domingo, 31 de maio de 2020

Missão em Sidar


Missão em Sidar (Rayons pour Sidar), Stefan Wul. Tradução do Eng. Gomes dos Santos. Capa de Lima de Freitas. 151 páginas. Lisboa: Edições Livros do Brasil, Coleção Argonauta, no. 72, 1963. Lançado originalmente em 1957.

 Estamos em 2023 e a conquista do espaço avançou bem mais do que em nossa realidade. A Terra mantém um governo de colonização no planeta Sidar, que orbita Alfa do Centauro, a estrela mais próxima do Sol, situada a 4,3 anos-luz. Mas, depois de assinar um tratado de cessão de Sidar aos alienígenas de Xress – outro planeta do sistema de Alfa do Centauro –, os terráqueos preparam-se para evacuar o planeta.
Neste contexto chega a Sidar o físico afrancês Lorrain – assim mesmo com o “a”, mas sem maiores explicações –, que pretende resgatar o seu robô Lionel, que perdeu contato com seu dono. Muitos terrestres têm como companhia um androide, igual ao seu proprietário, mas que tem sua vida garantida apenas na medida em que o dono esteja vivo. Pelo nível de intimidade ambígua mostrada nesta relação, parece ser comum a substituição de um companheiro humano, e no caso de um homem, uma mulher, sugerindo daí, talvez, um tipo de relação homoafetiva.
Em meio à transição que vive Sidar a tarefa de Lorrain é muito complicada, pois o planeta é quase que inteiramente tomado por uma vegetação intensa e fechada, habitada por animais perigosos. Depois de contactar Marco, um administrador de uma vila local, que está deprimido pela perda de seu robô Marcial, Lorrain segue para a província de Horb, onde seu robô Lionel havia se instalado. Na verdade a tarefa vai muito além do mero reencontro sentimental, pois ambos estão em Sidar numa missão secreta.
Após ser ferido pelos nativos de Horb – que vivem como tribos indígenas –, Lorrain surpreendentemente morre. Lionel o recolhe e guarda numa câmara frigorífica com o objetivo de ressuscitá-lo, pois o sucesso da missão depende da atuação da dupla. Mas como assim, ressuscitá-lo? Sim, existe uma tecnologia capaz de reviver quem morre, mas Wul não dá maiores detalhes de como isso seria possível. Lionel tem de voltar com urgência para Gayam – a maior cidade de Sidar –, para cumprir sua missão. No caminho ele encontra Marcial, reduzido apenas à cabeça, depois de sofrer um acidente com a queda de uma rocha. Aliás, a razão do sumiço de Lionel ocorrera por motivo semelhante, desfigurado com o ataque de um krotang, um dos mais terríveis predadores. Levando Lorrain num saco mortuário e a cabeça de Marcial – que retém sua consciência e memória – Lionel termina por reencontrar com Marco e, com sua ajuda, colocar em prática seus objetivos.
Com um ritmo veloz de acontecimentos Missão em Sidar é o quinto romance de Stefan Wul publicado na clássica coleção francesa Fleuve Noir e, curiosamente, traduzido apenas para Portugal e Finlândia.1 O romance está dividido em três partes: a chegada de Lorrain e seu encontro com Lionel; a peregrinação do androide para ressuscitar seu dono e salvar a missão, e a terceira parte, onde ocorre o desenlace final.
Na verdade a Terra não queria ceder Sidar aos belicosos xressianos, pois estes pretendiam ocupar o planeta com o extermínio da população local. Mas interesses políticos e econômicos prevaleceram na votação dos membros da Assembleia Solar. Com isso, secretamente, é elaborado um plano para infiltrar Lionel em Sidar para que este preparasse o terreno até a chegada de Lorrain e, assim, colocar em prática o combinado para impedir a ocupação dos xressianos.
Como dá pra notar Wul trata da questão do imperialismo, assim como já visto no romance anterior O Mundo dos Draagsresenhado aqui. Mas se neste havia uma metáfora da escravidão, aqui estamos diante de uma disputa política de dois impérios (Terra e Xress) pela posse de Sidar – e chega a lembrar um pouco a disputa entre britânicos e franceses por territórios dos árabes desunidos após a Primeira Guerra Mundial. Pois em Sidar também não havia um povo politicamente coeso em torno de um mesmo objetivo. Mas embora não torne evidente uma discussão maior sobre o tema e nem critique a colonização em si, mas a opção entre uma boa e outra ruim – que levaria ao genocídio –, o romance se insere no contexto da década de 1950, no qual a França vivia um problema sério com as lutas emancipatórias de sua principal colônia africana, a Argélia, que se aproximava de sua independência, mas com firme oposição de parte do establishment francês.
Neste sentido alguns romances de FC pulp de Wul mostram-se eivados por um subtexto político, acrescentando um conteúdo crítico para além da mera aventura de entretenimento, com o qual ele é mais identificado. E que, em Missão em Sidar nos leva ao clímax quando os planos de Lorrain e Lionel entram em ação, com a retirada de Sidar da órbita de Alfa do Centauro até tornar-se um novo planeta do sistema solar - situação já mostrada em Pré-História do Futuro (Niourk, 1957), onde é a Terra que escapa de sua órbita - ver a resenha aqui
Wul explica como isso seria possível – em mais uma proeza criativa depois da cena da ressuscitação de Lorrain –, com passagens que justificam sua fama como um autor inventivo e capaz de conduzir o leitor a sensações verdadeiramente delirantes.

Marcello Simão Branco


1Segundo o Internet Speculative Fiction Database: http://www.isfdb.org/cgi-bin/title.cgi?1179049.

2 comentários:

  1. Resenha muito boa, Marcello, que sugere um romance pulp mas de várias camadas. Se bem me lembro, André Carneiro era outro admirador de Stefan Wul.

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  2. Valeu Causo, prezo muito seu comentário. E, puxa, não sabia desta predileção do André. Abraço.

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