quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Tempo Fechado, Bruce Sterling

Tempo Fechado (Heavy weather), Bruce Sterling, 340 páginas. Tradução de Carlos Angelo e capa de Vagner Vargas. São Paulo, Devir Livraria, 2008.

Este é o segundo livro do prestigiado autor americano Bruce Sterling. Primeiramente traduzido entre nós com Piratas de Dados (Islands in the Net), em 1991, também teve contos publicados nas revistas Isaac Asimov Magazine e Quark nos anos 1990. Mais recentemente Sterling recebeu atenção das editora Aleph e Devir, com a publicação do romance Máquina Diferencial (The Difference Engine), em 2012 pela primeira, e com contos em antologias pela segunda.
Principal ideólogo do movimento cyberpunk no início dos anos 1980, em Tempo Fechado o autor, assim como fez com o outro romance lançado no Brasil, expande as fronteiras temáticas tradicionais do movimento, que é essencialmente urbano e tecnológico.
Publicado originalmente no já não tão recente ano de 1994, Tempo Fechado encara de frente um dos temas mais atuais deste início de século XXI, as consequências humanas para as alterações climáticas que o planeta já enfrenta e que deve piorar muito pelas próximas décadas. Se em Piratas de dados, Sterling alargou o horizonte temático cyperpunk por abordar suas principais questões de um ponto de vista dos habitantes dos países em desenvolvimento – o que por si só revela a intenção política da questão –, daqueles que são mais receptores, consumidores  ou mesmo excluídos, do que os produtores das transformações políticas e socioeconômicas do planeta, em Tempo Fechado o autor explora os paradigmas do seu chamado movimento, saindo novamente de sua redoma urbana, tecnológica e pós-moderna, para explorará-la em grandes planícies do Texas e de Oklahoma, sob os efeitos de fenômenos meterológicos violentísismos e transformadores das relações humanas.
A história acontece em 2031, em um futuro bem próximo, portanto. Acompanhamos a trajetória de dois irmãos que acabam participando da Trupe Intempestiva, uma equipe de caçadores de tornados. Talvez você já os tenha visto em reportagens na TV, pois eles existem lá pelo Meio-Oeste dos Estados Unidos ou então no filme Twister (1995). Mas este grupo, além de perseguir os fenômenos naturais que já existem, tem como grande objetivo achar e documentar o chamado F6, um megatornado, acima da escala verificada na Terra, que está previsto apenas nos cálculos de um matemático brilhante e genioso, Jerry Mulcahey, que os une e lidera.
Os irmãos são Jane e Alex Unger. Ela é a namorada de Jerry e que se arrisca para resgatar o irmão de uma clínica clandestina mexicana para tratamento de um grave problema pulmonar que o atinge desde a infância. Ela leva Alex para a Trupe e este, doente e sem perspectiva, não tem muito a perder se juntando a um grupo de pessoas que, cada um à sua maneira, também nada tem de convencional. Como se fossem uns hippies, mas desencantados com qualquer ideologia, vivem em acampamentos improvisados, com água racionada, comendo carne de caça e vestindo roupas de papel. À moda do cyberpunk, porém, lidam com desenvoltura e rebeldia com aparelhos altamente tecnológicos, que os ajudam em suas pesquisas e perseguições aos tornados.
Alex, particularmente, é um sujeito estranho e doentio também em termos psicológicos, desajustado e niilista que, por irônico que possa ser, ilustra bem o tipo de juventude presente num mundo caótico em termos econômicos e prestes a ser devastado em termos climáticos. Nesse sentido, inclusive, talvez seja possível traçar um paralelo entre estas pessoas que abandonam suas vidas civilizadas – ao lado de um trabalho, amigos e família – para viver uma grande e perigosa aventura, com a própria existência do F6, uma anomalia causada pela grande mudança climática global acontecida nas primeiras décadas do século XXI.
O diálogo dos irmãos no fim do romance é exemplar nesse sentido:

“ – Nós somos gente de muita sorte, não é Alex?
“– Estamos vivos. Isso é ter sorte.
– Não temos sorte, Alex. Este não é um tempo de sorte. Estamos vivos, e estou contente por isso, mas somos gente da catástrofe. Nunca vamos ficar felizes ou seguros de verdade, nunca. Nunca, jamais.” (pág. 333).

Diálogos como este transparecem, justamente, nos momentos que se seguem a transformações dramáticas. Seja por guerras ou, neste caso, devastações da natureza. E a ficção científica é pródiga em refletir sobre as grandes tragédias possíveis da época em que estão inseridas. Assim foi, por exemplo, nos tempos da Guerra Fria e a sombria perspectiva de um holocausto nuclear.
Sterling capta bem o que ainda não era a norma no momento que foi escrito, em termos de especulação sobre grandes perigos climáticos para a vida humana no planeta. Podemos pensar numa comparação dele com William Gibson, pois ambos são agudos especuladores socioculturais. Se Gibson é hábil em antecipar tendências, quase como um visionário tecnológico-cultural e, nesse sentido, com uma perspectiva analítica que parte mais da ótica da ação individual, Sterling segue numa trilha mais, digamos, estruturalista em suas especulações e, por isso, de fundo mais coletivo. Pois embora não aprofunde neste romance, ele trata de algumas mudanças políticas e socieconômicas ocorridas no tempo de vida dos personagens.
A história se passa poucos anos depois de um chamado Estado de Emergência, em grande parte ocasionado por uma colapso financeiro, devido a um desequilíbrio vinculado à excessiva liberdade especulativa, baseada em uma frágil estrutura tecnológica de base digital. Ora, isso soa como extremamente presciente do que estamos vivendo nos dias de hoje, quando, também devido ao descontrole especulativo-financeiro provocado pela falta de controle e regulamentação, atravessamos uma das piores crises da história do capitalismo. Mais dramático, Sterling imagina o colapso das próprias moedas nacionais e a emergência do que ele chama de Regime, provavelmente um governo de força próximo a uma ditadura no território dos Estados Unidos, muito significativo, já que jamais o país viveu fora do ordenamento democrático. Viria esta ruptura institucional devido a um colapso financeiro? Depende da magnitude, mas nos dias de hoje nem se imaginou tal situação.Que, contudo, chegou a ser especulada como eventualmente possível devido às ameaças terroristas que os norte-americanos viveram a partir de setembro de 2001.
Divagações à parte, como este não era o tema central da obra, sua discussão não destoa do mundo apresentado, ajudando a contextualizar o tipo de sociedade vigente às portas da chegada de um evento metereológico radical. Sim, a palavra é esta porque o F6 teria um poder de destruição maciço, esmigalhando uma cidade em poucos minutos e se tornaria uma tempestade permanente, semelhante à Grande Mancha Vermelha de Júpiter. Não é preciso muita imaginação ou conhecimento para intuir que tal fenômeno traria efeitos permanentes para o ambiente e a vida na Terra.
Afora este tema por si só fascinante, Bruce Sterling conduz o enredo com bom ritmo, equilibrando os dramas pessoais dos personagens aos eventos atmosféricos que movem a história, assim como o pano de fundo social em que está inserido. Nota-se que o autor realizou uma pesquisa séria sobre o tema para escrever o livro, chegando a acompanhar equipes de caças a tornados. Isso transparece no realismo das sequencias de perseguição e mesmo na construção de personagens verossímeis para o contexto imaginado.
Apesar disso, há um grupo de pessoas no romance, liderados pelo irmão de Jerry, Leo Mulcahey, que atuaria como terroristas e conspiradores para provocar a morte de pessoas na escala de milhões, sob a justificativa de que o mundo não aguenta tantas bocas para alimentar. Nada justifica tal barbaridade, ainda mais por um argumento tão fajuto. Atuariam derrubando governos legais, provocando guerras civis ou espalhando epidemias e moléstias com vacinas e drogas envenenadas. Todos estes planos mirabolantes são revelados quando Jane é socorrida do F6 e levada para um abrigo subterrâneo onde Leo e os outros estão. Esta sequencia é francamente tola, estranha e destoou do realismo científico e da verossimilhança temática vista no conjunto da obra. Desnecessária e ainda bem que secundária para não atrapalhar o desdobramento final da história.
Embora Tempo Fechado não tenha alcançado êxito em termos de premiações, pode ser visto como um dos livros mais atuais de sua carreira, pois chama a atenção para a responsabilidade humana no destino de todas as formas de vida no planeta. Com isso cumpre o seu papel de intelectual ativista em questões candentes, algo presente nos autores cyperpunks em geral, mas principalmente nele, o mais engajado politicamente. Se por um lado, há sempre o risco de uma obra como esta ser refém de sua época, neste caso Sterling acertou, pois cada vez mais as consequencias das mudanças climáticas são vitais em nosso cotidiano e certamente assim será nas próximas gerações.

-- Marcello Simão Branco

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