sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Ubik

Ubik (Ubik), Philip K. Dick. Tradução de Ludimila Hashimoto. Capa de Thiago Ventura e Luiza Franco. 238 páginas. São Paulo: Editora Aleph. Lançado originalmente em 2009, e com nova edição em 2019.

O que é ubik? Pergunta no fim do livro o desesperado personagem Joe Chip. Pode ser um eletrodoméstico, um pó de café, um remédio para dor de estômago, um desodorante... conforme é ilustrado nas epígrafes de cada capítulo. Mas ubik é tudo isso e muito mais.
O romance Ubik foi lançado originalmente nos Estados Unidos em 1969, e Philip K. Dick estava no auge de sua criação artística, tendo já escrito outros títulos clássicos como O Homem do Castelo Alto (The Man in the High Castle, 1962), Os Três Estigmas de Palmer Eldritch (The Three Stigmata of Palmer Eldritch, 1965) e O Caçador de Andróides (Do Androids Dream of Electric Sheep?, 1968). Neles o autor expandiu os horizontes da ficção científica com um vigor há muito não visto no gênero, refletindo sobre a condição humana e sua frágil compreensão do que é real ou ilusório, seja por meio da história alternativa, dos efeitos alucinógenos de drogas ou da convivência com androides. Nesse sentido, Ubik é uma espécie de ápice criativo, no qual o autor sintetizou o conjunto principal de suas temáticas e reflexões.
Estamos em 1992 e o homem coloniza a Lua e Marte no Sistema Solar. Na Terra, os utensílios domésticos interagem e cobram por seus serviços. Ainda mais estranho é a presença dos precogs, pessoas com poderes telepáticos e precognitivos que trabalham para empresas para fins particulares, como a descoberta de segredos e a espionagem. A empresa Glen Runciter e Associados é uma do tipo chamada de prudência, pois seus agentes — chamados de inerciais — atuam anulando os poderes dos paranormais com poderes ativos. Os grupos prestam serviços e concorrem entre si, cada um efetuando um tipo de trabalho que interfere no trabalho do outro. Por isso, a rivalidade entre eles é muito grande.
Além disso, depois que as pessoas morrem podem ainda ser salvas da perda final, se colocadas numa espécie de bolsa térmica até poucas horas depois do falecimento. São inseridas numa espécie de câmara de sobrevivência, em temperaturas baixíssimas e ficam numa condição entre a vida e a morte, chamada de meia-vida. O mais incrível é que elas podem se comunicar com os vivos, por meio de dispositivos eletrônicos. E se não forem acionadas para estas conversas com frequência podem, eventualmente, ser encarnadas, de volta à vida. Pense por um instante o quanto isto seria revolucionário!
A esposa de Runciter está nessa condição num moratório em Zurique. Depois de voltar de lá, em Nova York, ele recebe o grupo de inerciais para uma reunião. Chip os apresenta a Pat Conley, uma garota que tem o poder de reverter um evento para momentos antes de ele ocorrer. Além disso, recebem um misterioso trabalho para ser executado por todos os membros na Lua. Mas logo depois de lá chegarem descobrem que caíram numa armadilha e são alvos de um atentado. A partir deste evento os fenômenos da realidade e do tempo começam, pouco a pouco e cada vez de forma mais vigorosa, a se embaralhar.
Runciter foi atingido mortalmente e não houve tempo de colocá-lo em meia-vida. Os demais membros são agora liderados por Joe Chip, mas eventos estranhos começam a acontecer com cada um deles. Pouco a pouco eles vão definhando, perdendo suas forças até a morte. Chip tenta entender o que se passa e recebe estranhas mensagens de Runciter, nos lugares mais inusitados como num espelho de banheiro, no telefone e em rótulos de produtos de consumo. Mas são apenas pistas que, aparentemente, mais o perturba do que ajuda a esclarecer a situação. Os objetos começam a apodrecer e logo se percebe que pertencem ao passado imiscuídos no presente. Um processo de regressão começa a ocorrer com o passado se misturando ao presente, como que tomando o seu lugar sem que seja uma espécie convencional de volta no tempo.
O ponto final de regressão, agora completo, é 1939. Chip e os inerciais ainda vivos estão reunidos para o funeral de Runciter. Mas descobrem que, na verdade, não é Runciter que morreu. Toda esta realidade regressiva acontece na realidade daqueles que estão em meia-vida, através de Jory, uma das pessoas do moratório de Zurique que, como se fosse um vampiro, precisa sugar as meias-vidas das pessoas que lá estão para manter a sua própria.
Chip desconfiava de Pat Conley e ela mesma, ingênua, acreditava que ela era a responsável já que na verdade era uma espiã infiltrada no grupo de Runciter. Mas todos pouco a pouco vão perdendo suas meias-vidas. Até que entra em cena, por meio da comunicação de Runciter, o ubik, uma lata de spray que interrompe o processo de regressão e preserva as pessoas no estado de meia-vida. Seria uma criação das pessoas em meia-vida, numa tentativa de enfrentar a volúpia de Jory.
Assim como Chip e os demais personagens em boa parte da história somos conduzidos a uma completa desorientação. Que mesmo que revelada depois, só nos coloca em outras situações desorientadoras e difíceis de aceitar. Por exemplo: depois do acidente Chip e seus colegas descobrem que as moedas que usam têm a efígie de Runciter. E o que pensar quando, posteriormente, Runciter vê as suas moedas com a efígie de Chip?
Ubik vem de ubiquidade, daquilo ou daquele que está em toda parte, e por isso cumpre esta função de manter uma realidade pós-vida, evitando uma morte definitiva. É mais que isso, porém. Torce o conceito de realidade em que nos amparamos e apresenta uma nova perspectiva onde as fronteiras da vida e da morte se perdem. No fundo a discussão subjacente é da complexidade da mente humana. De como o nosso entendimento racional daquilo que compreendemos como realidade, é também uma construção mental, sobretudo, talvez, do racionalismo cartesiano do Ocidente. Isso porque Ubik não é a primeira e nem a última história do autor a tratar de tais temas, sendo notória a sua tentativa de compreensão mais expandida da realidade por meio de uma concepção, diria, mais voltada ao budismo e suas outras ramificações orientais.
No contexto deste, digamos, diálogo sutil e implícito entre concepções ocidentais e orientais do significado do real e da existência, a última epígrafe é a mais eloquente e enigmática:

Eu sou Ubik. Antes que o universo fosse, eu sou. Eu fiz os sóis. Eu fiz os mundos. Eu criei as vidas e os lugares que elas habitam. Eu as transfiro para cá, eu as ponho ali. Elas seguem minhas ordens, fazem o que mando. Eu sou o verbo e meu nome nunca é dito, o nome que ninguém conhece. Eu sou chamado de Ubik, mas este não é o meu nome. Eu sou. Eu Sempre serei.” (pág. 237).

Ubik também é agradável porque Dick tem uma prosa limpa, fluente, sem firulas. De forma paradoxal tem um texto elegante para tratar de assuntos tão complexos. Se pensarmos no tour de force temático de O Caçador de Androides, um romance inteiro que se passa num único dia, veremos que esta obra tem o mesmo tom limpo e econômico. Possivelmente fruto deste momento de sua carreira, já que nem sempre o autor apresentou tal clareza em expor suas ideias.
A obra já era conhecida do leitor brasileiro mais aficcionado, através da publicação em Portugal, na coleção de ficção científica da Europa-América, em seu número seis, em 1980. Mas a sua nova publicação em 2019 no Brasil pela editora Aleph é dos mais relevantes porque Ubik é um romance fundamental, tanto para o universo da ficção científica como fora dele.
— Marcello Simão Branco



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