segunda-feira, 3 de março de 2025

Histórias de Dez Mundos

 


Histórias de Dez Mundos (Tales of Ten Worlds), Arthur C. Clarke. Tradução: Théa Fonseca. Capa: Rolf Gunther Braun. 184 páginas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. Lançamento original de 1962.

 

Faltava este. Nos anos 1980 adquiri todos os quatorze os livros de Arthur C. Clarke publicados pela editora Nova Fronteira nesta época. A maioria no supermercado Carrefour, da Marginal Pinheiros, zona sul da capital paulista. Ao acompanhar meus pais na compra mensal aproveitava e levava um livro. Mas, não sei bem porque, este era o único que eu ainda não havia lido. E lá se foram tantos anos. Mas, segue minhas impressões sobre a coletânea.

Histórias de Dez Mundos reúne parte das histórias curtas escritas pelo autor durante o final dos anos 1950 e início dos anos 1960. São quinze histórias, a maioria de contos, mas inclui duas histórias mais longas, a noveleta “A Morte e o Senador” e a novela “A Estrada para o Mar".

O conto de abertura é “Recordo-me da Babilônia” (I Remember Babylon; 1960). O que chama a atenção é que é narrado pelo próprio Clarke, ele mesmo personagem dos acontecimentos. Talvez possa ser chamado de uma história de autoficção, mas difícil saber se os fatos narrados realmente aconteceram na vida do autor. Numa festa na embaixada soviética em Sri Lanka (onde ele vivia na época), ele conhece um produtor de TV que diz que se baseou em sua concepção do satélite geoestacionário para criar um programa de TV que seria transmitido de um satélite na altura do Oceano Pacífico, fora do alcance de possível tentativa de censura por parte do governo dos EUA. Ora, claramente é uma história tecnologicamente superada e que vale mais pela ênfase provavelmente biográfica.

A história seguinte é a primeira de uma série daquilo que podemos chamar de uma “problem story”: ou seja, normalmente, um astronauta é subitamente desafiado por um acidente em sua nave ou local onde está situado e tem de resolver o problema no limite de sua sobrevivência. Pois “Verão em Ícaro” (Summertime in Icarus; 1960) conta o drama de um astronauta que tem sua pequena cápsula avariada próximo a Mercúrio. Ele não tem como consertá-la a tempo da luz do Sol incidir de forma letal e tem de contar com a sorte de receber ajuda da missão baseada no asteroide Ícaro. O mais interessante é a forma realista e intensa como o drama é narrado. Angustiante.

As próximas quatro variam sobre o mesmo tema: “Fora do Berço, em Órbita para Sempre” (Out of the Cradle, Endlessing Orbiting; 1959), “Quem Está Aí?” (Who´s There?; 1958), “Ódio” (Hate; 1961) e “No Interior do Cometa” (Into the Comet; 1960). As duas últimas são as mais interessantes. “Ódio” sobre uma missão de resgate de um satélite artificial no fundo do mar, com um contexto de vingança política dos tempos da Guerra Fria, e “No Interior do Cometa”, em que uma nave enviada para o núcleo do cometa sofre uma pane no seu computador, deixando poucas chances de sobrevivência aos tripulantes. Ambas com um nível de suspense bem efetivo. A junção destas cinco histórias com temas parecidos pode dar a impressão de que se tornam repetitivas, mas somadas ganham força e servem como uma espécie de referência sobre os acidentes inesperados que podem ocorrer fora da Terra, mostrando toda a fragilidade tanto dos instrumentos como, sobretudo, dos seres humanos.

As três histórias seguintes são apenas curiosidades: “Uma Doméstica Diferente” (Na Ape About the House; 1962), “O Nascer de Saturno” (Saturn Rising; 1961) e “Um Clarão na Noite” (Let There Be Light; 1957). A primeira sobre a chegada de um chimpanzé geneticamente modificado para trabalhar como empregado doméstico, mas que revela outros talentos. A segunda sobre um empresário que quer inaugurar o primeiro hotel em Titã, lua de Saturno, e a terceira sobre um astrônomo amador que, ao ser traído pela mulher, elabora um plano ousado para se livrar dela definitivamente. Nesta última, como curiosidade adicional temos a presença do contador de causos Harry Purvis, que narra a história de vingança com sua verve de humor irônico, tão ao modo britânico e que revela a surpreendente faceta humorística de Clarke, que pode ser conferido em outras histórias desta linha na coletânea Contos da Taberna (Tales from the White Hart; 1957) – publicada pela Francisco Alves em 1976). Mas, em resumo, nestas três histórias as coisas não saem como inicialmente planejadas.

A próxima história, a noveleta “A Morte e o Senador” (Death and the Senator; 1961) vai no sentido inverso. Aqui o tom é de resignação e melancolia, quando um político poderoso, o senador Stelman, possível candidato à Presidência dos EUA em 1976 – ano do festejado bicentenário da independência do país –, recebe a notícia de que seu coração está a falhar e ele tem poucos meses de vida.

O interessante é que a doença terminal dá a ele a chance de rever suas atitudes perante a vida, dando mais valor às coisas simples e se reaproximando da família, em especial dos seus netos. Mas ainda há uma esperança quando os rivais soviéticos se dispõe a levá-lo à sua estação orbital que contém um sofisticado hospital para tratamento de doenças ainda incuráveis na Terra. Mas tal convite expõe uma de suas decisões do passado, quando ajudou a vetar uma verba para que a Nasa pudesse fazer o mesmo tipo de investimento. Então, que decisão ele tomará?

É uma boa história, publicada posteriormente na antologia Election Day 2084: Science Fiction Stories About the Politics of the Future, organizada por Isaac Asimov e Martin H. Greenberg e que me serviu de inspiração para organizar Assembleia Estelar: Histórias de Ficção Científica Política, publicada pela Devir em 2011. A história do Clarke só não foi publicada por causa do custo dos direitos autorais envolvidos.

As duas próximas são também semelhantes ao mostrarem aspectos pontuais da exploração dos dois planetas mais próximos da Terra. “A Corrida do Tempo” (Trouble with Time; 1960) e “Antes do Éden” (Before Eden; 1961). A primeira sobre o roubo de uma estátua encontrada em Marte e a segunda sobre a descoberta de uma estranhíssima forma de vida em Vênus, uma espécie de planta rastejante. Mas a ironia, terrível no caso, se revela no final, depois dos astronautas deixarem o planeta com restos de lixo. Ótima história.

Já a próxima foi uma verdadeira descoberta. “Um Ligeiro Caso de Insolação” (A Slight Case of Sunstroke”; 1958) relata a vinda de um estrangeiro a um país da América do Sul, Perívia, para negociar a venda de alguns produtos junto a militares que governam de forma ditatorial. Mas o vendedor tem poucos momentos para tratar os detalhes da transação que, ao que parece envolve propina e contrabando –, pois os perivianos estão envolvidos num esperado confronto futebolístico com o país rival, Paragura. Menos que as estratégias táticas e técnicas, vale mais as formas como o árbitro será comprado.

Pois o conto transcorre durante a peleja, com seus detalhes e polêmicas, a principal delas quando a polícia age para conter uma confusão generalizada nas arquibancadas lotadas do estádio, usando um tipo de espelho que, ao refletir a luz do sol, causa uma tragédia.

Apesar de apresentar um contexto um pouco estereotipado dos sul-americanos da época, o conto tem mérito próprio pela desenvoltura com que Clarke narra os detalhes da partida, mostrando conhecimento do esporte bretão – afinal, Clarke era inglês. Mas jamais podia imaginar que ele havia escrito um conto de FC tendo como pano de fundo o esporte mais popular do mundo. Organizei minha própria antologia sobre o tema, Outras Copas, Outros Mundos (Ano-Luz, 1998) sem conhecimento disso e, antes tarde do que nunca, só soube disso décadas depois.

“Meu Cão Protetor” (Dog Star); 1962) é o conto a seguir e tem um pé no sobrenatural, embora o personagem se esforce em racionalizar o fenômeno. No caso, o repentino despertar de um sonho com Laika, sua cadela falecida, segundos antes de um abalo sísmico no observatório lunar. Pois anos antes, ela, ainda jovem, o havia alertado de um terremoto em São Francisco, salvando sua vida pela primeira vez.

A novela “A Estrada para o Mar” (The Road to the Sea; 1950) foi publicada bem antes das anteriores, mas fecha o volume. É uma história fascinante, com algumas das melhores ideias que fizeram de Arthur C. Clarke um gigante da FC: a relação da humanidade com a Terra, o desabrochar de um destino cósmico e a consciência de pertencimento a este universo, para além de seu berço natal. Mas que deixa o legado de um sentimento de perda e melancolia ao abandoná-lo.

Há milhares de anos alguns exploradores deixam a Terra para tentar colonizar as estrelas. Um caminho que se imaginava sem volta. Em nosso planeta muitas eras se passaram e o comportamento e os valores da própria humanidade foram se alterando: de uma forma de vida mais técnica e materialista, baseadas nas grandes metrópoles, ocorreu uma lenta, mas inexorável transição para estilos de vida mais simples e despojados de conforto, com um convívio social mais solidário e uma integração quase total com a natureza. Das antigas civilizações sobraram apenas ruínas e histórias que, com o longo tempo, se tornaram lendas.

E é onde encontramos o jovem Brant, que vive na pacata vila de Chaldis. Com o receio de perder sua namorada para outro, resolve peregrinar algumas semanas até a vila esquecida e abandonada de Shastar com o objetivo de trazer um presente para ela e demonstrar seu amor. Mas Brant mal poderia imaginar que, imerso à sua exploração pelas ruínas de uma das últimas das grandes cidades, receberia uma visita absolutamente desconcertante daqueles que haviam emigrado há tanto tempo. E com consequências decisivas para si e os demais últimos habitantes da Terra.

“A Estrada para o Mar” tem um enredo ótimo, mas vale ainda mais pela maneira como é contada: um misto de nostalgia pelo passado e dúvidas pelo porvir, ainda mais com todas as incertezas envolvidas. É mesmo de se estranhar que uma história tão boa como essa não seja citada entre suas melhores. Pois não só pode como deve ser incluída nesta relação. Se insere no contexto altamente virtuoso de sua produção do início dos anos 1950 e jamais alcançado novamente.

Em suma, Histórias de Dez Mundos é a terceira das coletâneas publicadas pela editora Nova Fronteira, ao lado de O Outro Lado do Céu (1984) (The Other Side of the Sky; 1958) e Sobre o Tempo e as Estrelas (1978) (Of Time and Stars: The Worlds of Arthur C. Clarke; 1972). No conjunto as três reúnem o melhor de sua ficção curta dos anos 1950 e início dos 1960. Mas se em comparação Histórias de Dez Mundos é a menos boa, contém algumas pérolas, e a última história um clássico, que justifica a leitura do livro como um todo.

Marcello Simão Branco