sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O Filho do Homem

 



O Filho do Homem (Son of a Man), Robert Silverberg. Tradução: Luís Cadete. Capa: Estúdio Publicações Europa-América. 159 páginas. Mem Martins: Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica, n. 225, 1996.  Lançamento original em 1971.

 

Este romance é um dos mais ambiciosos de Robert Silverberg, escrito justamente no seu período mais criativo. Isso pode ser vislumbrado em duas vertentes: a temática e a literária. Pelo primeiro aspecto, levando longe a reflexão e a especulação sobre a evolução e destino da humanidade, e também, de certo modo, da própria Terra. E pelo segundo aspecto pelo estilo explicitamente literário, no sentido do arrojo da técnica narrativa, muito sofisticada.

Conta a história de Clay, um homem do século XX que, “tomado pela corrente do tempo” vai parar num futuro muito, muito distante, na casa dos bilhões de anos. Não há uma explicação sobre como ocorreu esta viagem ao futuro, e Silverberg não oferece nenhuma, embora, curiosamente, seja uma fonte de angústia e perplexidade do personagem. Assim, embora seja uma história com viagem no tempo, não explora essa premissa por si.

Nesta nova era, toda a história humana vivida por Clay se perdeu. Ninguém tem memória de nomes como Aristóteles, Cesar, Jesus, Leonardo, Shakespeare, Rousseau, Mozart, Darwin, Marx ou Einstein. Daqui há bilhões de anos, a nossa época não passará de uma tênue linha de eventos perdida num passado quase esquecido.

Tal constatação choca Clay, mas isso é só o começo. O grande tema do livro, como já dito, é a evolução das espécies inteligentes no planeta. Dentro de bilhões de anos, algumas delas irão reivindicar descendência com a humanidade de Clay, embora, devido a tantas eras passadas, os vínculos sejam muito frágeis, quase irreconhecíveis. Nesta época, não uma, mas seis espécies vagamente humanoides coabitam o planeta: os skimmers, eaters, awaiters, breathers, destroyers e interceders. Na verdade, eles não são contemporâneos, mas representam graus sucessivos de evolução, sem que uma nova etapa evolutiva represente a extinção da anterior.

Clay é recebido por Hanmer, um skimmer. Ele o introduz num grupo deles, e logo percebe que são seres com poderes extraordinários: eles se transformam fisicamente, assumem novos estados da matéria, viajam pelo espaço sideral. Talvez o único elo identificável com o homo sapiens, para além do aspecto primata semelhante, seja a sexualidade. Vivem o sexo de forma intensa e contínua. E mais: não tem um gênero definido. Eles têm a capacidade de se transformarem ora em macho, ora em fêmea.

O livro explora com grande desenvoltura a questão dos limites do que é ser humano. A evolução caminharia para além da forma humana em si, chegando ao ponto, a meu ver exagerado – de assumir novas formas físicas não humanas, como seres rastejantes ou esferoides. Mas embora a consciência se considere humana – pois assim se afirma –, talvez não o seja mais, porque, afinal, o que nos faz humanos também está relacionado com a nossa forma física.

O Filho do Homem é especialmente rico por suscitar reflexões como esta, e elas se estendem também, como já dito, à orientação sexual e suas mais diferentes práticas. Assim, poderíamos dizer que são humanoides transexuais ou pansexuais, já que transam também com árvores – não uma qualquer, mas capacitada para isso. Nesse sentido, num estágio em que os seres são masculinos e femininos, em diferentes momentos, à sua vontade, os próprios papéis e suas identidades se alteram e se redefinem, em situações novas e surpreendentes. Nesse sentido, a história se abre para questões interessantes sobre a sexualidade, despida de preconceitos e moralismos que apenas limitariam as possibilidades desta vertente da experiência humana. A mais prazerosa. Mas também a mais perturbadora. Há várias passagens de sexo intenso, com o próprio Clay envolvido, ora como homem, ora como mulher – pois os skimmers o habilitam a partilhar de parte de suas habilidades. Mas se alguém pensar que este é um romance erótico está enganado, pois é tudo descrito de forma, digamos, técnica ou, diria, literária demais. Não propriamente adjetivado, mas elaborado com um variadíssimo vocabulário de imagens e metáforas, para ilustrar menos o prazer e mais as possibilidades de interação psicológica entre humanos sexualmente ambivalentes.

O Filho do Homem me fez lembrar do ótimo romance Vênus Mais X (Vênus Plus X; 1961), de Theodore Sturgeon – publicado no Brasil pela Hemus nos anos 1980 –, em que o protagonista também vai parar no futuro em uma sociedade composta de seres humanos andróginos, que assumem, a depender do momento, papeis masculinos ou femininos. Mas nesta há uma sociedade altamente tecnológica e com seres robóticos a realizarem várias atividades.

Outra questão abordada na obra é a da mortalidade. Pois os skimmers e demais expressões do que um dia foi a humanidade estranham a finitude. Reconhecem que podem morrer, deixarem de existir, mas é uma experiência quase inexistente entre eles. Contudo, talvez pelo contato com Clay e sua ancestralidade extremamente frágil, alguns deles, como que tomados por curiosidade, irão partir para experiências que poderão conduzi-los à morte.

Neste futuro os seres de ascendência humanoide, bem como animais e vegetais em geral vivem em intensa ligação com a natureza. Os skimmers, em particular, organizam suas atividades em ciclos de rituais com a natureza: o sol, o mar, a noite, a chuva etc. Como já deve estar claro, estes humanos do futuro não se utilizam de nenhuma ferramenta ou tecnologia, pois tudo o que fazem é através da mente e uma verdadeira simbiose com aspectos da natureza. Assim, também não há uma ordem social identificável, bem como um sistema econômico ou um regime político que organize uma produção ou vida coletiva. Tudo é realizado de forma a interagir intensamente, seja do ponto de vista simbólico e sexual ou em comunhão quase que física com o planeta. Como se ele próprio tivesse alguma participação no contexto geral das formas de vida que o habitam. Tanto é assim, que os diferentes seres que reivindicam descendência com o homo sapiens vivem em regiões diferentes da Terra, que, de certa forma, ajudam a potencializar suas habilidades. Regiões com extremo calor, frio, luz, escuridão, aridez etc.




Como se vê, é um romance fascinante, fruto do momento de apogeu criativo de Silverberg e do movimento da New Wave, mas talvez, visto em retrospectiva, pareça excessivo. E nem só do ponto de vista temático, mas também estilístico, pois ele é composto em boa parte por parágrafos muito extensos, frases longas e poucos diálogos. Tudo isso, em meio a uma profusão impressionante de imagens descritivas, muito imagéticas e oníricas, que depois de um certo tempo causam um certo desconforto na leitura. Embora estimulante do ponto de vista temático, é cansativo. Ainda mais se considerarmos – e teve de ser neste caso – de uma tradução lusitana, que também apresenta suas esquisitices vocabulares.

É um livro visceral em muitos sentidos, uma experiência de ficção científica fora dos padrões. Talvez por isso, Silverberg considere O Filho do Homem um dos seus livros favoritos, como afirmou numa entrevista ao crítico Paul Turner numa edição da revista Vertex: The Magazine of Science Fiction, em 1973:

 

O Filho de Homem é estranho, surrealista, cheio de imagens oníricas, como se fosse uma linha de abastecimento subterrânea para meu próprio inconsciente literário. Eu amo este livro. Não encontrou grande aceitação popular, embora tenha certa reputação entre os críticos.

 

Sim, foi bem recebido na época pela crítica norte-americana. Mas talvez tenha sido eclipsado por outros grandes romances que ele escreveu na época como, por exemplo, Tempo de Mudança (Time of Changes; 1971) e Uma Pequena Morte (Dying Inside; 1972). De qualquer forma, mesmo que possa parecer um pouco exagerado, ou melhor, um pouco desequilibrado entre forma e conteúdo, o que realmente importa nesta obra é sua liberdade temática, diria mais, comportamental, com sua predisposição para o novo e a ausência de preconceitos, além de especulações fascinantes sobre o destino da humanidade e da própria Terra.

Marcello Simão Branco