sexta-feira, 15 de julho de 2022

O Auto da Maga Josefa

O Auto da Maga Josefa, Paola Siviero. Capa e ilustrações internas: Vito Quintans. 221 páginas. Belo Horizonte: Autêntica/Gutenberg, 2021.

 


O escritor Jeronymo Monteiro (1908-1970) afirmou na introdução de sua antologia clássica O Conto Trágico (1960), que quando realizou a pesquisa, se surpreendeu com uma dificuldade em encontrar histórias de horror de autores nacionais, pois imaginava que pelo fato do brasileiro ser tão crente e místico, existiriam em profusão.

Como eu e Cesar Silva dissemos em “Trajetória e Caracterização de uma Ficção de Horror Brasileira”, introdução da antologia As Melhores Histórias Brasileiras do Horror (2018), esta dificuldade não está relacionada ao enorme imaginário místico e sobrenatural do brasileiro, mas a uma certa resistência e desestimulo do ambiente literário e editorial em incentivar o seu desenvolvimento.

Em todo caso, nossos autores sempre escreveram histórias de horror e fantástico em grande quantidade, muitas vezes inseridas em outros contextos e com outras classificações, digamos, literariamente mais ‘nobres’. Mas conforme comprovamos em nossa antologia – e outras recentemente montadas – há um corpus sólido de obras importantes que consolidam o horror brasileiro como um gênero não só bastante praticado, mas com indiscutível qualidade.

Pois, ao ler este O Auto da Maga Josefa esta constatação só foi reforçada. Esta coletânea de contos interligados, ou se quiserem, um romance fix-up, é uma das melhores leituras de horror e fantástico brasileiro dos últimos anos. Talvez destas duas décadas do século XXI.

Paola Siviero apresenta um mundo encantado e assustador que não está longe de nós, embora se apresente de forma surpreendente e, por vezes, assustadora. Estou me referindo ao Nordeste, a região historicamente mais pobre do Brasil, atrasada economicamente, corrompida politicamente e amaldiçoada – o termo cabe neste contexto – em termos climáticos. Isso sem falar no preconceito que o povo nordestino tem de lidar com os das regiões economicamente mais desenvolvidas, do Sul e do Sudeste.

A autora mostra como, num lugar historicamente tão desfavorável, as explicações fantásticas e sobrenaturais fazem mais sentido. É como se as aventuras do caçador de demônios Toninho, da maga Josefa – filha do capeta – e de Véia, uma mula secular, nos mostrasse o Brasil do passado, do horror com a marca rural do século XIX e início do XX. Mas também de como este Brasil dos grotões, da miséria material e do infortúnio do destino, ainda existe, mesmo que as histórias ocorram no início dos anos 1960.

Em suas primeiras aventuras como caçador, Toninho conhece Josefa, uma mulher misteriosa e poderosa. Que impõe respeito e temor. Juntos, cada qual com seu motivo particular, decidem juntar forças para enfrentar os seres e eventos sobrenaturais e fantásticos que se misturam à realidade do interior do Nordeste. Em dez narrativas, perambulam pelo sertão e pelo agreste, lidando com destemor e alguma imprudência com lobisomem, zumbi, vampira, dragão, gênio, golem, chupa-cabra, o próprio diabo, entre outros seres fantásticos e malignos que levam o pânico e a desgraça ao povo simples, para o qual não há uma linha de separação entre o mundo dito natural e o sobrenatural. Como que a explicar a própria dureza de suas vidas, os eventos e os próprios seres fazem parte de seu imaginário e sua realidade.

Se numa coletânea há sempre alguns contos melhores e outros nem tanto, em O Auto da Maga Josefa é difícil fazer esta distinção. O nível médio das aventuras de Toninho e Josefa é muito bom. Histórias de horror e fantástico em que a maior qualidade está no equilíbrio entre a criatividade, a prosa limpa e fluente, a verossimilhança dos lugares e das pessoas, e uma boa dose de bom humor. Sim, apesar de estarmos diante de situações muitas vezes violentas e assustadoras, o relacionamento entre Josefa, Toninho e Véia é engraçado, dadas as particularidades de cada personagem, muito bem construídos em suas motivações e angústias. Principalmente a maga Josefa que, para além da profissão em si, tem uma justificativa pessoal, uma missão do qual depende seu próprio destino quando deixar este mundo.

Em sua “Nota da autora”, Siviero conta que este conjunto de histórias nasceu de uma provocação num debate entre escritores. De provar que seria possível escrever histórias fantásticas e de horror com personagens e temas brasileiros. Ora, esta é uma velha questão, defendida de forma arrojada dentro de um subgênero da ficção especulativa, a ficção científica. Do fim dos anos 1980 para cá, com o lançamento do Movimento Antropofágico da Ficção Científica Brasileira, de Ivan Carlos Regina, toda uma geração de autores enveredou por esta linha. De certa forma, é até surpreendente que na segunda década do século XXI ainda paire na concepção de alguns autores uma dúvida como esta. Mas, em todo caso, assim como já feito antes não só na FC, mas também no horror e na fantasia, este O Auto da Maga Josefa comprova a viabilidade desta proposta. Aliás, mais que isso: mostra que esta é a melhor concepção para a construção de uma ficção especulativa brasileira de qualidade e relevância para a nossa história e cultura, além de trazer também uma voz própria do que nós podemos mostrar como uma verve brasileira para o fantástico. Pois para um autor alcançar a universalidade com sua literatura (ou arte) nada melhor do que abordar a sua realidade, o seu entorno, a sua história, o seu povo.

A primeira edição de O Auto da Maga Josefa saiu pela pequena editora Dame Blanche, especializada em publicar jovens autores brasileiros nos gêneros fantásticos, e o êxito ao ser premiada em 2019 com o Le Blanc e o Odisseia Fantástica, além de ser finalista do Argos – os três principais prêmios da literatura fantástica brasileira – levou a editora Autêntica a se interessar em relançar a obra. Aliás, é uma edição muito bonita, com a ilustração de capa e a de cada história a cargo do talento de Vito Quintans. Vale a pena adquirir esta edição também porque há um bônus: um livrinho no formato do cordel com mais uma aventura, “Conjurações e Terra Seca”, que se passa, inclusive, cinco anos depois da última história do livro – e claro, com inspiradas ilustrações de Quintans.

Fico a pensar que as aventuras de Josefa e Toninho poderiam render muitas outras histórias – como num seriado –, pois o potencial do fantástico e do sobrenatural sugerido neste universo ficcional nordestino é inesgotável. Mas seja por qual projeto Paola Siviero optar, acredito que a chance dela nos brindar com outras boas histórias é muito grande. Pois sua maior virtude é ser uma ótima contadora de histórias.

Marcello Simão Branco

 


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