domingo, 27 de setembro de 2015

Celular, Stephen King

Celular (Cell), Stephen King. 398 páginas. Tradução de Fabiano Morais. Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2007.

Romance de horror e ficção científica do festejado escritor norte-americano Stephen King, autor de best sellers como O iluminado (The shining), Carrie (Carrie), A dança da morte (The stand), Christine (Christine), entre outros.
Em Celular, King volta a um tema que ele mesmo já explorou em outras histórias: o do cidadão americano comum diante do fim do mundo como o conhecemos. Desta vez, ele é Clayton Riddell, um jovem artista que acaba de assinar o seu primeiro contrato com uma grande editora de histórias em quadrinhos de Boston. Ao sair da editora, por volta da 15 horas do dia 1 de outubro,  diante de um prosaico quiosque de sorvetes, testemunha um surto coletivo de loucura da população em geral. As pessoas começam a se engalfinhar em lutas sangrentas e mortais, automóveis fora de controle atropelam pedestres e invadem lojas, causando grande destruição, pessoas em pânico correm pelas ruas, perseguidas por outras que gritam sons desarticulados.
Um desconhecido ataca Clay com um cutelo de açougueiro, mas Clayton é salvo pelo providencial intervenção de Thomas McCourt, um homem baixinho, de bigotes, e com um ar um tanto afetado, mas que não estava louco. Juntos, eles sobrevivem às primeiras horas de caos escondidos num bar, onde encontram outras pessoas igualmente apavoradas e em estado de choque, como a jovem Alice Maxwell, que perdeu a mãe para a loucura. Do lado de fora, a matança continua e, em algum momento, acaba a energia elétrica, assinalando o fim da civilização humana na Terra.
Clay está muito longe de sua casa, em Kent Pond, e preocupa-se com sua esposa Sharon e seu filho Johnny, de doze anos, que lá ficaram enquanto ele empreendia a viagem à Boston. Durante a noite, as coisa se acalmam e, uma vez que Tom mora nos arredores da Boston, Clay e Alice decidem que é uma boa ideia acompanhá-lo até lá. Quando saem da cidade, percebem que boa parte dela arde em chamas.
Eles passam o restante da noite na casa em que Tom morava apenas com seu gato, sem maiores surpresas. Especulando sobre as causas do fenômeno, chegam a conclusão que pode ter sido ocasionado por algum tipo de pulso eletrônico distribuído pelos celulares, e passam a evitar todo o tipo de aparelhos, incluindo rádios e televisores, que também poderiam distribuir o pulso. Sem condição de se comunicar, o único modo de Tom ter notícias da família é indo até Kent Pond. Enquanto se preparam para a longa expedição, observam os enlouquecidos, aos quais chamam de "fonáticos". Percebem que eles demonstram um padrão comportamental: desaparecem durante a noite, mas são muito ativos durante o dia, circulando como zumbis pelas ruas, em busca de alguma coisa que nem eles mesmos parecem saber o quê. A princípio, atacam-se mutuamente, mas esse comportamento aos poucos começa a desaparecer. Os fonáticos também não demonstram interesse em entrar nas casas, de forma que o grupo decide viajar durante a noite, recolhendo-se em algum abrigo durante o dia. Com armas de fogo obtidos numa casa abandonada, partem rumo a Kent Pond.
Durante as longas semanas seguintes, os três companheiros encontram ao longo das estradas dos Estados Unidos um cenários de completo caos e decadência. Cidades abandonadas, muitas destruídas, milhares de carros acidentados com os corpos dos motoristas ainda dentro deles, muitas vezes semi-devorados, e cadáveres insepultos espalhados por toda parte. Os fonáticos, cada vez mais deteriorados, parecem não ter consciência de sua situação. Imundos, alguns com ferimentos gravíssimos, seguem sua rotina sem sentido. Aos poucos os peregrinos percebem que eles estão se organizando em grandes grupos e que parecem comunicar-se telepaticamente.
Nas ruínas de uma escola, Clay, Tom e Alice encontram Jordan, um jovem gênio da eletrônica que sobrevive ali junto ao Sr. Charles Ardai, velho professor e diretor interino da outrora pujante Academia Gaiten. Os três os ajudam a realizar um grande ataque a uma concentração de fonáticos num arruinado campo de futebol. A matança é tão horrenda que motiva o líder dos fonáticos, um negro tão ferido que eles o chamam de Homem Escangalhado, a dedicar atenção especial ao grupo. Fica claro que os fonáticos não estão apenas organizados, mas estabeleceram uma nova ordem social no mundo, incompatível com a existência dos não-fonáticos. A partir do primeiro encontro do Homem Escangalhado, que obriga o velho Charles a suicidar-se controlando-lhe os pensamentos, os quatro sobreviventes prosseguem o caminho para Kent Pond, com as esperanças de Clay cada vez mais reduzidas de encontrar sua esposa e filho com vida.
Celular está dividido em nove episódios, separados conforme a narrativa salta de nível para nível: "O pulso", "Malden", "Academia Gaiten", "As rosas murcharam, o jardim morreu", "Kent Pond", "Bingo do telefone", "Worm", "Kashwak" e "Salvar no sistema".
É interessante notar que, ao contrário de outros trabalhos, King não deixa para mostrar as cenas de horror mais pesadas no final do livro: ele as coloca logo de cara, a partir dos primeiros parágrafos da história, nos momentos iniciais da loucura que se abate sobre a civilização. A tensão escatológica sobrenatural mantém-se por todo o primeiro episódio, mas logo deixa de ser uma história de horror e torna-se uma ficção pós-apocalíptica na linha de Eu sou a lenda (I'm a legend) de Richard Matheson, associado a A noite dos mortos-vivos (Night of the living dead), de George Romero, autores aos quais King dedicou o romance.
Mas King vai ainda mais longe pois, além de ser um bom contador de histórias com ótimas referências, é um grande criador de personagens, provavelmente sua melhor qualidade como escritor. Cada um dos personagens das suas histórias – e Celular não é exceção – é um confidente do leitor, tão realista quanto pode ser um personagem de ficção. Desse modo, seus dramas parecem mais vivos e agudos, suas decisões mais dolorosas, suas experiências mais traumáticas. A certa altura, o leitor começa a se perguntar o que ele faria no lugar daquele personagem e, geralmente, as opções não são muito animadoras: tornamo-nos seus cúmplices, o que faz as questões morais envolvidas ficarem muito mais contundentes.
O romance, originalmente lançado em 2006 nos EUA, já recebeu o interesse da indústria cinematográfica, mas não espere pelo filme: o livro
é suficientemente bom por si só.
— Cesar Silva

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