Ubik (Ubik), Philip K. Dick.
Tradução
de Ludimila Hashimoto. Capa de Thiago Ventura e Luiza Franco. 238 páginas. São
Paulo: Editora Aleph. Lançado originalmente em 2009, e com nova edição em 2019.
O que é ubik? Pergunta no
fim do livro o desesperado personagem Joe Chip. Pode ser um eletrodoméstico, um
pó de café, um remédio para dor de estômago, um desodorante... conforme é
ilustrado nas epígrafes de cada capítulo. Mas ubik é tudo isso e muito mais.
O romance Ubik foi
lançado originalmente nos Estados Unidos em 1969, e Philip K. Dick estava no
auge de sua criação artística, tendo já escrito outros títulos clássicos como O
Homem do Castelo Alto (The Man in the High Castle, 1962), Os Três
Estigmas de Palmer Eldritch (The Three Stigmata of Palmer Eldritch, 1965) e
O Caçador de Andróides (Do Androids Dream of Electric Sheep?,
1968). Neles o autor expandiu os horizontes da ficção científica com um vigor
há muito não visto no gênero, refletindo sobre a condição humana e sua frágil
compreensão do que é real ou ilusório, seja por meio da história alternativa,
dos efeitos alucinógenos de drogas ou da convivência com androides. Nesse
sentido, Ubik é uma espécie de ápice criativo, no qual o autor
sintetizou o conjunto principal de suas temáticas e reflexões.
Estamos em 1992 e o homem
coloniza a Lua e Marte no Sistema Solar. Na Terra, os utensílios domésticos
interagem e cobram por seus serviços. Ainda mais estranho é a presença dos
precogs, pessoas com poderes telepáticos e precognitivos que trabalham para
empresas para fins particulares, como a descoberta de segredos e a espionagem.
A empresa Glen Runciter e Associados é uma do tipo chamada de prudência,
pois seus agentes — chamados de inerciais — atuam anulando os poderes
dos paranormais com poderes ativos. Os grupos prestam serviços e concorrem
entre si, cada um efetuando um tipo de trabalho que interfere no trabalho do
outro. Por isso, a rivalidade entre eles é muito grande.
Além disso, depois que as
pessoas morrem podem ainda ser salvas da perda final, se colocadas numa espécie
de bolsa térmica até poucas horas depois do falecimento. São inseridas numa
espécie de câmara de sobrevivência, em temperaturas baixíssimas e ficam numa
condição entre a vida e a morte, chamada de meia-vida. O mais incrível é
que elas podem se comunicar com os vivos, por meio de dispositivos eletrônicos.
E se não forem acionadas para estas conversas com frequência podem,
eventualmente, ser encarnadas, de volta à vida. Pense por um instante o quanto
isto seria revolucionário!
A esposa de Runciter está
nessa condição num moratório em Zurique. Depois de voltar de lá, em Nova York,
ele recebe o grupo de inerciais para uma reunião. Chip os apresenta a Pat
Conley, uma garota que tem o poder de reverter um evento para momentos antes de
ele ocorrer. Além disso, recebem um misterioso trabalho para ser executado por
todos os membros na Lua. Mas logo depois de lá chegarem descobrem que caíram
numa armadilha e são alvos de um atentado. A partir deste evento os fenômenos
da realidade e do tempo começam, pouco a pouco e cada vez de forma mais
vigorosa, a se embaralhar.
Runciter foi atingido
mortalmente e não houve tempo de colocá-lo em meia-vida. Os demais membros são
agora liderados por Joe Chip, mas eventos estranhos começam a acontecer com
cada um deles. Pouco a pouco eles vão definhando, perdendo suas forças até a
morte. Chip tenta entender o que se passa e recebe estranhas mensagens de
Runciter, nos lugares mais inusitados como num espelho de banheiro, no telefone
e em rótulos de produtos de consumo. Mas são apenas pistas que, aparentemente,
mais o perturba do que ajuda a esclarecer a situação. Os objetos começam a
apodrecer e logo se percebe que pertencem ao passado imiscuídos no presente. Um
processo de regressão começa a ocorrer com o passado se misturando ao presente,
como que tomando o seu lugar sem que seja uma espécie convencional de volta no
tempo.
O ponto final de
regressão, agora completo, é 1939. Chip e os inerciais ainda vivos estão
reunidos para o funeral de Runciter. Mas descobrem que, na verdade, não é
Runciter que morreu. Toda esta realidade regressiva acontece na realidade
daqueles que estão em meia-vida, através de Jory, uma das pessoas do moratório
de Zurique que, como se fosse um vampiro, precisa sugar as meias-vidas das
pessoas que lá estão para manter a sua própria.
Chip desconfiava de Pat
Conley e ela mesma, ingênua, acreditava que ela era a responsável já que na
verdade era uma espiã infiltrada no grupo de Runciter. Mas todos pouco a pouco
vão perdendo suas meias-vidas. Até que entra em cena, por meio da comunicação
de Runciter, o ubik, uma lata de spray que interrompe o processo de
regressão e preserva as pessoas no estado de meia-vida. Seria uma criação das
pessoas em meia-vida, numa tentativa de enfrentar a volúpia de Jory.
Assim como Chip e os
demais personagens em boa parte da história somos conduzidos a uma completa
desorientação. Que mesmo que revelada depois, só nos coloca em outras situações
desorientadoras e difíceis de aceitar. Por exemplo: depois do acidente Chip e
seus colegas descobrem que as moedas que usam têm a efígie de Runciter. E o que
pensar quando, posteriormente, Runciter vê as suas moedas com a efígie de Chip?
Ubik vem de ubiquidade,
daquilo ou daquele que está em toda parte, e por isso cumpre esta função de
manter uma realidade pós-vida, evitando uma morte definitiva. É mais que isso,
porém. Torce o conceito de realidade em que nos amparamos e apresenta uma nova
perspectiva onde as fronteiras da vida e da morte se perdem. No fundo a
discussão subjacente é da complexidade da mente humana. De como o nosso
entendimento racional daquilo que compreendemos como realidade, é também
uma construção mental, sobretudo, talvez, do racionalismo cartesiano do
Ocidente. Isso porque Ubik não é a primeira e nem a última história do
autor a tratar de tais temas, sendo notória a sua tentativa de compreensão mais
expandida da realidade por meio de uma concepção, diria, mais voltada ao
budismo e suas outras ramificações orientais.
No contexto deste,
digamos, diálogo sutil e implícito entre concepções ocidentais e orientais do
significado do real e da existência, a última epígrafe é a mais eloquente e
enigmática:
“Eu sou Ubik. Antes
que o universo fosse, eu sou. Eu fiz os sóis. Eu fiz os mundos. Eu criei as
vidas e os lugares que elas habitam. Eu as transfiro para cá, eu as ponho ali.
Elas seguem minhas ordens, fazem o que mando. Eu sou o verbo e meu nome nunca é
dito, o nome que ninguém conhece. Eu sou chamado de Ubik, mas este não é o meu
nome. Eu sou. Eu Sempre serei.” (pág. 237).
Ubik também é agradável
porque Dick tem uma prosa limpa, fluente, sem firulas. De forma paradoxal tem
um texto elegante para tratar de assuntos tão complexos. Se pensarmos no tour
de force temático de O Caçador de Androides, um romance inteiro que
se passa num único dia, veremos que esta obra tem o mesmo tom limpo e
econômico. Possivelmente fruto deste momento de sua carreira, já que nem sempre
o autor apresentou tal clareza em expor suas ideias.
A obra já era conhecida
do leitor brasileiro mais aficcionado, através da publicação em Portugal, na
coleção de ficção científica da Europa-América, em seu número seis, em 1980.
Mas a sua nova publicação em 2019 no Brasil pela editora Aleph é dos mais
relevantes porque Ubik é um romance fundamental, tanto para o universo
da ficção científica como fora dele.
—
Marcello Simão Branco
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