Ao Cair da Noite (Just after Sunset), Stephen King. Tradução
de Fabiano Morais. 398 páginas. Rio de Janeiro: Editora Objetiva/Suma de Letras,
2011.
Stephen King tem sido publicado com frequência no
Brasil há mais de trinta anos. A começar pela carioca Francisco Alves Editora, nos anos
1980 e 1990, a seguir nos anos 2000 pela também carioca Objetiva, e mais recentemente pela paulista Companhia das Letras. Se a maior
parte de seus títulos é composta de romances, a maioria de suas histórias são
contos e noveletas.
King afirma que escreve contos por duas razões
básicas. Primeiro porque gosta; escrever contos serve para o manter ativo,
exercitar constantemente a criatividade entre um ou outro projeto literário de
maior envergadura, na maior parte das vezes um romance volumoso. Segundo porque
afirma — e não é primeira vez que o faz na introdução de uma coletânea — que,
ao escrever e publicar histórias curtas, ajuda a mantê-las vivas, já que esta
forma literária tem sido cada vez menos praticada, tanto pela dificuldade em si
como, principalmente, pelo rendimento muito maior que um romance traz.
Esta é a segunda coletânea de King publicada no
país pela Objetiva. A primeira foi Tudo É Eventual,[1] em 2003, e continha 14 histórias, algumas
delas poderosas como, por exemplo, “O Homem do Terno Preto”, “As Irmãzinhas de
Eluria” e “Andando na Bala”. Quase dez anos depois, King reúne mais 13 neste Ao
Cair da Noite. Há histórias tão boas quanto estas citadas na coletânea
anterior? Sim, pelo menos três delas: “A Corredora”, “A Bicicleta Ergométrica”
e “n.”
O texto de “A Corredora” é vibrante e angustiante
ao mesmo tempo. Uma mulher perde seu bebê, e tudo o que consegue fazer depois é
correr. Torna-se uma corredora compulsiva. Claro, é para esquecer que ela
assume essa obsessão, ou melhor, para fugir. O casamento entra em crise e ela
se refugia na casa de praia do pai, numa cidadezinha da Flórida. Até topar
acidentalmente com um psicopata. É espancada, presa e torturada. Sua única
chance é se desvencilhar da cadeira em que está amarrada, antes que o seu algoz
volte. Ela perceberá que o fato de ter adquirido o hábito diário de correr será
fundamental para escapar do maníaco, que, por sua vez, também tem suas manias e
fobias. Com um enredo aparentemente simples, “A Corredora” tem o mérito de
segurar a leitura de forma igualmente compulsiva (uma das maiores e mais
conhecidas virtudes de King), por meio de um ritmo de thriller, além das
sutilezas psicológicas de cada personagem também serem parte vital no êxito da
história.
“A Bicicleta Ergométrica”, por sua vez, também
explora uma premissa simples, a da necessidade quase premente que todos temos
de controlar a alimentação. Um ilustrador recebe más notícias do médico, compra
uma bicicleta ergométrica, e torna-se fissurado em andar nela. Não no exercício
em si, mas nos efeitos psicológicos que provoca, pois ele imagina estar
eliminando as funções do próprio corpo, como se operários perdessem o emprego
de limpar seu organismo dos excessos alimentares. Desenha uma tela com os
“operários” numa estrada e a situação fica cada vez mais “normal” em sua mente.
É um conto dos mais perturbadores, e lida com o limite da sanidade e da loucura.
Mas se há um texto de horror abertamente
sobrenatural é “n.”, que também
lida com questões se saúde mental. Um psiquiatra é procurado por um paciente
com toc (transtorno obssessivo
compulsivo) e relata seu desespero a partir do encontro com um conjunto de
pedras misteriosas achadas numa propriedade abandonada à beira de uma estrada.
Elas provocariam efeitos ilusórios e visões aterradoras, como que vindas de uma
outra dimensão da realidade. Apesar do tratamento, ele comete suicídio, e a
título de comprovar a insanidade do paciente, o psiquiatra vai atrás das tais
pedras para descobrir que também está profundamente perturbado pelos
acontecimentos. King revela que se inspirou na novela O Grande Deus Pã
(1895), de Arthur Machen, mas me veio à mente ecos de Lovecraft. Seja como for,
uma história de horror aterradora e de alto nível.
Em Ao Cair da Noite, King trabalha com
alguns temas recorrentes, embora o livro não seja uma coleção de histórias de
horror no sentido mais tradicional, ou seja, ligada a eventos sobrenaturais
malignos. Ao invés, com eventos sobrenaturais ligados à exploração de situações
pós-morte. É o caso do conto que abre o livro, “Willa”, uma história triste, em
que as pessoas custam a crer que morreram depois de um acidente ferroviário, até
que dois deles, um casal, desabafa suas mágoas numa casa noturna. Outro é “The
New York Times a Preços Promocionais Imperdíveis”, em que uma viúva
recebe o telefonema do finado marido às vésperas de seu funeral, com este
descrevendo onde está, sem perceber que já partiu. Mais um é “Ayana”, que lida
com a questão do poder de cura milagrosa que algumas pessoas podem possuir e de
como esse dom pode se tornar um fardo a ser carregado. Mas o melhor é “As
Coisas que Eles Deixaram Para Trás”, em que objetos pessoais de companheiros de
trabalho mortos no 11 de Setembro surgem do nada no apartamento de um sujeito
que faltou ao trabalho no dia fatídico. King disse que foi profundamente
abalado pelos atentados, como, de resto, a maioria das pessoas civilizadas, e
escreveu esta bela e tocante história para tentar extravasar seus sentimentos a
respeito.
Outra característica constante do autor é colocar
os protagonistas em situações improváveis, absurdas, mas teoricamente possíveis
em nosso mundo ilusoriamente ordenado. Ele procura lidar com horrores
possíveis, e, por isso mesmo, mais assustadores. Temos exemplos neste livro,
nas penúrias pelo qual passam os personagens de “Mudo”, e, sobretudo, “No Maior
Aperto”. Pode soar como lugar comum, mas quem tiver lido estas duas histórias
pensará duas ou mais vezes antes de dar carona a um deficiente auditivo ou,
mais prosaicamente, usar um banheiro químico — aliás, algo desagradável por si
mesmo.
No conjunto, Ao Cair da Noite é uma
coletânea bem temperada em termos temáticos, sustentada pela prosa segura de
sempre, além de personagens críveis envoltos com situações tristes ou à beira
do desespero. Se há pelo menos três histórias realmente boas, a maioria das
outras não fica muito atrás, tornando este livro um entretenimento de horror
competente, mesmo que já tenhamos encontrado King em momentos mais brilhantes.
Ele continua em boa forma, e isso é melhor do que a maioria dos outros
escritores consegue atingir em seus melhores momentos.
– Marcello Simão Branco
[1]
Escrevi uma resenha deste livro para o site Scarium Online, disponível
em http://www.scarium.com.br/artigos/sombras/simao11.html.
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