sábado, 4 de outubro de 2025

Como aprendi a amar o futuro

Como aprendi a amar o futuro: Contos solarpunk
Francesco Verso & Fabio Fernandes, orgs. 350 páginas. São Paulo: Plutão, 2023.

É incrível que não estejamos falando da antologia Como aprendi a amar o futuro desde o seu lançamento há dois anos. Pois trata-se da mais expressiva novidade no ambiente da fc desde o surgimento do cyberpunk, nos anos 1980. Porque ela é estranha e um pouco assustadora, como, aliás, toda a fc deveria ser. 
Desde a publicação em 2012 da antologia Solarpunk: Histórias ecológicas e fantásticas em um mundo sustentável, pela Editora Draco, ficou a impressão que o subgênero ali proposto não passava de uma variação ao cyberpunk com tecnologias verdes. Dizia-se que o solarpunk propunha uma ficção que apontava para um futuro no qual a humanidade daria certo, escapando do apocalipse e da distopia.
Se fosse mesmo isso, seria uma fc ingênua e equivocada, uma elegia a tecnocracia futura na qual todos os problemas causados ao meio ambiente planetário pela tecnologia seriam resolvidos, vejam só, pela própria tecnologia. Há, de fato, muita gente que pensa assim: para quê preservar o mundo hoje se a tecnologia irá nos salvar amanhã?
Bem, não é o que sugerem os treze contos e os três ensaios reunidos nas 350 páginas de Como aprendi a amar o futuro: Contos solarpunk, antologia organizada pelos pesquisadores Francesco Verso (Itália) e Fabio Fernandes (Brasil), publicada pela Plutão Livros em 2023.  
Para os autores presentes na antologia, a concepção do solarpunk não é, de forma alguma, positivista ou utópica.  Pelo contrário, é bastante pessimista, porque reconhece que o ponto sem volta já foi ultrapassado e o desastre ambiental é inevitável. Na verdade, já estamos vivendo suas consequências e não há como escapar, a não ser que aconteça alguma coisa muito radical e subversiva.
Tratam-se de histórias em que pessoas comuns tomam para si a tarefa de construir uma nova forma de viver num mundo devastado pela poluição e pela crise ambiental causadas pelas corporações e pelas elites que continuam fazendo o que sempre fizeram. Trata-se de uma ficção engajada, que pretende mostrar alternativas de sobrevivência dentro desse inevitável futuro ambiental destroçado. Uma fc politicamente militante, mais social e menos individual, que também discute aspectos ligados a diversidade étnica, cultural, de gênero e de pessoas com deficiência. Uma ação de guerrilha tecnológica, na qual grupos comunitários assumem a responsabilidade e o controle de sua sobrevivência em meio ao caos ambiental, a revelia das decisões de governo, que nos colocaram nessa enrascada para começo de conversa. 
Nas 350 páginas da antologia, textos de várias procedências, vindos de Argentina, EUA, China, Austrália, França e Espanha: "Empatia bizantina", de Ken Liu, "O zelador do Farol", de Andrew Dana Hudson, "Beton betularia", de Maria Antònia Martí Escayol, "Omnia sol temperat", de T. P. Mira-Echeverría e Guillermo Echeverría, "Contaminações", de Sylvie Denis, "Com uma bicicleta espacial vai-se a qualquer lugar", de Ingrid Garcia, "A terra-corpo", de Ciro Faienza, "A força da serpente é a força da gente", de Brenda Cooper, "Falácia efetiva", de Qiufan Chen, "O rancho espiral", de Sarena Ulibarri, "Linha de frente", de Gustavo Bondoni, e os brasileiros "Nina e o furacão", de Ana Rüsche e "Presságio de solidão", de Renan Bernardo. Também traz ensaios, assinados por Fabio Fernandes, Andrew Dana Hudson e Francesco Verso, conceituando o subgênero, citando precurssores e estabelecendo seus protocolos, tudo muito didático, embora o texto de Hudson tenha um quê de manifesto.
O time de tradutores também é grande: Jana Bianchi, Fernanda Castro, Morgana Feijão, Marina Scardoelli, Lina Machado, Thiago Ambrósio Lage, André Caniato. A capa traz um trabalho de Sávio Araújo.
Não que inexistam textos na fc tradicional que esbarram no tema, como os de Kim Stanley Robinson, que é citado nos ensaios publicados. No Brasil, escritores como Simone Sauressig ("O cuco de samaúma", em Universo Pulp: Multipunk, Avec, 2022) e Daniel Galera ("Tóquio" em O deus das avencas, Companhia das Letras, 2021) aproximaram-se do tema, mas a eles faltava o componente explosivo que abunda em Como aprendi a amar o futuro.
A edição só está disponível em ebook, e dá para ler de graça emprestando um exemplar na BibliON, aplicativo oficial da Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo que, aliás, foi como eu li. 
Vale a pena conhecer a antologia e entender o que realmente vem a ser esse tal de solarpunk. É para mexer com os brios e dar vontade de começar sua própria guerrilha contra o capitalismo agora mesmo.
A luta continua!
— Cesar Silva

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

As Mulheres dos Cabelos de Metal

 



As Mulheres dos Cabelos de Metal, Cassandra Rios. Capa: sem autoria. 162 páginas. São Paulo: Hemus, 1971.

 

Se a ficção científica no Brasil ainda é algo à margem do centro de produção da cultura nacional, há autores mainstream ou de outros gêneros que também a praticaram, mas é como se a obra de FC fosse ainda mais obscura, até para os fãs e especialistas. É o caso de Cassandra Rios (1932-2002), autora muito marcada por uma obra contestadora dos costumes e da sexualidade, através do erotismo e do lesbianismo. Além de militante homossexual, com o qual pagou um preço muito alto, sendo a escritora brasileira mais perseguida durante a ditadura militar.

Assim, ela surpreendeu com As Mulheres dos Cabelos de Metal, uma inusitada história de invasão alienígena comandada por uma civilização de mulheres. Por meio de um matriarcado, elas são mais inteligentes que os homens, reduzidos à força física e tarefas manuais. As mulheres tem corpos esculturais e cabelos compridos de metal que, ao toque, emite um som musical relaxante. De repente, suas naves surgem nos céus e desembarcam na Terra, depois de um período secreto para estudar os costumes da humanidade. Elas seduzem e matam os homens de forma implacável. E para completar a missão, é lançada uma nuvem venenosa indolor que extermina todas as formas de vida sobre a superfície do planeta. Não há meio de resistência possível e, em poucos dias, a humanidade conhece seu fim.

Terrível, né? Mas Zarka, uma das invasoras, é picada por uma cobra, e recebe a ajuda de um médico que vivia recluso em luto num sítio, após se sentir culpado pela morte de sua noiva. Com o veneno, Zarka perde temporariamente seus poderes – as alienígenas tem força física superior aos humanos, poder de hipnose e telepatia –, e deixa-se envolver emocionalmente por Patrick, o médico. Mas ele, ao descobrir o que ela é e qual sua missão, procura resistir aos seus encantos e, de alguma forma, tentar impedir o inevitável.

Devido ao seu período de recuperação, Zarka é dada como perdida, e após o sucesso da missão, deixada sozinha na Terra. Desta forma, ambos ficam como que desterrados. Ela sem suas companheiras e ele sozinho no mundo.

Assim, na maior parte da narrativa ocorre este relacionamento controverso entre uma zurk – o nome da civilização extraterrestre – e um humano. Após seguidos contratempos, terão de aprender a conviver juntos e, talvez recomeçar uma nova civilização em nosso planeta.

Mas por que as zurks aniquilaram a humanidade? Zarka explica que testes nucleares realizados na Lua destruíram parte de sua civilização e, por isso, não viram outra alternativa. Pois, sim, as zurks vivem na Lua, mais precisamente sob a superfície, com uma sociedade altamente tecnológica, capaz de viajar pelo espaço e, por meio de um aparelho de pulso, permitir até a invisibilidade. A intenção, após o fim da humanidade é, eventualmente, ocupar a própria Terra.

É um romance bem movimentado, primeiro na invasão em si e no processo de domínio e extermínio. Depois, do meio para o final, o drama entre a alienígena e o último dos homens. Ao desprezo dela e o ódio dele, haverá, gradualmente, a possibilidade de amor entre eles. Mas longe de ser simples ou inevitável.

Publicando esta obra no início dos anos 1970, Cassandra Rios – pseudônimo de Odete Pérez Rios –, faz parte do chamado momento distopico da FCB, quando aqueles que escreveram histórias do gênero, tinham como intenção criticar metaforicamente o regime militar. Rios, em particular, dentro deste contexto, dialoga com outras autoras que publicaram FC neste período, enfatizando, principalmente, a condição feminina na sociedade da época, como por exemplo, no autoritarismo niilista em Um Dia Vamos Rir Disso Tudo (1976), de Maria Alice Barroso ou na distopia alegórica feminista de Asilo nas Torres (1979), de Ruth Bueno.

Assim, se a crítica à ditadura é mais obliqua, presente mais nas mazelas da violência e opressão da civilização, o romance ganha força e relevância com o protagonismo feminino. Pois o patriarcado teria sido responsável pelo fracasso da civilização humana, e uma outra voltada mais à sensibilidade, à beleza e um sentido social mais coletivo, teria mais a ver com a condição da própria mulher. Aqui no caso, extremamente empoderada.

Mas ao ler a obra, não me parece que o comportamento do matriarcado lunar seja tão mais elevado, pois a solução que deram à ameaça nuclear que sofreram, não é muito diferente do que os homens tem feito ao longo de nossa História. Resolver conflitos e ameaças por meio da força e da guerra.

Sempre soube que Cassandra Rios era a “autora maldita” do Brasil. A mais perseguida e censurada da ditadura militar. E não porque se opunha politicamente ao regime de forma mais direta, mas por expor cruamente o falso moralismo da sociedade e os tabus da sexualidade. Mesmo assim, publicou 68 livros, quase todos de ficção erótica, entre 1948 e 2000, sendo uma das que mais venderam no país. Mas não deixou de ser surpreendente que ela tenha publicado um romance de FC, que tem o que dizer e, principalmente, é divertido e inteligente. Uma editora mais progressista poderia arriscar uma nova edição desta pérola quase anônima da nossa FC.

Marcello Simão Branco