O Filho do Homem (Son of a Man), Robert Silverberg. Tradução: Luís Cadete. Capa: Estúdio Publicações Europa-América. 159 páginas. Mem Martins: Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica, n. 225, 1996. Lançamento original em 1971.
Este romance é um dos mais ambiciosos de
Robert Silverberg, escrito justamente no seu período mais criativo. Isso pode
ser vislumbrado em duas vertentes: a temática e a literária. Pelo primeiro
aspecto, levando longe a reflexão e a especulação sobre a evolução e destino da
humanidade, e também, de certo modo, da própria Terra. E pelo segundo aspecto
pelo estilo explicitamente literário, no sentido do arrojo da técnica
narrativa, muito sofisticada.
Conta a história de Clay, um homem do
século XX que, “tomado pela corrente do tempo” vai parar num futuro muito,
muito distante, na casa dos bilhões de anos. Não há uma explicação sobre como
ocorreu esta viagem ao futuro, e Silverberg não oferece nenhuma, embora,
curiosamente, seja uma fonte de angústia e perplexidade do personagem. Assim,
embora seja uma história com viagem no tempo, não explora essa premissa por si.
Nesta nova era, toda a história humana
vivida por Clay se perdeu. Ninguém tem memória de nomes como Aristóteles,
Cesar, Jesus, Leonardo, Shakespeare, Rousseau, Mozart, Darwin, Marx ou
Einstein. Daqui há bilhões de anos, a nossa época não passará de uma tênue
linha de eventos perdida num passado quase esquecido.
Tal constatação choca Clay, mas isso é só
o começo. O grande tema do livro, como já dito, é a evolução das espécies
inteligentes no planeta. Dentro de bilhões de anos, algumas delas irão
reivindicar descendência com a humanidade de Clay, embora, devido a tantas eras
passadas, os vínculos sejam muito frágeis, quase irreconhecíveis. Nesta época,
não uma, mas seis espécies vagamente humanoides coabitam o planeta: os
skimmers, eaters, awaiters, breathers, destroyers e interceders. Na verdade, eles
não são contemporâneos, mas representam graus sucessivos de evolução, sem que
uma nova etapa evolutiva represente a extinção da anterior.
Clay é recebido por Hanmer, um skimmer.
Ele o introduz num grupo deles, e logo percebe que são seres com poderes
extraordinários: eles se transformam fisicamente, assumem novos estados da
matéria, viajam pelo espaço sideral. Talvez o único elo identificável com o
homo sapiens, para além do aspecto primata semelhante, seja a sexualidade.
Vivem o sexo de forma intensa e contínua. E mais: não tem um gênero definido.
Eles têm a capacidade de se transformarem ora em macho, ora em fêmea.
O livro explora com grande desenvoltura a
questão dos limites do que é ser humano. A evolução caminharia para além da
forma humana em si, chegando ao ponto, a meu ver exagerado – de assumir novas
formas físicas não humanas, como seres rastejantes ou esferoides. Mas embora a
consciência se considere humana – pois assim se afirma –, talvez não o seja
mais, porque, afinal, o que nos faz humanos também está relacionado com a nossa
forma física.
O Filho do Homem
é especialmente rico por suscitar reflexões como esta, e elas se estendem
também, como já dito, à orientação sexual e suas mais diferentes práticas. Assim,
poderíamos dizer que são humanoides transexuais ou pansexuais, já que transam
também com árvores – não uma qualquer, mas capacitada para isso. Nesse sentido,
num estágio em que os seres são masculinos e femininos, em diferentes momentos,
à sua vontade, os próprios papéis e suas identidades se alteram e se redefinem,
em situações novas e surpreendentes. Nesse sentido, a história se abre para
questões interessantes sobre a sexualidade, despida de preconceitos e
moralismos que apenas limitariam as possibilidades desta vertente da
experiência humana. A mais prazerosa. Mas também a mais perturbadora. Há várias
passagens de sexo intenso, com o próprio Clay envolvido, ora como homem, ora
como mulher – pois os skimmers o habilitam a partilhar de parte de suas
habilidades. Mas se alguém pensar que este é um romance erótico está enganado,
pois é tudo descrito de forma, digamos, técnica ou, diria, literária demais.
Não propriamente adjetivado, mas elaborado com um variadíssimo vocabulário de
imagens e metáforas, para ilustrar menos o prazer e mais as possibilidades de
interação psicológica entre humanos sexualmente ambivalentes.
O Filho do Homem
me fez lembrar do ótimo romance Vênus Mais X (Vênus Plus X;
1961), de Theodore Sturgeon – publicado no Brasil pela Hemus nos anos 1980 –,
em que o protagonista também vai parar no futuro em uma sociedade composta de
seres humanos andróginos, que assumem, a depender do momento, papeis masculinos
ou femininos. Mas nesta há uma sociedade altamente tecnológica e com seres
robóticos a realizarem várias atividades.
Outra questão abordada na obra é a da
mortalidade. Pois os skimmers e demais expressões do que um dia foi a
humanidade estranham a finitude. Reconhecem que podem morrer, deixarem de
existir, mas é uma experiência quase inexistente entre eles. Contudo, talvez
pelo contato com Clay e sua ancestralidade extremamente frágil, alguns deles,
como que tomados por curiosidade, irão partir para experiências que poderão
conduzi-los à morte.
Neste futuro os seres de ascendência
humanoide, bem como animais e vegetais em geral vivem em intensa ligação com a
natureza. Os skimmers, em particular, organizam suas atividades em ciclos de
rituais com a natureza: o sol, o mar, a noite, a chuva etc. Como já deve estar
claro, estes humanos do futuro não se utilizam de nenhuma ferramenta ou
tecnologia, pois tudo o que fazem é através da mente e uma verdadeira simbiose
com aspectos da natureza. Assim, também não há uma ordem social identificável,
bem como um sistema econômico ou um regime político que organize uma produção
ou vida coletiva. Tudo é realizado de forma a interagir intensamente, seja do
ponto de vista simbólico e sexual ou em comunhão quase que física com o
planeta. Como se ele próprio tivesse alguma participação no contexto geral das
formas de vida que o habitam. Tanto é assim, que os diferentes seres que
reivindicam descendência com o homo sapiens vivem em regiões diferentes da
Terra, que, de certa forma, ajudam a potencializar suas habilidades. Regiões
com extremo calor, frio, luz, escuridão, aridez etc.
Como se vê, é um romance fascinante, fruto
do momento de apogeu criativo de Silverberg e do movimento da New Wave, mas
talvez, visto em retrospectiva, pareça excessivo. E nem só do ponto de vista
temático, mas também estilístico, pois ele é composto em boa parte por
parágrafos muito extensos, frases longas e poucos diálogos. Tudo isso, em meio
a uma profusão impressionante de imagens descritivas, muito imagéticas e
oníricas, que depois de um certo tempo causam um certo desconforto na leitura.
Embora estimulante do ponto de vista temático, é cansativo. Ainda mais se
considerarmos – e teve de ser neste caso – de uma tradução lusitana, que também
apresenta suas esquisitices vocabulares.
É um livro visceral em muitos sentidos, uma
experiência de ficção científica fora dos padrões. Talvez por isso, Silverberg
considere O Filho do Homem um dos seus livros favoritos, como afirmou
numa entrevista ao crítico Paul Turner numa edição da revista Vertex: The Magazine of Science Fiction,
em 1973:
O
Filho de Homem é estranho, surrealista, cheio de imagens
oníricas, como se fosse uma linha de abastecimento subterrânea para meu próprio
inconsciente literário. Eu amo este livro. Não encontrou grande aceitação
popular, embora tenha certa reputação entre os críticos.
Sim, foi bem
recebido na época pela crítica norte-americana. Mas talvez tenha sido eclipsado
por outros grandes romances que ele escreveu na época como, por exemplo, Tempo de Mudança (Time
of Changes; 1971) e Uma Pequena Morte (Dying
Inside; 1972). De qualquer forma,
mesmo que possa parecer um pouco exagerado, ou melhor, um pouco desequilibrado
entre forma e conteúdo, o que realmente importa nesta obra é sua liberdade
temática, diria mais, comportamental, com sua predisposição para o novo e a ausência
de preconceitos, além de especulações fascinantes sobre o destino da humanidade
e da própria Terra.
—Marcello Simão Branco