segunda-feira, 17 de abril de 2017

As Crônicas de Medusa

As Crônicas de Medusa (The Medusa Chronicles), Stephen Baxter e Alastair Reynolds. Tradução de Ronaldo Sérgio de Biasil. 432 páginas. Rio de Janeiro: Editora Record, 2016.

Quando Arthur C. Clarke (1917-2008) escreveu “Encontro com Medusa” ele estava no auge de seu prestígio e popularidade. Vinha do êxito do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço, de 1968, em que ele foi co-responsável pelo roteiro e autor de um excelente romance. A novela foi publicada em dezembro de 1971 na edição norte-americana da revista Playboy, e venceria o Prêmio Nebula em 1972 e o Prêmio Hugo em 1973, os dois mais importantes da ficção científica.
“Encontro com Medusa” foi publicado no Brasil na coletânea O Vento Solar: Histórias da Era Espacial (Globo, 1973), e é provavelmente seu último trabalho de relevância na ficção curta. O enredo narra uma missão ao interior de Júpiter, e a descoberta de surpreendentes formas de vida que flutuam na atmosfera gasosa do gigantesco planeta. As descrições acuradas das etapas da missão e do encontro com as tais medusas são um primor de equilíbrio entre criatividade e verossimilhança científica. Quem conduz a missão é Howard Falcon, que anos antes sofrera um grave acidente no comando do dirigível Queen Elisabeth IV, e fora cobaia de uma experiência medicinal de fronteira, pois ele foi quase totalmente reconstruído com componentes artificiais. Falcon tornou-se um ciborgue, meio homem e meio máquina, e por isso o único capaz de mergulhar no interior de um planeta hostil à vida humana, com temperaturas e pressões na casa dos milhares de graus e atmosferas.
Já ao final de “Encontro com Medusa”, após o êxito da missão, Falcon havia se tornado uma espécie de pária. Respeitado sim, mas com reservas, pois se intuia que como um ciborque ele sinalizava o possível passo evolutivo da humanidade. Um pós-humano. Cerca de dez anos depois, reencontramos Howard Falcon no romance As Crônicas de Medusa, escrito pela dupla de autores britânicos Stephen Baxter e Alastair Reynolds.
O livro cobre um período de tempo de quase mil anos, e mostra como um ser praticamente imortal serve de elo entre a humanidade e as máquinas que, após adquirirem inteligencia e autonomia, se desprendem dos seus criadores e passam a competir com eles sobre o predomínio dos corpos celestes do Sistema Solar e seus recursos naturais. Falcon, que manteve a sua patente de comandante da Marinha Imperial da Terra, é chamado, de forma intermitente, para agir como uma espécie de embaixador da humanidade nos contatos cada vez mais complexos com as máquinas. Desta forma o livro apresenta uma série de eventos em que Falcon assume a tarefa – meio a contragosto – de representar os interesses humanos frente ao dos robôs. Só que sua ligação com os últimos torna-se próxima o suficiente para que sua lealdade seja posta em xeque.
Numa atividade industrial de extração de recursos energéticos num asteróide transplutoniano, ocorre um acidente que destroi vários robôs. Adam, o líder, para os trabalhos e Falcon é enviado para descobrir o que aconteceu. Descobre que Adam sentia tristeza pela perda dos companheiros e questionava como que os humanos os haviam colocado numa missão perigosa, e sem a segurança necessária. Ao descobrir que Adam tinha sentimentos, Falcon não apaga suas memórias, como era recomendado, mas faz um acordo com ele para que voltasse aos trabalhos, até conseguirem construir uma nave para zarparem do Sistema Solar. Centenas de anos depois, Adam anuncia o retorno da agora civilização artificial, e com um últimato: os humanos teriam 500 anos para sairem da Terra, pois seria ocupada pelas máquinas. Com isso humanos e máquinas entram definitivamente em conflito pela supremacia política e tecnológica dos planetas do Sistema Solar, numa ação de certa forma iniciada por Falcon em sua missão ao asteróide.
As Crônicas de Medusa é um romance épico que mostra como ocorre o relacionamento entre criadores e criaturas, retomando um tema dos mais tradicionais da ficção científica, agora em escala espacial. Na verdade, Baxter e Reynolds especulam sobre o que pode acontecer se as máquinas adquirirem uma autoconsciência e se tornarem muitíssimo mais inteligentes e capazes que a humanidade. Segue os argumentos da chamada singularidade, que poderia estar por acontecer ainda no século XXI. Mesmo que seja pouco provável que isto aconteça, ao menos em nosso tempo histórico, quais poderiam ser os possíveis desdobramentos? Uma nova espécie inteligente se contentaria a servir apenas aos seus criadores? Ou passaria a questionar sua condição subalterna e se rebelaria, lutando por direitos, liberdade e buscando seus próprios objetivos? Como ficaria a humanidade à mercê de uma espécie muito mais inteligente, capaz e praticamente imortal? Todas estas perguntas já foram feitas e mostradas em muitas histórias do gênero, e Baxter e Reynolds não almejam originalidade, embora coloquem a questão numa contextualização contemporânea, com aquilo que temos de mais recente em termos de pesquisa científica.
Mas o leitor pode estar se perguntando: E as Medusas? Sim, Falcon cultiva um carinho especial por estes seres enormes que flutuam no meio da atmosfera gasosa de Júpiter. De tempos em tempos, ele voltará a encontrá-las. E são nestas sequências que temos os momentos mais belos de especulação e fantasia nos mergulhos cada vez mais profundos do imenso planeta. Poucas vezes presenciei a descrição de cenas tão inspiradas sobre os mistérios de um planeta tão diferente e fascinante. Tanto do ponto de vista de como ele pode ser em termos naturais, como das eventuais formas de vida que ele pode abrigar. Pois poderá vir justamente das entranhas de Júpiter a chance eventual de reaproximação entre os homens e as máquinas, tendo, mais uma vez, Howard Falcon como uma figura central nos acontecimentos.
O desafio de escrever um romance que ocorre num intervalo de séculos é que possa segurar o interesse e não se torne uma espécie de colcha de retalhos de diferentes eventos que se justapõe. Pois Baxter e Reynolds são competentes ao amarrarem os diferentes acontecimentos dentro de um contexto maior e tendo um personagem principal a servir como elo da narrativa. Mesmo assim, pode-se ponderar que paira sobre a história um drama frio e distanciado. Alguns dos eventos cataclísmicos que ocorrem não recebem uma carga emocional condizente. Os personagens não são muito densos e desenvolvidos do ponto de vista psicológico, mesmo Howard Falcon, um sujeito que atravessa as eras praticamente sozinho, pois perde seus amigos, não tem família e apenas a sua médica é o que mais se pode considerar como uma pessoa íntima – mas ela também é humana. Contudo, pode fazer sentido, pois afinal ele, conforme o tempo passa, tona-se cada vez menos humano e mais próximo das máquinas. Virtualmente imortal como elas.
As Crônicas de Medusa foi listada como “leitura recomendada” dos melhores do ano da revista Locus: The Magazine of the Science Fiction & Fantasy Field, a mais prestigiosa da FC, embora não tenha sido finalista do Hugo e Nebula.  E é surpreendente que tenha sido traduzida e publicada tão rapidamente no Brasil pois, afinal, o livro é de 2016. Talvez tenha a ver com o fato de Ronaldo Sérgio de Biasi ser o tradutor, uma figura importante na ficção científica brasileira no início dos anos 1990, quando editou as 25 edições da Isaac Asimov Magazine (1990-1993) – versão brasileira da Asimov´s Science Fiction. Biasi nunca escondeu que prefere a vertente hard da FC, e talvez tenha influenciado a editora a publicar este romance. Acertou em cheio.
Quando imaginamos que As Crônicas de Medusa seja uma homenagem a Arthur C. Clarke, já seria louvável, embora pudesse não acrescentar muita coisa aos autores, dois expoentes da FC hard desde, pelo menos, os anos 1990. Mas a obra vai além e se ombreia na melhor tradição da corrente temática mais tradicional do gênero.
Num momento em que parte expressiva da FC se repete de maneira desanimadora com histórias sobre temas distópicos, tornando o gênero mais pobre, As Crônicas de Medusa é um sopro de criatividade. Na melhor tradição de uma literatura de ideias, apresenta vários insights especulativos e reflexões sobre os possíveis efeitos complexos da convivência entre duas civilizações inteligentes. Mostra que a FC ainda pode ser capaz de obras no qual é possível especular de forma despojada, e em que o sense of wonder não só é desejável, como necessário. E que uma obra como esta tenha sido inspirada numa história de Arthur C. Clarke não é mera coincidência.


– Marcello Simão Branco

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