Tangentes da Realidade,
Jeronymo Monteiro. Capa de Pavel Kudis. Orelha de Jurandi Santos. São Paulo:
Livraria Quatro Artes Editora, Série Infinito. 204 páginas. Lançamento original
de 1969.
Jeronymo
Monteiro (1908-1970) fez um pouco de tudo na ficção científica brasileira, ao
atuar como escritor, radialista, jornalista, fã e editor. É difícil encontrar
alguém semelhante e que tenha atuado por tantos anos, do final dos anos 1930
até o início dos anos 1970. Não por acaso alguns o apelidam de “Pai da Ficção Científica
Brasileira”.
Assim,
embora ele pertença à Geração GRD, ou de forma mais acadêmica Primeira Onda da
Ficção Científica Brasileira (1958-1972), ele já atuava antes no gênero, ao
contrário de outros autores de destaque, como André Carneiro (1922-2014), Fausto
Cunha (1923-2004) e Rubens Teixeira Scavone (1925-2007). Mas o que também
distingue Monteiro é o seu enfoque pessoal para a FC, uma perspectiva
socialmente crítica e, principalmente, humanista. Esta virtude está presente em
toda a sua obra, de romances e contos, mas é talvez neste Tangentes da Realidade – aliás, cá pra nós, que título bonito! –,
que se mostra de maneira mais desenvolvida, madura.
Este
livro é a sua única coletânea, e os contos nela publicados foram escritos em
diferentes épocas, de 1947 a 1964, a maioria deste ano. Alguns dos mais antigos
foram reescritos, mas é possível perceber que, reunidos, formam um todo
coerente, embora sejam tematicamente bem diversificados: contatos com
extraterrestres, exploração espacial, guerra nuclear, fenômenos psíquicos
inexplicáveis, evolução humana etc. A coerência gira em torno da ideia de que
alguma coisa sempre dá errada em todas as atividades exercidas pelo homem. Há
um sentido de trágico, como se o que poderia dar certo, por causa de limitações
da natureza humana, como a vaidade, a inveja, o egoísmo, a ambição, ou o
simples azar colocasse tudo em risco. Mesmo com este sentido mais pessimista,
por vezes, emerge também uma certa ingenuidade com relação às ações e
comportamentos dos personagens, o que, se numa primeira vista não está de
acordo com esta visão mais crítica, por outro, é como se mostrasse que o homem
é também um ser voluntarista e, por vezes, altruísta com relação aos seus interesses
e seus semelhantes.
A
década de 1960 foi a última com produção do autor – que no fim da vida editou a
revista Magazine de Ficção Científica,
versão brasileira da prestigiosa Fantasy
& Science Fiction –, com três livros: Fuga Para Parte Alguma (1961), talvez o seu melhor livro, uma FC de
pesadelo em que formigas se reproduzem sem controle a ameaçam a vida
humana na Terra; Visitantes do Espaço
(1963) – sobre alienígenas que aterrizam em pleno planalto central brasileiro –,
e Tangentes da Realidade (1969).
Neste sentido, a coletânea é sua única obra publicada já sob o regime militar.
Este detalhe é importante porque o livro é dos poucos da FCB que dá um
testemunho do momento político sombrio que o país vivia – já no AI-5 –, na
mesma época de sua ocorrência, e ainda por cima de um ponto de vista pessoal.
Em
“O Copo de Cristal” (maio de 1964), narra-se a história de um copo que é
reencontrado depois de muitos anos e as visões estranhas e perturbadoras que
ele provoca. O protagonista – vivido pelo alter
ego do autor – fala sobre sua prisão, possivelmente denunciado por algum
apoiador da ditadura. Apesar de ser contada de passagem na noveleta é de um
realismo assustador e expõe a revolta do autor com a violência que sofreu. De
certa forma, então, o copo de cristal se presta a uma reflexão sobre o arbítrio
e dos rumos possíveis de uma cultura autoritária, não especificamente no
Brasil, mas na humanidade em geral. Visto no escuro o copo produz imagens sobre
possíveis futuros, todos eles com cenas de violências e guerras. Nesta
história, a melhor do livro, e incluída em Os
Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica (2007), organizado por
Roberto de Sousa Causo, está presente de maneira mais completa sua visão de
mundo humanista. Monteiro, que viveu nos últimos anos de sua vida na pacata
Mongaguá, no litoral sul de São Paulo mostra também no conto como valorizava
uma vida despojada do consumismo e valores materiais. O mar simboliza esta
simplicidade que harmonizava o humanismo com a natureza. “O Copo de Cristal” é
uma obra-prima.
Outra
noveleta notável é “Um Braço na Quarta Dimensão” (também escrita em maio de
1964), que conta a história de um pintor humilde vítima de um dom (ou
maldição). Contratado para pintar a casa do alter
ego de Monteiro, ele desaparece fisicamente quando fica em pânico por algum
motivo. Justamente numa destas situações perdeu o seu braço, preso dentro de
uma parece, após se materializar do sumiço. O dono da casa o convence a ir com
ele a São Paulo para uma consulta com um hipnólogo. Ora, ninguém menos que o já
citado escritor de FC André Carneiro que, de fato, atuou na área, tendo escrito
dois livros sobre o assunto. Mas o encontro acaba por não ocorrer para o
infortúnio do pobre pintor. Uma história que fica nas franjas entre a FC e o
fantástico, e mostra suas muitas possibilidades temáticas. Não por acaso foi
incluída na antologia Os Melhores Contos
Brasileiros de Ficção Científica Brasileira: Fronteiras (2009).
Além
destas o alter ego do autor ressurge
em mais duas histórias, dando a entender que, de certa forma, estas aventuras
tenham alguma coisa de autobiográfico – certamente o caso mais concreto é de “o
Copo de Cristal”. Pois na terceira destas histórias, “A Incrível História de
Tômas de Saagunto”, sugere-se que Monteiro ficcionalizou com as tintas do
fantástico uma situação que teria testemunhado. Depois de muitos anos, Mendes –
o nome da vez que representa o autor no livro –, reencontra um velho amigo dos
tempos de juventude, que foi morar em Mongaguá. É um relato mais estranho do
que fantástico sobre como um acidente trágico numa mina mudou para sempre a
vida de seu amigo.
“O
Sonho”, que fecha o livro (1950, reescrita em junho de 1964), é uma história de
teor mais intimista, em que também o alter
ego de sua esposa Car (de Carmen), reaparece, depois de participar em “O
Copo de Cristal” e “Um Braço na Quarta Dimensão”. O casal oferece em sua casa
de praia um churrasco aos amigos, em que um deles conta um estranho sonho sobre
sua presença nos campos de batalha na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.
A força reside na verossimilhança do relato, extremamente realista e que serve
para denunciar, mais uma vez, a insanidade e os horrores da guerra.
Como
se vê ao menos metade das histórias são contadas de uma perspectiva bem
pessoal, sugerindo que tenham sido escritas a partir de eventos vivenciados
pelo autor. Já a outra metade das histórias apresentam temas mais tradicionais
da FC, com uma verve mais voltada para a ação. Como, por exemplo, “Base
Espacial Alfa” (1955, reescrita em 1964) – publicada em sua primeira versão na Antologia Brasileira de Ficção Científica
(1961), organizada por Gumercindo Rocha Dorea. Versa sobre a impossibilidade da
futura exploração do espaço devido a não superação das hostilidades políticas
entre as nações. Outra nesta mesma linha é “Missão de Paz” (1955, reescrita em
junho de 1964), sobre as dificuldades de superação de preconceitos com o
anúncio da chegada à Terra de uma civilização extraterrena.
Duas
histórias complementam o volume, e acentuam o aspecto trágico da condição
humana. A primeira delas é “As Pedras Radiantes” (junho de 1964). Conta sobre
um estranho comerciante que oferece diamantes a preços módicos às joalherias.
Na verdade é um alienígena que procura testar os valores humanos, que não
resistem à tentação das pedras, expondo toda a mesquinharia e egoísmo da
condição humana, como uma civilização bárbara, não qualificada para frequentar
uma comunidade de civilizações interplanetárias. Mais incisiva ainda é “O Elo
Perdido” (de 1947, reescrita em 1964), sobre um casal que tem um filho que
nasce com uma mutação, com características semelhantes a um neanderthal. Uma
situação que teria sido provocada devido às doses de radioatividade que o pai
teria recebido quando havia trabalhado num laboratório de física nuclear. Além
do insólito do tema chamar a atenção, o mais forte é a não aceitação do pai,
que passa a viver em constante conflito com a criança. Uma história, sobretudo,
sobre como o preconceito pode ser mais forte do que o amor, mesmo que seja de
um pai com relação ao seu filho.
Em
suma, Tangentes da Realidade é uma
obra madura, de conclusão da obra de Jeronymo Monteiro. Em termos de prosa,
demonstra habilidade em envolver o leitor em suas tramas e tem como maior
virtude os diálogos inspirados, que por vezes soam como se estivéssemos
testemunhando ao vivo as situações. Já a partir dos temas, como já dito,
ressalta a sua postura de vida simples, ilustrada pelas belas imagens da vida
litorânea e pelo comportamento solidário com os amigos ou humildes. Falando de
uma forma mais geral, temos com este livro mais um exemplo da principal
característica e, diria, virtude dos autores da Primeira Onda: sua postura
socialmente crítica e humanista. Alguns observadores da nossa FC defendem, não
sem alguma frequência, de que a FC produzida nos anos 1960 não é muito atraente,
sendo inferior ao que se fez posteriormente, em especial nos anos 1990, com o
pessoal da Segunda Onda. Se estiverem se referindo ao grau de qualidade da
especulação ficcional e da variedade dos temas tratados, talvez tenham razão,
mas subestimam o que ela ofereceu de mais interessante e ainda não superado: a
crítica social e a postura mais madura com que os autores daquele período
refletiram sobre o mundo, as transformações tecnológicas e a condição humana.
–
Marcello Simão Branco
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