quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Caminhos do espaço: Drama passional da astronáutica

Caminhos do espaço
(Space ways), Charles Eric Maine. Livros do Brasil, Lisboa/Portugal, sem data, Coleção Argonauta n.o 19. Tradução: A. Maldonado Domingues. Capa: Cândido Costa Pinto.  
        
Autor britânico, Charles Eric Maine (1921-1981) sabia combinar ficção científica com enredos policiais. Caminhos do espaço é uma história passional com um triângulo amoroso visto de fora, por uma quarta pessoa: Conway, o técnico em segurança que é enviado para Silver Falls, em Nevada do Sul, o campo onde uma equipe selecionada e sob as ordens do Dr. Paul Klein prepara o lançamento do primeiro satélite artificial.
            A ação, portanto, passa-se nos Estados Unidos, mas não antecipa a Flórida como local dos lançamentos.
            O estilo de Maine é detalhista, sóbrio, sem deixar pontas soltas e com características de FC “hard”, ou seja, com embasamento científico e técnico sem vôos de fantasia.
            Há um casal, o cientista George Hills, muito compenetrado em sua missão, e sua atraente esposa Marion. E tinha Raymond Colby, que frequentava a casa do casal e na verdade era amante de Marion.
            Conway vem a saber do caso por sua secretária Helen:
            “Não foi por mera bisbilhotice que Helen me contou tudo aquilo, pois havia uma boa razão para que o fizesse. Raymond Colby era um homem muito importante para o projeto, provavelmente um dos dez melhores peritos de técnica estrutural da aeronáutica e astronáutica dos Estados Unidos. Um belo resultado para um homem que ainda não tinha trinta anos. Se ele pensava abandonar Silver Falls era meu dever, como Oficial de Segurança, tomar conhecimento desse fato e acautelar-me devidamente. Colby não era um empregado livre. Era um cientista do Governo, encarregado de trabalho secreto. Assim tudo o que ele fizesse dizia-me respeito.”
            Com base nesse raciocínio duvidoso — a suspeita de que Colby pretendia fugir do local com a esposa de Hills — Conway começa a futricar falando com cada um dos envolvidos e com o Dr. Klein. Mas isso não impede que, no dia do lançamento, Colby e Marion tenham desaparecido.
            Aí entra em cena o agente federal Keenan, que fazendo uma porção de ligações ou relações, lança a hipótese de que George Hills tenha assassinado a esposa e o amante dela, e colocado os dois corpos no foguete. O que explicaria a falha verificada, com o satélite entrando em órbita mais próxima da Terra que o esperado, por transportar excesso de peso.
            A partir daí a suspeita contra George Hills está lançada e se avoluma;  a teoria de Keenan bate com os cálculos do Dr. Klein e Hilkls vai a julgamento por provas circunstanciais.
            E mais não digo porque tem muita surpresa nesse livro.
            O romance é denso, com diálogos inteligentes e situações originais. Se defeito tem é o anacronismo (já o seria em 1950) de colocar as mulheres em “segundíssimo” plano. As que aparecem em Silver Falls ou são esposas dos cientistas ou funcionárias comuns, não porém cientistas. Diversos autores de FC dos meados do século 20 eram meio antiquados em relação à afirmação feminina.
Miguel Carqueija
Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2024

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Nova Cosmogonia e Outros Ensaios

 


Nova Cosmogonia e Outros Ensaios (Nowa Kosmogonia), Stanislaw Lem. Tradução, introdução e posfácio: Henryk Siewierski. 238 páginas. São Paulo: Perspectiva, coleção Big Bang, 2019.

 

Stanislaw Lem (1921-2006) é um dos nomes mais conhecidos da ficção científica, autor de livros mais estranhos e instigantes que a média do gênero, como o clássico Solaris (1961), no qual um planeta contém um oceano vivo que influi no comportamento dos astronautas. Mas, embora de conhecimento do leitor brasileiro, esta é a primeira obra a reunir seus trabalhos de não-ficção, com o qual ele também é justamente celebrado.

Com apoio da Embaixada da Polônia no Brasil, o lançamento de Nova Cosmogonia e Outros Ensaios é um acontecimento importante, por tudo que representa em termos de totalidade das reflexões de um, mais que escritor, ou filósofo da ciência, mas de um pensador na melhor acepção da palavra. Alguém que é livre para especular sobre os mais diferentes assuntos de seu tempo, mas não de uma maneira informal ou superficial, mas tendo como base conhecimentos sólidos sobre os mais diferentes assuntos, da ciência e tecnologia, cosmologia, genética, filosofia, política e literatura. Pode parecer pretencioso, mas se o leitor tiver a oportunidade de ler seus ensaios verá que sua erudição se desdobra em textos saborosos, em que equilibra uma inteligência ímpar com uma prosa fluente e saborosa, que torna mesmo assuntos mais áridos acessíveis para o leitor.

O livro contém dez ensaios, divididos em duas fases pelo organizador Henryk Siewierski. Os três primeiros sobre a primeira metade da trajetória de Lem, basicamente as décadas de 1950 a 1980, textos mais longos em que ele apresenta, desenvolve e define alguns dos seus principais interesses e contribuições. E uma segunda fase, dos anos 1990 até o início do século XXI, no qual são publicados textos mais curtos, em que ele, basicamente, revisita os temas da primeira fase, além de especular sobre algumas tendências da humanidade na virada do milênio.

  Vale a pena se debruçar especialmente sobre os três primeiros ensaios, profundos, provocativos e altamente especulativos. O primeiro deles é “Duas Evoluções”, extraído de seu primeiro livro de não-ficção Summa Techologiae (1964). Aqui Lem discute de forma ampla e comparativa, dois tipos de evolução: a biológica e a tecnológica. A primeira poderia também ser chamada de natural e a segunda de artificial, por ser derivada da primeira.

Lem mostra segurança em seus argumentos, com sólida exposição conceitual, fortalecida, ainda, por vários exemplos empíricos, os mais instigantes os que mostram as evoluções (ou melhor, diria eu, o desenvolvimento) biológica/humana e a científico/tecnológica. Para além das especulações, impressiona que Lem tenha escrito este ensaio instigante em total isolamento de fontes de informação bibliográfica e desenvolvimentos científicos do Ocidente. Isso porque a Polônia vivia os tempos do socialismo autoritário. Anos depois, ele disse que ficou espantado ao constatar como suas principais ideias convergiam com o conhecimento de outros biólogos e filósofos da ciência dos países democráticos. Por isso seu feito é absolutamente notável.

Em “Alfred Testa: ´Nova Cosmogonia’” (1971), somos apresentados a um dos seus textos de metaficção, ou de ensaio fictício. Pois Lem escreve por meio da autoria de um certo Alfred Testa, que em sua cerimônia de recepção do Prêmio Nobel, presta um tributo para um autor obscuro que teria contribuído com sua obra. O autor em questão é o grego Aristides Acheropoulos, que ficou no ostracismo com sua obra controversa “O Mundo Como Jogo e Conspiração”. Testa, ou melhor, Lem passa a expor, então, as ideias pouco convencionais, exóticas para dizer o mínimo, de Acheropoulos.

Em resposta à pergunta do físico Enrico Fermi (1901-1954), se não estamos sozinhos no universo onde estão as outras civilizações? Lem vai longe, ao desenvolver uma proposta de uma nova cosmogonia, ou seja, da formação de uma outra forma de compreender o desenvolvimento do universo. Embora não tenhamos certeza sobre a existência de outras inteligências, Lem supõe que elas devem existir, mas devido às distâncias de tempo e espaço não há como elas entrarem em contato, umas com as outras. Pois se o universo tem 13,7 bilhões de anos e a humanidade surgiu na Terra há apenas 2,5 milhões – e o homo sapiens há cerca de 200 mil –, seria possível que outras civilizações tivessem surgido muito antes e a maioria delas se extinguido. Esta seria a impossibilidade temporal. A espacial seria a de que muitas estariam convivendo conosco neste momento, mas a distância na escala de milhares, milhões de anos-luz tornaria qualquer contato praticamente impossível.

Mas a nova cosmogonia que Lem apresenta, por meio de Acheropoulos abre a possibilidade de que algumas dessas supercivilizações presentes, mas sem que percebêssemos sua presença direta, pois ela influiria no plano natural de forma indireta. Uma ideia como essa nos conduz a uma viagem mais ousada que muitas histórias de FC! Pois no fundo o que chamamos de natureza refletiria a nossa compreensão particular dela, que não se espelharia, necessariamente, nos mundos anteriores. Assim, o que nomeamos de natureza e universo, na verdade, não seriam mais do que efeitos artificiais provocados por civilizações mais antigas, supercomplexas e que dominaram o universo a ponto de anularem os limites entre o natural e o artificial. Assim, tudo o que estudamos e compreendemos como natural, poderia ser resultado de transformações na estrutura da realidade realizada por aquilo que Aqueropoulos, isto é, Lem, chama de Jogadores.

Isso poderia nos ajudar a entender porque Deus e os demais deuses, autores de várias cosmogonias, não seriam ilusões, mas intuições parciais sobre esta realidade oculta e altamente enigmática, do qual seríamos um dos resultados. Uma realidade regida por seres vivos antiquíssimos que estariam em outros planos da realidade, outras dimensões, como que manipulando as leis da natureza. Este texto é puro sense of wonder. Ainda mais incrível porque eivado de uma especulação que, embora improvável, poderia, no limite, ter um laivo de veracidade.

O terceiro texto é “Provocação” (1984), que surpreende e choca ao mesmo tempo. Surpreende pela virada temática de 180 graus e choca pelo tema sem si. Lem está no campo político e faz uma reflexão profunda sobre as raízes do nazismo e do genocídio judeu na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Filho de um médico e de uma dona de casa, Lem viu seu bom padrão de vida despencar com a ocupação alemã da Polônia, tendo de ajudar a família nos mais diferentes empregos, de funcionário do correio a soldador e mecânico de automóveis. Depois continuou numa vida modesta e politicamente opressiva por causa da transformação de seu país numa ditadura socialista após o fim da guerra.

Mais uma vez ele se utiliza do recurso metaficcional, agora assinado pelo alemão Horst Aspernicus, em sua obra “Der Volksmond” (1980), para tentar entender como foi possível a ocorrência de uma catástrofe da dimensão do genocídio, uma verdadeira indústria de extermínio de seres humanos, responsável pela morte de 6 milhões de judeus, isso sem contar outras culturas também atingidas, como a dos ciganos.

É um texto muito difícil de ser lido, pois Lem descreve em detalhes a realização e as metodologias do holocausto. Embora não haja novidade sobre o processo da matança é sempre muito chocante e perturbador se deparar com esta escala de crueldade e desumanidade. Me senti mal lendo, mas ele ilumina, como poucos, porque este horror inominável ocorreu, e do porque não estamos inteiramente a salvo de que horrores semelhantes possam voltar a acontecer. Se não da mesma forma que colocado em prática por Hitler e seus asseclas, mas ainda assim sinistro. Como observa no posfácio Siewierski é justo da parte do leitor perguntar porque, num texto tão importante, Lem não tenha assinado com seu próprio nome. Mas não deixa de ser sugestivo o fato de o autor fictício ser um alemão, como que a expurgar da consciência de seu povo, as atrocidades monstruosas cometidas. Os alemães, um dos povos mais cultos e prósperos da Europa, tem uma mancha sombria a carregar, não há como se livrar disso.

Stanislaw Lem e seu cãozinho

Na segunda metade do livro, segue-se mais sete ensaios no qual, como dito antes, Lem aborda alguns temas mais contemporâneos e revisita criticamente algumas das suas principais obras e ideias da juventude.

Alguns dos mais interessantes são “Somos Instantes”, “Estatística das Civilizações Cósmicas” e “Será Que Aprenderemos a Tecnologia da Vida?”, no qual faz amplas reflexões sobre os mecanismos e possibilidade de criações. Seja do universo, seja da vida e de como poderíamos, eventualmente, nos expandir pelo cosmos e, talvez ainda mais fascinante, dominar os processos de criação da própria vida.

Mas no que estes textos reunidos convergem é em seu crescente pessimismo sobre a condição humana. Principalmente do uso pacífico e ético das mais diferentes descobertas científicas e suas aplicações tecnológicas. A técnica não é neutra, depende das intenções humanas. Ela própria é derivada dos valores e escolhas embutidas nos processos de busca por conhecimento, situadas que estão nas lutas políticas e ideológicas das mais diferentes sociedades. Assim, Lem, em uma de suas conclusões mais sensatas – mas melancólicas – defende que seria melhor que não procurássemos por outras civilizações no universo. Isso porque tenderíamos a reproduzir nossas tendências agressivas e imperialistas. Além de também termos o risco de nos deparar com outra civilização semelhante, mas tecnologicamente superior. Tendo a concordar com ele, no geral, embora creia que, se faz parte do destino humano a busca do conhecimento – e em algum momento, ele estará principalmente no universo –, também temos de lutar por melhorar os valores que sustentam o convívio social e humano. Milênios de história mostram que o caminho é árduo e difícil, mas não impossível.

Em resumo, Nova Cosmogonia e Outros Ensaios é um livro essencial para pensarmos grandes questões da vida, ciência, universo e destino da humanidade, de forma livre e desprovida de preconceitos. Mas sempre com uma perspectiva a valorizar a ética nas relações sociais. Stanislaw Lem, o mais importante autor de FC fora do Ocidente, mostra também ter sido um dos seus principais pensadores. E que continua a ser uma voz relevante sobre grandes questões de nossa época tão conturbada e incerta.

Marcello Simão Branco