sábado, 1 de junho de 2019

Ao Cair da Noite


Ao Cair da Noite (Just after Sunset), Stephen King. Tradução de Fabiano Morais. 398 páginas. Rio de Janeiro: Editora Objetiva/Suma de Letras, 2011.


Stephen King tem sido publicado com frequência no Brasil há mais de trinta anos. A começar pela carioca Francisco Alves Editora, nos anos 1980 e 1990, a seguir nos anos 2000 pela também carioca Objetiva, e mais recentemente pela paulista Companhia das Letras. Se a maior parte de seus títulos é composta de romances, a maioria de suas histórias são contos e noveletas.
King afirma que escreve contos por duas razões básicas. Primeiro porque gosta; escrever contos serve para o manter ativo, exercitar constantemente a criatividade entre um ou outro projeto literário de maior envergadura, na maior parte das vezes um romance volumoso. Segundo porque afirma — e não é primeira vez que o faz na introdução de uma coletânea — que, ao escrever e publicar histórias curtas, ajuda a mantê-las vivas, já que esta forma literária tem sido cada vez menos praticada, tanto pela dificuldade em si como, principalmente, pelo rendimento muito maior que um romance traz.
Esta é a segunda coletânea de King publicada no país pela Objetiva. A primeira foi Tudo É Eventual,[1]  em 2003, e continha 14 histórias, algumas delas poderosas como, por exemplo, “O Homem do Terno Preto”, “As Irmãzinhas de Eluria” e “Andando na Bala”. Quase dez anos depois, King reúne mais 13 neste Ao Cair da Noite. Há histórias tão boas quanto estas citadas na coletânea anterior? Sim, pelo menos três delas: “A Corredora”, “A Bicicleta Ergométrica” e “n.”
O texto de “A Corredora” é vibrante e angustiante ao mesmo tempo. Uma mulher perde seu bebê, e tudo o que consegue fazer depois é correr. Torna-se uma corredora compulsiva. Claro, é para esquecer que ela assume essa obsessão, ou melhor, para fugir. O casamento entra em crise e ela se refugia na casa de praia do pai, numa cidadezinha da Flórida. Até topar acidentalmente com um psicopata. É espancada, presa e torturada. Sua única chance é se desvencilhar da cadeira em que está amarrada, antes que o seu algoz volte. Ela perceberá que o fato de ter adquirido o hábito diário de correr será fundamental para escapar do maníaco, que, por sua vez, também tem suas manias e fobias. Com um enredo aparentemente simples, “A Corredora” tem o mérito de segurar a leitura de forma igualmente compulsiva (uma das maiores e mais conhecidas virtudes de King), por meio de um ritmo de thriller, além das sutilezas psicológicas de cada personagem também serem parte vital no êxito da história.
“A Bicicleta Ergométrica”, por sua vez, também explora uma premissa simples, a da necessidade quase premente que todos temos de controlar a alimentação. Um ilustrador recebe más notícias do médico, compra uma bicicleta ergométrica, e torna-se fissurado em andar nela. Não no exercício em si, mas nos efeitos psicológicos que provoca, pois ele imagina estar eliminando as funções do próprio corpo, como se operários perdessem o emprego de limpar seu organismo dos excessos alimentares. Desenha uma tela com os “operários” numa estrada e a situação fica cada vez mais “normal” em sua mente. É um conto dos mais perturbadores, e lida com o limite da sanidade e da loucura.
Mas se há um texto de horror abertamente sobrenatural é “n.”, que também lida com questões se saúde mental. Um psiquiatra é procurado por um paciente com toc (transtorno obssessivo compulsivo) e relata seu desespero a partir do encontro com um conjunto de pedras misteriosas achadas numa propriedade abandonada à beira de uma estrada. Elas provocariam efeitos ilusórios e visões aterradoras, como que vindas de uma outra dimensão da realidade. Apesar do tratamento, ele comete suicídio, e a título de comprovar a insanidade do paciente, o psiquiatra vai atrás das tais pedras para descobrir que também está profundamente perturbado pelos acontecimentos. King revela que se inspirou na novela O Grande Deus Pã (1895), de Arthur Machen, mas me veio à mente ecos de Lovecraft. Seja como for, uma história de horror aterradora e de alto nível.
Em Ao Cair da Noite, King trabalha com alguns temas recorrentes, embora o livro não seja uma coleção de histórias de horror no sentido mais tradicional, ou seja, ligada a eventos sobrenaturais malignos. Ao invés, com eventos sobrenaturais ligados à exploração de situações pós-morte. É o caso do conto que abre o livro, “Willa”, uma história triste, em que as pessoas custam a crer que morreram depois de um acidente ferroviário, até que dois deles, um casal, desabafa suas mágoas numa casa noturna. Outro é “The New York Times a Preços Promocionais Imperdíveis”, em que uma viúva recebe o telefonema do finado marido às vésperas de seu funeral, com este descrevendo onde está, sem perceber que já partiu. Mais um é “Ayana”, que lida com a questão do poder de cura milagrosa que algumas pessoas podem possuir e de como esse dom pode se tornar um fardo a ser carregado. Mas o melhor é “As Coisas que Eles Deixaram Para Trás”, em que objetos pessoais de companheiros de trabalho mortos no 11 de Setembro surgem do nada no apartamento de um sujeito que faltou ao trabalho no dia fatídico. King disse que foi profundamente abalado pelos atentados, como, de resto, a maioria das pessoas civilizadas, e escreveu esta bela e tocante história para tentar extravasar seus sentimentos a respeito.
Outra característica constante do autor é colocar os protagonistas em situações improváveis, absurdas, mas teoricamente possíveis em nosso mundo ilusoriamente ordenado. Ele procura lidar com horrores possíveis, e, por isso mesmo, mais assustadores. Temos exemplos neste livro, nas penúrias pelo qual passam os personagens de “Mudo”, e, sobretudo, “No Maior Aperto”. Pode soar como lugar comum, mas quem tiver lido estas duas histórias pensará duas ou mais vezes antes de dar carona a um deficiente auditivo ou, mais prosaicamente, usar um banheiro químico — aliás, algo desagradável por si mesmo.
No conjunto, Ao Cair da Noite é uma coletânea bem temperada em termos temáticos, sustentada pela prosa segura de sempre, além de personagens críveis envoltos com situações tristes ou à beira do desespero. Se há pelo menos três histórias realmente boas, a maioria das outras não fica muito atrás, tornando este livro um entretenimento de horror competente, mesmo que já tenhamos encontrado King em momentos mais brilhantes. Ele continua em boa forma, e isso é melhor do que a maioria dos outros escritores consegue atingir em seus melhores momentos.

– Marcello Simão Branco



[1] Escrevi uma resenha deste livro para o site Scarium Online, disponível em http://www.scarium.com.br/artigos/sombras/simao11.html.

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