

O nível volta a subir com a ótima novela “Trapalanda” (idem), de Charles Sheffield (1935-2002). Vista pela primeira vez na edição de junho de 1987 da Asimov´s, é uma noveleta instigante sobre a busca pela mítica cidade perdida de Trapalanda, que estaria situada em algum lugar remoto da Patagônia. Uma expedição financiada por um magnata é liderada por Klaus Jacobi, um alpinista que viveu anos na região. O que eles descobrirão é que há sim algo revelador e incrível sobre o a lenda de Trapalanda. Simplesmente um portal espaço-temporal deixado lá por alguma inteligência extraterrestre. O elemento de viagem do tempo da história ocorre porque ao voltar de seu tênue contato com o portal Jacobi envelhece algumas décadas. A narração fluente e os personagens verossímeis são características conhecidas do autor, um competente contador de histórias.

A história a seguir “O Preço das Laranjas” (“The Price of Oranges”), de Nancy Kress, finalista do Hugo. Já era conhecida do leitor brasileiro, pois foi publicada na Isaac Asimov Magazine no. 3, em julho de 1990. Vista antes nos EUA na Asimov´s em abril de 1989, lembro que foi uma das histórias mais marcantes que li na versão brasileira. Relendo agora a impressão não é diferente, embora tenha, em princípio, prestado mais atenção ao desenvolvimento do tema da viagem no tempo. Ora, mas ele é secundário, pois o que realmente importa é o humanismo da história em si. Um avô usa uma abertura temporal encontrada casualmente em seu guarda-roupa e volta a 1937 em busca de um jovem que possa tirar sua neta – uma escritora talentosa – da amargura e solidão. Mas, pelos meandros tortuosos da vida, mal pode imaginar como o jovem irá contribuir para a felicidade da neta. Comovente.

Para fechar a antologia Turtledove e Greenberg capricharam. Escolheram ninguém menos que Ursula K. Le Guin (1929-2018), e uma de suas muitas histórias excelentes. A novela “Outra História ou um Pescador do Mar Interior” (“Another Story or a Fisherman of Inland Sea”), primeiro publicada na Asimov´s em agosto de 1994. Situada em seu tradicional universo ficcional de Hainish, conta a história de Hideo, do mundo de O, sua vida em família e a partida dolorida para o planeta Hain, pois sabe que não verá mais a sua família devido à distância de dezenas de anos-luz. Hideo se junta a uma equipe de físicos que desenvolvem pesquisas sobre o teletransporte instantâneo a qualquer distância, a Teoria de Churten, uma espécie de variação do conceito do ansible, o recurso tecnológico por meio do qual foi possível estabelecer uma comunicação instantânea independentemente das distâncias cósmicas. Ao realizar uma das primeiras experiências Hideo é surpreendido com um problema, pois ao invés do teleporte espacial, se vê num temporal, voltando dez anos ao seu planeta natal, antes que a descoberta tivesse sido feita. Afora o fato em si, que mudou sua vida para sempre, a história é muito rica na elaboração dos costumes do povo de O e na densidade psicológica dos personagens. Uma novela excepcional.

Podemos afirmar que As Melhores Histórias de Viagens no Tempo cumpre sua intenção ambiciosa de servir como um livro de referência sobre um dos subgêneros mais populares da FC? Em parte sim pois, de fato, é possível perceber um claro desenvolvimento na abordagem do tema ao longo de cinco décadas do século passado, indo da Golden Age, passando bem rápido, é verdade, pela New Wave e chegando com força nos anos 1980 e 1990 numa linha mais histórica e humanista. Contudo, podemos ponderar que houve um viés demasiado às histórias com viagens ao passado, e muito poucas com relatos do futuro. Na verdade, quando houve foi de viajantes do presente que foram levados ao futuro de forma involuntária. Não há nenhuma história com viajantes do presente indo deliberadamente ao futuro para conhecê-lo. É quase que um contrassenso, já que a FC é um gênero intrinsecamente identificado por explorar justamente os possíveis mundos e realidades do amanhã. De certa forma, os textos selecionados, ao abordarem mais o passado se inseriram numa linha de FC especulativa histórica, ao invés de apresentar também uma linha de abordagem de uma FC, diria, mais sociológica, caso mais viagens ao futuro tivessem aparecido.

Em todo caso esta antologia pode ser colocada no mesmo patamar de outra que se tornou referência aqui no Brasil: Máquinas de Pensam: Obras-Primas da Ficção Científica (Machines that Think) (1984), organizada por Isaac Asimov, Patricia S. Warrick e Martin H. Greenberg, uma monumental antologia com 28 histórias sobre robôs, computadores e inteligência artificial, publicado pela L&PM em 1985 – e relançada como Histórias de Robôs, em dois volumes em 2005.

Alguém pode observar que outras boas antologias sobre viagem no tempo já foram publicadas no Brasil. Não é verdade, são bem poucas, e talvez a mais expressiva delas a rara Viajantes no Tempo (Voyagers in Time), organizada por Robert Silberberg, foi publicada pela Editorial Panorama, de Portugal, no distante 1967. O que temos são muitos romances, e as histórias curtas foram vistas em coletâneas de autores e antologias com temas variados. Nunca um volume inteiro com quase 500 páginas só sobre o tema. Portanto, ainda que não esgote o assunto e não tenha incluído algumas histórias importantes, é uma antologia que cumpre uma lacuna, contribuindo para a divulgação do tema junto aos leitores e fãs brasileiros de ficção científica.


Marcello Simão Branco


1 Um romance anterior é El Anacronópete (1887), do espanhol Enrique Gaspar y Rimbau. Segundo o crítico e historiador da FC Adam Roberts “não é a primeira história de viagem no tempo da literatura mundial, mas provavelmente é a primeira a apresentar uma peça de tecnologia para transportar um indivíduo através do tempo.” Citação da página 230 de A Verdadeira História da Ficção Científica. Editora Seoman, 2018.

2 Um exemplo temos em O Círculo do Tempo: Um Olhar Científico sobre Viagens Não-Convencionais no Tempo, de Mário Novello. Editora Campus, 1997.

Um comentário:

  1. As minhas preferidas são:
    1.Rumo a Bizâncio (o mais completo e fluido no tema)
    2.O Homem que Chegou Cedo (pela perspectiva do narrador)
    3.A Nave da Morte (o mais perturbador da antologia)

    Mas exceto O Produto Puro, Leviatã e Inversão do Tempo, todas as outras poderiam muito bem figurar no top 3.

    ResponderExcluir