Nova
Cosmogonia e Outros Ensaios (Nowa Kosmogonia), Stanislaw Lem.
Tradução, introdução e posfácio: Henryk Siewierski. 238 páginas. São Paulo:
Perspectiva, coleção Big Bang, 2019.
Stanislaw Lem (1921-2006) é um dos nomes
mais conhecidos da ficção científica, autor de livros mais estranhos e
instigantes que a média do gênero, como o clássico Solaris (1961), no
qual um planeta contém um oceano vivo que influi no comportamento dos
astronautas. Mas, embora de conhecimento do leitor brasileiro, esta é a
primeira obra a reunir seus trabalhos de não-ficção, com o qual ele também é
justamente celebrado.
Com apoio da Embaixada da Polônia no
Brasil, o lançamento de Nova Cosmogonia e
Outros Ensaios é um acontecimento importante, por tudo que representa em
termos de totalidade das reflexões de um, mais que escritor, ou filósofo da
ciência, mas de um pensador na melhor acepção da palavra. Alguém que é livre
para especular sobre os mais diferentes assuntos de seu tempo, mas não de uma
maneira informal ou superficial, mas tendo como base conhecimentos sólidos
sobre os mais diferentes assuntos, da ciência e tecnologia, cosmologia,
genética, filosofia, política e literatura. Pode parecer pretencioso, mas se o
leitor tiver a oportunidade de ler seus ensaios verá que sua erudição se
desdobra em textos saborosos, em que equilibra uma inteligência ímpar com uma
prosa fluente e saborosa, que torna mesmo assuntos mais áridos acessíveis para
o leitor.
O livro contém dez ensaios, divididos em
duas fases pelo organizador Henryk Siewierski. Os três primeiros sobre a
primeira metade da trajetória de Lem, basicamente as décadas de 1950 a 1980,
textos mais longos em que ele apresenta, desenvolve e define alguns dos seus
principais interesses e contribuições. E uma segunda fase, dos anos 1990 até o
início do século XXI, no qual são publicados textos mais curtos, em que ele,
basicamente, revisita os temas da primeira fase, além de especular sobre
algumas tendências da humanidade na virada do milênio.
Vale
a pena se debruçar especialmente sobre os três primeiros ensaios, profundos,
provocativos e altamente especulativos. O primeiro deles é “Duas Evoluções”,
extraído de seu primeiro livro de não-ficção Summa Techologiae (1964). Aqui Lem discute de forma ampla e
comparativa, dois tipos de evolução: a biológica e a tecnológica. A primeira
poderia também ser chamada de natural e a segunda de artificial, por ser
derivada da primeira.
Lem mostra segurança em seus argumentos,
com sólida exposição conceitual, fortalecida, ainda, por vários exemplos
empíricos, os mais instigantes os que mostram as evoluções (ou melhor, diria
eu, o desenvolvimento) biológica/humana e a científico/tecnológica. Para além
das especulações, impressiona que Lem tenha escrito este ensaio instigante em
total isolamento de fontes de informação bibliográfica e desenvolvimentos
científicos do Ocidente. Isso porque a Polônia vivia os tempos do socialismo
autoritário. Anos depois, ele disse que ficou espantado ao constatar como suas
principais ideias convergiam com o conhecimento de outros biólogos e filósofos
da ciência dos países democráticos. Por isso seu feito é absolutamente notável.
Em “Alfred Testa: ´Nova Cosmogonia’”
(1971), somos apresentados a um dos seus textos de metaficção, ou de ensaio
fictício. Pois Lem escreve por meio da autoria de um certo Alfred Testa, que em
sua cerimônia de recepção do Prêmio Nobel, presta um tributo para um autor
obscuro que teria contribuído com sua obra. O autor em questão é o grego
Aristides Acheropoulos, que ficou no ostracismo com sua obra controversa “O
Mundo Como Jogo e Conspiração”. Testa, ou melhor, Lem passa a expor, então, as
ideias pouco convencionais, exóticas para dizer o mínimo, de Acheropoulos.
Em resposta à pergunta do físico Enrico
Fermi (1901-1954), se não estamos sozinhos no universo onde estão as outras
civilizações? Lem vai longe, ao desenvolver uma proposta de uma nova
cosmogonia, ou seja, da formação de uma outra forma de compreender o
desenvolvimento do universo. Embora não tenhamos certeza sobre a existência de
outras inteligências, Lem supõe que elas devem existir, mas devido às
distâncias de tempo e espaço não há como elas entrarem em contato, umas com as
outras. Pois se o universo tem 13,7 bilhões de anos e a humanidade surgiu na
Terra há apenas 2,5 milhões – e o homo sapiens há cerca de 200 mil –, seria
possível que outras civilizações tivessem surgido muito antes e a maioria delas
se extinguido. Esta seria a impossibilidade temporal. A espacial seria a de que
muitas estariam convivendo conosco neste momento, mas a distância na escala de
milhares, milhões de anos-luz tornaria qualquer contato praticamente
impossível.
Mas a nova cosmogonia que Lem apresenta,
por meio de Acheropoulos abre a possibilidade de que algumas dessas
supercivilizações presentes, mas sem que percebêssemos sua presença direta,
pois ela influiria no plano natural de forma indireta. Uma ideia como essa nos
conduz a uma viagem mais ousada que muitas histórias de FC! Pois no fundo o que
chamamos de natureza refletiria a nossa compreensão particular dela, que não se
espelharia, necessariamente, nos mundos anteriores. Assim, o que nomeamos de
natureza e universo, na verdade, não seriam mais do que efeitos artificiais
provocados por civilizações mais antigas, supercomplexas e que dominaram o
universo a ponto de anularem os limites entre o natural e o artificial. Assim,
tudo o que estudamos e compreendemos como natural, poderia ser resultado de
transformações na estrutura da realidade realizada por aquilo que Aqueropoulos,
isto é, Lem, chama de Jogadores.
Isso poderia nos ajudar a entender porque
Deus e os demais deuses, autores de várias cosmogonias, não seriam ilusões, mas
intuições parciais sobre esta realidade oculta e altamente enigmática, do qual
seríamos um dos resultados. Uma realidade regida por seres vivos antiquíssimos
que estariam em outros planos da realidade, outras dimensões, como que
manipulando as leis da natureza. Este texto é puro sense of wonder. Ainda mais incrível porque eivado de uma
especulação que, embora improvável, poderia, no limite, ter um laivo de
veracidade.
O terceiro texto é “Provocação” (1984),
que surpreende e choca ao mesmo tempo. Surpreende pela virada temática de 180
graus e choca pelo tema sem si. Lem está no campo político e faz uma reflexão
profunda sobre as raízes do nazismo e do genocídio judeu na Segunda Guerra
Mundial (1939-1945). Filho de um médico e de uma dona de casa, Lem viu seu bom
padrão de vida despencar com a ocupação alemã da Polônia, tendo de ajudar a
família nos mais diferentes empregos, de funcionário do correio a soldador e
mecânico de automóveis. Depois continuou numa vida modesta e politicamente
opressiva por causa da transformação de seu país numa ditadura socialista após
o fim da guerra.
Mais uma vez ele se utiliza do recurso
metaficcional, agora assinado pelo alemão Horst Aspernicus, em sua obra “Der
Volksmond” (1980), para tentar entender como foi possível a ocorrência de uma
catástrofe da dimensão do genocídio, uma verdadeira indústria de extermínio de
seres humanos, responsável pela morte de 6 milhões de judeus, isso sem contar
outras culturas também atingidas, como a dos ciganos.
É um texto muito difícil de ser lido, pois
Lem descreve em detalhes a realização e as metodologias do holocausto. Embora
não haja novidade sobre o processo da matança é sempre muito chocante e
perturbador se deparar com esta escala de crueldade e desumanidade. Me senti
mal lendo, mas ele ilumina, como poucos, porque este horror inominável ocorreu,
e do porque não estamos inteiramente a salvo de que horrores semelhantes possam
voltar a acontecer. Se não da mesma forma que colocado em prática por Hitler e
seus asseclas, mas ainda assim sinistro. Como observa no posfácio Siewierski é
justo da parte do leitor perguntar porque, num texto tão importante, Lem não
tenha assinado com seu próprio nome. Mas não deixa de ser sugestivo o fato de o
autor fictício ser um alemão, como que a expurgar da consciência de seu povo,
as atrocidades monstruosas cometidas. Os alemães, um dos povos mais cultos e prósperos
da Europa, tem uma mancha sombria a carregar, não há como se livrar disso.
Stanislaw Lem e seu cãozinho
Na segunda metade do livro, segue-se mais
sete ensaios no qual, como dito antes, Lem aborda alguns temas mais
contemporâneos e revisita criticamente algumas das suas principais obras e
ideias da juventude.
Alguns dos mais interessantes são “Somos
Instantes”, “Estatística das Civilizações Cósmicas” e “Será Que Aprenderemos a
Tecnologia da Vida?”, no qual faz amplas reflexões sobre os mecanismos e possibilidade
de criações. Seja do universo, seja da vida e de como poderíamos,
eventualmente, nos expandir pelo cosmos e, talvez ainda mais fascinante,
dominar os processos de criação da própria vida.
Mas no que estes textos reunidos convergem
é em seu crescente pessimismo sobre a condição humana. Principalmente do uso
pacífico e ético das mais diferentes descobertas científicas e suas aplicações
tecnológicas. A técnica não é neutra, depende das intenções humanas. Ela
própria é derivada dos valores e escolhas embutidas nos processos de busca por
conhecimento, situadas que estão nas lutas políticas e ideológicas das mais
diferentes sociedades. Assim, Lem, em uma de suas conclusões mais sensatas –
mas melancólicas – defende que seria melhor que não procurássemos por outras
civilizações no universo. Isso porque tenderíamos a reproduzir nossas
tendências agressivas e imperialistas. Além de também termos o risco de nos
deparar com outra civilização semelhante, mas tecnologicamente superior. Tendo
a concordar com ele, no geral, embora creia que, se faz parte do destino humano
a busca do conhecimento – e em algum momento, ele estará principalmente no
universo –, também temos de lutar por melhorar os valores que sustentam o
convívio social e humano. Milênios de história mostram que o caminho é árduo e
difícil, mas não impossível.
Em resumo, Nova Cosmogonia e Outros Ensaios é um livro essencial para
pensarmos grandes questões da vida, ciência, universo e destino da humanidade,
de forma livre e desprovida de preconceitos. Mas sempre com uma perspectiva a
valorizar a ética nas relações sociais. Stanislaw Lem, o mais importante autor
de FC fora do Ocidente, mostra também ter sido um dos seus principais
pensadores. E que continua a ser uma voz relevante sobre grandes questões de
nossa época tão conturbada e incerta.
—Marcello Simão Branco