Um Dia na Vida do Século XXI (July 20, 2019: A Day in the Life of the 21st
Century), Arthur C. Clarke, organizador. Tradução de Heloísa Gonçalves
Barbosa. Capa de Victor Burton. 304 páginas. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1989. Originalmente publicado em 1986.
Quando comprei
este livro fazia 20 anos que o homem pousara na Lua. Era 18 de julho de 1989 e
passei por uma banquinha que vendia livros usados no fim da Avenida Paulista,
próximo à Praça Osvaldo Cruz, em São Paulo. Estava no clima do assunto já que
preparava a edição número cinco do fanzine Megalon, sobre a chegada do
homem à Lua. Pensei em incluir uma resenha deste livro, mas estava muito em
cima da hora. O livro ficou 30 anos (!) na estante até que, finalmente, o peguei
para ler, em virtude agora dos cinquenta anos do pouso humano em nosso satélite
natural.
Mas este livro
não aborda temas relacionados à Lua, mas sim como estaria o mundo quando
chegássemos a 20 de julho de 2019. Tanto é que o subtítulo é explicativo: “A
vida na Terra e no espaço cinquenta anos depois da chegada do homem à Lua.”
Nesse sentido foi até mais interessante esta espera toda pois pude ler o livro
com os olhos de 2019 e comparar com as previsões que foram feitas, em meados
dos anos 1980. Mais ou menos nesta época o ano 2000 era visto como a chegada do
futuro: carros voadores, viagens espaciais, videofones, androides, inteligência
artificial, cura de doenças e transplantes de órgãos, possível governo mundial,
descoberta de vida extraterrestre etc. Tudo isso e mais está no cardápio de
várias obras de ficção científica e até mais nas de divulgação científica e futurologia.
Como esperado a especulação foi mais longe que a realidade na maioria das
vezes. Mas não vejo isso como um demérito, mas de como a imaginação humana, em
sua criatividade a ansiedade por resolver muitos dos nossos problemas, sempre
está passos à frente do que é possível ou se torna concreto.
Como deixei
este livro esquecido por décadas não atentei para o fato de que, na verdade,
ele não foi escrito por Arthur C. Clarke. Na verdade, ele foi o organizador, com
convidados a escrever sobre um assunto de sua especialidade. Contribuiu para
este engano a desonestidade da editora Nova Fronteira. O livro é anunciado como
de Clarke na capa, na orelha e na contracapa, inclusive com comentários
elogiosos sobre ele, como a citação do poeta Esra Pound de que Clarke seria “a
antena da raça”. Já no sumário os temas estão elencados dando a entender que
teriam sido escritos por Clarke. Apenas nos agradecimentos o autor inglês cita
o nome dos especialistas, mas sem deixar claro de que foram eles que escreveram
os textos. Dá a impressão de que foram apenas consultados. Ora, qual seria o
problema em publicar o livro tendo Clarke como organizador?
Em termos de
conteúdo o livro cobre vários assuntos interessantes sobre como seria o mundo
trinta anos depois de escrito. São quinze capítulos que dão um panorama
bastante razoável de como estaria o mundo hoje, principalmente pelo fato de que
parte relevante do que especularam se tornou realidade.
O texto “20 de
julho de 1969: pouso da Apolo na Lua”, escrito em 1986, por Robert Weil, é
muito lúcido sobre as causas da colonização espacial ter sido abandonada,
depois da última alunissagem em 1972: o objetivo de pousar na Lua foi político,
os custos se tornaram altíssimos e a opinião pública perdeu parte do interesse.
Em julho de 2019 o homem estava de volta à Lua, depois de um recomeço do
interesse no final dos anos 1990. Na verdade, nada disso aconteceu, e a Lua
continua em compasso de espera. A próxima missão tripulada norte-americana anunciada
está marcada para 2024, mas sujeita a cortes orçamentários, já que não é uma
prioridade de “segurança nacional”. Talvez se a China colocar seus homens na
Lua nos próximos anos, haja um recomeço mais consistente e duradouro para a exploração
e colonização da Lua.
Os demais capítulos
abordam temas bastante variados: medicina e saúde; o uso dos robôs e androides
nas mais variadas situações; novos meios de transportes; o uso de tecnologias
digitais e virtuais para modificar a forma como encaramos e interagimos com a
arte, em pintura, cinema e música; as mudanças em vários esportes, com atletas
mais bem preparados fisicamente, mudanças em regras e incorporação de
tecnologias; casas e habitações em lugares incomuns, além do incremento de
inteligências artificiais; relações sexuais aprimoradas com próteses, implantes
e relacionamentos virtuais; novas concepções para a ideia de morte e de como
lidar com ela.
Na maioria
deste mosaico de temas, os especialistas não fazem feio. Alguns deles imaginam
uma rede mundial de informações conectadas em computadores domésticos, mas
nenhum deles chega a falar em algo tão complexo como se tornou a internet. Ora,
mas ela já existia como uma rede interna das Forças Armadas dos EUA desde o fim
dos anos 1960, e depois estendida para algumas universidades norte-americanas nos
anos 1970. É de se lamentar que o tema das comunicações não tenha um capítulo
próprio, mas abordado de forma lateral a outros assuntos.
O capítulo “Um
dia no hospital” é um dos mais próximos de nossa realidade, apurando com
bastante presciência vários dos avanços da medicina. Escrito por Patrice
Adcroft, apresenta a rotina de hospitais ultrassofisticados que mais parecem
hotéis de luxo. Ora, isso é realidade não só nos países desenvolvidos, mas até
no Brasil, em alguns hospitais caríssimos em São Paulo. Mas o que incomoda é
que a saúde neste 20 de julho de 2019 é quase toda privada. Paga-se por tudo e,
como a própria autora admite, boa parte da população não teria acesso a todos
os luxos e, mais importante, avanços da ciência médica. E ela não vê problema
algum nisso.
Aliás, esta
abordagem economicamente liberal é predominante nos vários capítulos do livro.
Em si já seria polêmico, ainda mais num mundo capitalista que, se promove
desenvolvimento tecnológico e prosperidade econômica, ao mesmo tempo provoca
miséria e muita desigualdade. Mas é empobrecedor por não apresentar possíveis
experiências que pudessem incluir mais pessoas, numa visão mais pública e humanista.
De certa forma, esta ótica mais privada da vida neste século XXI está
relacionada com o fato de que todos os capítulos abordam os cinquenta anos
depois da chegada do homem na Lua nos Estados Unidos. É a vida dos
norte-americanos, num chauvinismo que chama ainda mais a atenção porque a
antologia foi organizada por um inglês. E que vivia no Sri Lanka, um país
subdesenvolvido e com desigualdades de toda a ordem.
Os dois
últimos capítulos destoam deste tom mais otimista. O penúltimo é “Guerra”. Escrito
por T.A. Heppenmheimer – que também escreveu um muito bom sobre a vida na então
futura estação espacial –, imagina um possível conflito militar entre os
Estados Unidos e a União Soviética. Bom, de saída sabemos que desde 1991 não
houve mais a superpotência socialista e o mundo entrou numa nova ordem
capitalista e globalizada. Mas o texto é interessante do ponto de vista militar
e o autor especula como poderia se dar uma guerra, com o uso apenas de
armamentos convencionais. Quando se chegasse ao ponto de usar as armas
nucleares seria assinado um armistício encerrando as hostilidades. Apesar do relato
apresentar um suspense que prende o interesse, e ser bastante realista do ponto
de vista dos armamentos e movimentações de tropas pelo interior do continente
europeu, peca pela falta de verossimilhança ao imaginar que um conflito entre
as duas superpotências pudesse tomar toda a Europa e o norte do oceano
Atlântico sem o uso de mísseis intercontinentais com ogivas nucleares.
Para não dizer
que Clarke escreveu apenas a breve introdução, ele também comparece no capítulo
final, “Epílogo: Nações Unidas – 2019”. Aqui o mestre da ficção científica dá
sua visão sobre as relações internacionais, reconhecendo a importância de uma
organização multilateral que reduza um pouco os conflitos entre os países. Mas
pontua de que: “não parece possível que em 2019 ainda tenhamos um número tão
elevado de Estados soberanos independentes; mesmo hoje parecem estar nas
últimas – política e economicamente”. Ora, e ele achava que teria menos países
em 2019 do que os 51 quando da fundação da ONU em 1945! Hoje contamos com cerca
de 206, sendo 193 filiados à entidade. Na verdade, um dos efeitos do fim da
Guerra Fria, com a ascensão da globalização foi a divisão de países, com o ressurgimento
de nações antes reprimidas por uma ordem internacional mais fechada em duas
ideologias concorrentes e predominantes, em termos políticos e econômicos. Por
outro lado, Clarke, observa com correção de que o Conselho de Segurança estaria
anacrônico e precisaria ser revisto com a inclusão de mais países.
A visão final
de Clarke sobre o futuro do concerto das nações em torno de uma entidade global
é mais profícua e condizente com sua condição de escritor de FC: “Não vejo as
Nações Unidas como mais do que um estágio de transição para uma época em que o
próprio conceito de ´nação´perderá o significado. Talvez o maior agrupamento
social do futuro seja a Tribo Eletrônica, cujos membros terão em comum
interesses e códigos de acessos a redes de computador, mas raramente a
geografia”. Não sei se chegaremos exatamente a isso, mas Clarke pressentiu uma tendência
que é, em parte, uma realidade em construção em 2019.
Este livro foi
lançado em 1986 nos Estados Unidos e chegou ao Brasil, corretamente penso eu, em
1989, assim como em Portugal com o título de A Vida no Século XXI, pela
editora Europa-América. Mas cinquenta anos depois do maior evento tecnológico
da história da humanidade o livro não foi relançado e, até onde eu sei, poucos foram
lançados em nosso país. Isso dá conta de como a exploração do espaço deixou de
entusiasmar as mentes e os corações de nossa época e, mais que isso, de como a
ideia de futuro parece que entrou em decadência. Principalmente para aqueles
que o imaginaram no século passado como algo que existiria no século XXI, mas que,
em boa medida, se revelou uma decepção, com problemas tão ameaçadores como os
do passado, mas de outra ordem. Os efeitos devastadores do aquecimento global
que só deve piorar, a volta do crescimento da desigualdade social, a diáspora
dos refugiados e o terrorismo, a crise da democracia, com o ressurgimento de
líderes e ideologias políticas autoritárias, tudo a ameaçar uma convivência
mais livre e civilizada entre os seres humanos na Terra.
– Marcello Simão Branco
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