O Perfuraneve
(Le Transperceneige), Jacques Lob e Benjamin Legrand (texto) e Jean-Marc
Rochette (desenho). Posfácio: Jean-Pierre Dionnet. Tradução: Daniel Luhmann.
Capa: Pedro Inoue. 280 páginas. São Paulo: Aleph, 2015. Lançamento original
entre 1982 e 2000.
Percorrendo a branca
imensidão de um eterno e congelante inverno de solidão, corre, de uma ponta à
outra da Terra, um trem cujo movimento nunca se encerra... É o expresso
perfuraneve, com seus mil e um vagões.
É com esse verso de certa melancolia e resignação que
tem início uma das obras de FC mais interessantes das últimas décadas. Embora
seja originalmente uma graphic novel, meu primeiro contato com a obra foi
por meio de sua adaptação ao cinema, Expresso do Amanhã (Snowpiercer;
2013), do diretor coreano Bong Joon-ho, o mesmo que dirigiu em 2019 o impactante
Parasita (Gisaengchung), premiado com o Oscar de melhor filme e a Palma
de Ouro em Cannes.
O filme é uma FC de primeiro nível, dos melhores
produzidos neste século, mas tinha vontade de ler a obra original, uma criação
dos franceses Jacques Lob (1932-1990), Benjamin Legrand (1950) e Jean-Marc
Rochette (1956).
A proposta da obra é instigante e beira a
originalidade – algo tão difícil –, ao mostrar um mundo num pós-apocalipse
climático, sob um rigoroso inverno glacial de cerca de – 90º C, e percorrido
por um trem gigantesco levando o que teria restado da humanidade, numa viagem
em círculos, rumo a lugar algum.
Sempre imaginei como tal projeto havia sido concebido
e a HQ esclarece que, originalmente, o bólido não se destinava a uma missão de
sobrevivência. Era um trem de turismo de luxo, que teve de ser adaptado para
abrigar o máximo possível de pessoas devido à catástrofe glacial. Assim, ao
trem original, foi acrescentado centenas de vagões e que quanto mais distantes
do original, menos relação guardava com o projeto para o qual havia sido
concebido. Com isso, do meio para o fim do comboio, as condições de vida só
fizeram piorar. Uma situação concreta de abandono à própria sorte, com menos
aquecimento, pouca comida e água, alojamentos improvisados e precários, sujeira
e muita, mas muita gente amontoada, superlotando a maioria dos vagões. E tudo
isso rigidamente controlado por uma força militar para que as pessoas não
ultrapassem seus vagões, ameaçando a vida dos bacanas da proa do expresso.
A certo ponto, é revelado que a falta de alimento
suficiente chegou ao ponto de levar as pessoas, desesperadas, a comerem os
restos dos mortos, que também não tinham onde ser sepultados. Por outro lado,
como dito, da metade até a locomotiva havia todos os luxos possíveis. Habitados
pela elite de políticos, empresários, religiosos e militares. Desfrutam do bom
e do melhor, com habitações confortáveis, locais para lazer e atividades
culturais (teatro, cinema), e alimentos fartos e saudáveis, produzidos em
hortas e granjas com frangos, coelhos e camundongos. Mas eles não vivem
tranquilos, pois temem uma invasão da maioria explorada dos vagões
retardatários.
O Perfuraneve
se divide em três histórias, escritas em momentos diferentes e reunidas nesta
edição: “A Fuga” (Le Transperceneige; 1982 – depois renomeada como The Escape),
“Os Exploradores” (The Explorers; 1999) e “A Travessia” (The Crossing; 2000). A
primeira escrita por Jacques Lob – o autor original da obra –, e a segunda e a
terceira por Benjamin Legrand, com todas ilustradas por Jean-Marc Rochette. Uma
quarta aventura, Terminus, saiu depois, em 2015, com textos de Olivier
Bouquet (1973) e Alexis Nolent (1967), com uma conclusão para a série. Isso
porque, de fato, o final da terceira história deixa o desfecho em aberto. Além
disso, uma prequela com três aventuras também foi publicada – entre 2019 e 2020
–, explorando eventos anteriores à primeira história, com textos de Nolent (assinado
como Matz) e desenhos de Rochette. Os dois primeiros já saíram, e o terceiro
está previsto para este ano.
“A Fuga” mostra o início da trama, com o trem
percorrendo o planeta após a catástrofe ambiental. É onde Proloff, um homem dos
últimos vagões consegue chegar até onde as pessoas vivem melhor. Mas com ele se
espalha uma doença rapidamente contagiosa, e ele é posto em quarentena. Onde
também é colocada, a bela Adeline Belleou, ativista de um movimento político
que busca melhorar as condições de vida dos miseráveis. Posteriormente, são
levados até a presença do presidente e do general, onde conhecem a vida de luxúria
da elite.
Os líderes querem que o casal organize a população
para que desocupem os últimos vagões e migrem para os do meio do comboio, pois
pretendem descartá-los porque a locomotiva estaria perdendo velocidade e, com
isso, pioraria as condições de sobrevivência, já que o aquecimento interno é
mantido pela alta velocidade constante do veículo. Mas, Proloff e Adeline
descobrem que, na verdade, a intenção é se livrar deles e dos explorados,
descartando os vagões antes que saiam de lá. Lideram, então, uma revolta, mas que
é inútil, já que a doença, supostamente trazida por Proloff, se espalhou e está
a matar a maioria das pessoas. O filme se concentra justamente nesta história, a
melhor das três.
A segunda, “Os Exploradores”, avança no tempo, e
apresenta um outro trem, o Desbrava-Gelo. Menor que o primeiro, mas também
socialmente dividido entre uma minoria abastada e uma maioria explorada,
transita na mesma rodovia circular. Viceja um medo comum: que possa colidir com
o Perfuraneve, tido como desaparecido. Assim, o trem é desacelerado e freia
para que uma missão de exploradores busque uma possível alternativa à vida
confinada. Apenas um soldado volta com vida, Puig Valles, e mesmo a contragosto
dos líderes, se torna uma liderança popular e se casa com Val Kennel, uma
artista e filha do governante. O isolamento e claustrofobia é tão intenso que
dá vazão ao surgimento de uma seita que acredita que, na verdade, eles vivem
numa nave espacial e estão no espaço e não na Terra.
Na terceira aventura, “A Travessia”, o mesmo
Desbrava-Gelo recebe uma mensagem de rádio vinda do outro lado do oceano. Com
isso, se reacende a esperança de que possa haver outro grupo de humanos
sobreviventes, e se organiza uma missão para chegar até lá. É revelado que, o
motor principal do Perfuraneve foi obtido, pois teria havido a temida colisão,
embora sem uma consequência dramática, e agora, o motor será usado para
potencializar o Desbrava-Gelo em sair dos trilhos, com o uso de esteiras.
Valles irá liderar a missão, mas com a oposição de alguns líderes, incomodados
com sua popularidade. Um motim estoura no interior do trem na ausência de
Valles, mas isso não será o pior, mas sim a frustração com o fato do sinal de
rádio ser apenas uma mensagem automática.
No fundo, para além da ousada ideia de uma máquina
movida numa energia de moto-perpétuo – um mito recorrente da Física –, o grande
tema da obra é a luta de classes. De como a elite explora a maioria miserável,
e a manipula para manter seus valores e luxos. Mas isso não dura para sempre –
assim como a eficiência das máquinas –, e o eixo da narrativa é o conflito
entre as duas classes, numa interessante extrapolação do materialismo histórico
marxista. Ainda mais por viverem num ambiente confinado, com recursos limitados
e sob severa censura e repressão.
O único porém na obra é uma certa falta de unidade
narrativa entre a primeira e as outras duas histórias. Talvez pelas demais
terem sido produzidas muito tempo depois e haver alguma confusão sobre o
surgimento do segundo trem e sua relação com o original e seu destino. Em todo caso,
a força dramática e de aventura entre as duas últimas histórias torna o
conjunto suficientemente robusto e satisfatório, ainda que inconcluso.
O livro que tenho em mãos – por sinal, extremamente
pesado! –, foi muito bem produzido pela Aleph, com uma qualidade gráfica e de
papel de alta qualidade, a par, creio, com o original francês. Os desenhos em
preto e branco só acentuam os dramas humanos, ainda mais porque em contraste
com o aflitivo branco eterno do exterior do trem. O volume é completado por
longo e intimista depoimento de Jean-Pierre Dionnet (1947), criador da célebre
revista de quadrinhos Metal Hurlant (1975-1987; 2002-2004; 2006), sobre
sua amizade com Jacques Lob e, através dela, sobre sua carreira até a criação
de O Perfuraneve.
Além desta HQ monumental e do filme, foi produzida
também uma série de TV, entre 2016 e 2020, com quatro temporadas. Ainda não a
vi, mas é provável que tenha seguido a linha crítica semelhante ao filme e,
principalmente da HQ, embora com mais liberdade de ação, dada a quantidade de
episódios.
O Perfuraneve
já é um clássico moderno da FC, por reunir algumas das características mais
relevantes do gênero: uma premissa especulativa instigante, plena de drama e
personagens complexos, além de discussões relevantes sobre a realidade e suas
perspectivas. No caso, sobre os possíveis efeitos trágicos da crise climática e
sua relação com o modo de produção capitalista.
—Marcello Simão Branco

