sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Os Imortais

 



Os Imortais (The Immortals), James Gunn. Tradução: Teresa Curvelo. Capa: autoria não identificada. 205 páginas. Rio Maior: Galeria Panorama, série Antecipação, n. 42, Portugal, sem data. Publicação original de 1962.

 

Às vezes chegamos a um livro da forma mais inesperada. Na edição 261 do fanzine Juvenatrix (agosto de 2024), o editor Renato Rosatti publicou um bom artigo sobre a série de telefilmes produzida pela rede de TV norte-americana ABC, entre 1969 e 1975, a “ABC Movie of the Weeks”. Curioso, fiz uma pesquisa posterior e descobri o telefilme The Immortals (1969), que me chamou a atenção por ser um piloto de uma série com 15 episódios, baseado no romance homônimo de James Gunn (1923-2020), prestigiado escritor e acadêmico norte-americano.

O filme está disponível no Youtube, com acesso a legendas em português – assim como, aliás, boa parte dos 264 filmes da série da ABC. Vi, gostei e fiquei a pensar se a obra não teria sido publicada em língua portuguesa. Ora, não só foi, em Portugal, como eu tinha o livro! Um caso típico de serendipity, expressão inglesa para achados fortuitos e inesperados.

Os Imortais aborda um mundo futuro em que, de maneira também fortuita, se descobre a possibilidade da vida eterna. Após um bilionário idoso receber uma transfusão de sangue, ele não só se recupera, mas também rejuvenesce. Perplexo, o doutor Russell Pearce, procura saber quem foi o doador. E após examiná-lo, constata que Marshall Cartwright possui uma substância no sangue, a globulina gama, que tem a capacidade de resistir a qualquer doença. O corpo dele produz anticorpos contra a própria morte. O seu sistema circulatório é constantemente renovado, permitindo que as células não morram jamais. Através de uma simples transfusão, o corpo de uma pessoa doente pode ser curado. Mas o período na receptora é de apenas 30 dias, de forma que ela tem de receber novas transfusões ao fim de cerca de um mês.

No filme, o bilionário descobre Cartwright, o aprisiona, mas este foge e é perseguido pelos brutamontes do bilionário. Ao que consta, o seriado, que durou apenas uma temporada, mas foi indicado a um Prêmio Emmy em 1970, segue a mesma linha. Pois é baseado, justamente, na primeira das quatro noveletas que formam o romance fix-up, isto é, o que os norte-americanos chamam para um conjunto de histórias em sequência, baseadas num mesmo universo ficcional.

A primeira é “Novo Sangue” (New Blood), publicada em Astounding Science Fiction, em outubro de 1955. Narra, basicamente, o mesmo enredo do seriado citado acima, apenas que Cartwright não se deixa aprisionar, e nem foge, simplesmente desaparece ao descobrir que tem o dom da imortalidade, a não ser que sofra algum acidente grave. Cinquenta anos depois se passa a segunda história “Doador” (Donor), vista primeiro em Fantastic Stories of Imagination (novembro de 1960). Num Instituto Nacional de Pesquisa, se gasta bilhões de dólares para descobrir o paradeiro de Cartwright e seus possíveis filhos, bem como uma maneira de sintetizar a substância sanguínea que produz o rejuvenescimento. Mas tudo é mantido em segredo, até que um dos pesquisadores descobre o paradeiro de uma possível herdeira do imortal original. No início ele procura barganhar, mas depois escapa à procura de Bobs, a garota imortal. Esta é talvez a melhor história, com mais ritmo e suspense, bem como com os personagens mais interessantes. E assim, é de se lamentar que com o final, fique em aberto o destino do pesquisador e da garota.

Situadas décadas à frente, as duas últimas novelas enveredam por um caminho sombrio, ao mostrar as consequências da descoberta da imortalidade na sociedade como um todo. Em “Médico” (No So Great on Enemy/Medic), publicada originalmente em Venture Science Fiction (julho de 1957), acompanhamos um médico residente que é chamado para socorrer um paciente num edifício abandonado. Lá, ele o encontra sob os cuidados de uma garota cega, e vem a saber que, na verdade, o doente é ninguém menos que o doutor Russell, que mesmo sem receber o elixir atingiu uma idade bem avançada. A história mistura o atendimento em si com as reflexões do jovem médico sobre o mundo em que vive. Sua angústia é em saber se receberá o dom da imortalidade, possível de ser obtido por médicos que alcancem sucesso em sua carreira. Mas isto não passa apenas por ser um bom profissional, mas de participar do esquema de poder que permite privilégios ao estamento dos ricos e poderosos, os que se beneficiam com a imortalidade.

Na última novela, “O Imortal” (The Immortal), vista primeiro em Star Science Fiction Stories (n. 4, 1958), o mundo se consolidou numa distopia. Os centros das grandes cidades estão abandonados e em ruínas, apenas habitados por operários que mantém a produção de alimentos e remédios para os poderosos, que vivem nos subúrbios em fortalezas fortemente armadas, os imortais. Eles investem sua fortuna para manter a produção sintética da substância sanguínea milagrosa, e apenas alguns profissionais de saúde e o entorno dos que os mantém em segurança também se beneficiam. A enorme maioria restante vive em condições deploráveis, em meio à sujeira, doenças e violência, e recorrem a um gigantesco hospital para manterem sua precária condição de saúde e servirem de doadores de órgãos, num lucrativo mercado, tanto legal como ilegal de tráfico para transplantes.

Nesta história, acompanhamos a missão do médico Harry Elliot para levar uma mensagem urgente ao governador. Numa travessia muito perigosa, sujeita à violência de caçadores de pessoas para extração de órgãos, e doenças derivadas da condição de sujeira e miséria, ele é acompanhado de um médico cego – o doutor Russell que doou seus olhos para a filha, da história anterior –, um jovem que vem a ser o seu neto e uma adolescente, que trará uma revelação importante que mudará o destino da missão.

É interessante notar que paira entre os Cartwrights espalhados pelo país afora uma situação inversa da de um vampiro. Pois este precisa do sangue das pessoas para sobreviver eternamente. No livro, são as pessoas que precisam do sangue mutante para alcançar a vida eterna. O diferente é perseguido e não persegue, como o vampiro, mas ambos tem de viver de maneira oculta, como numa maldição.

Contudo, é toda a sociedade que sofre. A possibilidade de alcançar a vida eterna degenera as relações sociais, exacerbando o individualismo e o egoísmo, instaurando a lógica do poder de quem pode mais em pagar pelo benefício. Assim, todo o sistema econômico passa a girar em torno desse interesse, instaurando uma clivagem entre idosos ricos e sedentários e o restante da população, que se torna doente devido às condições insalubres em que vive, e no qual mal pode pagar pelos serviços médicos, inteiramente voltados à manutenção do privilégio dos velhos que os mantém.

Apesar de ser um livro que junta histórias previamente autônomas, o romance é bem estruturado, tornando-se progressivamente complexo, mais em termos coletivos do que individuais. No fundo, Gunn faz uma reflexão perturbadora dos possíveis efeitos que uma descoberta como essa poderia trazer para a humanidade, com instigantes observações sobre a ética médica em meio a um verdadeiro sistema econômico anarco-capitalista, que desumaniza as pessoas, reduzindo tudo à lógica utilitária do lucro. A anomia total da sociedade brutaliza as relações humanas, e a falência do Estado, completamente reduzido a uma condição de prestador de serviço à casta dos endinheirados, reprime a todos que ousem questionar ou lutar contra esta distopia.

A imortalidade é um dos temas mais recorrentes da FC, uma das inspirações básicas do pensamento especulativo, o elixir da vida, da saúde perfeita e da juventude. Mas, como mostra a maioria das obras, nem isso é perfeito, tanto no plano individual (a falta de objetivos e perspectivas numa vida sem destino), como no coletivo (com a provável apropriação do recurso como fonte de poder e discriminação). Lembro, rapidamente, de obras como o monumental Amor Sem Limites (Time Enough for Love; 1973), de Robert Heinlein; o instigante Regresso à Vida (Recalled to Life; 1962), de Robert Silverberg, bem como sua novela premiada “Born with the Dead” (1974); o clássico Estação de Trânsito (Way Station; 1963), de Clifford Simak, e o brasileiro Padrões de Contato (1985), de Jorge Luiz Calife, com a heroína Angela Duncan tornada imortal por ação da Tríade, uma superinteligência extraterrena. Além disso, o romance Horizonte Perdido (Lost Horizon; 1933), de James Hilton, duas vezes adaptado ao cinema (1937 e 1973), e o filme Zardoz (1974).

Já conhecia Gunn de outro romance fix-up bem crítico, Os Vendedores de Felicidade (The Joy Makers; 1961) – sobre uma sociedade hedonista estimulada por drogas (leia a resenha aqui e este Os Imortais segue na mesma toada, sendo, provavelmente, a mais pessimista obra sobre as prováveis consequências sobre um dos maiores desejos do ser humano.

Na prática, é crível pensar que, de fato, a imortalidade seria para poucos, e a maioria teria uma condição de vida piorada e mortal. O que poderia ser uma benção se revelaria uma maldição que condenaria a todos, inclusive os privilegiados, restritos a uma vida isolada e cheia de limitações. Para se atingir eventualmente a imortalidade, seria preciso antes mudar o sistema de valores dos seres humanos, com mais fraternidade, solidariedade, amor. Conceitos vinculados à igualdade plena, tanto em termos materiais, como filosóficos. Mas à parte esta idealização, tememos a finitude porque a vida é tudo o que temos, e não sabemos como será – se é que será – quando ela deixar de existir. Em meio ao desejo e à esperança, talvez trocássemos o medo da morte, por uma eternidade vivida entre a angústia e o vazio existencial.

Marcello Simão Branco


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