segunda-feira, 1 de outubro de 2018

O Problema dos Três Corpos


O Problema dos Três Corpos (The Three-Body Problem, a partir de um original chinês), Cixin Liu. São Paulo: Suma de Letras, 2016, 316 páginas. Tradução de Leonardo Alves. Capa de Rodrigo Maroja.

Até alguns anos os fãs brasileiros de ficção científica suspiravam de angústia ao lembrar que vários bons romances do gênero vencedores dos principais prêmios – os norte-americanos Hugo e Nebula –, não eram publicados no país. Era quase sempre mais do mesmo: a publicação de uma nova obra de um autor tradicional ou alguma republicação.
Uma boa novidade mudou o cenário nos últimos anos quando as editoras brasileiras passaram a prestar atenção às obras mais recentes, e mesmo de autores pouco conhecidos, e lançá-los por aqui. Livros de FC como Quem Teme a Morte? (Who Fears Death), da afro-americana Nnedi Okorafor (Geração Editorial, 2014), finalista do Nebula 2010; A Cidade e a Cidade (The City & the City), de China Miéville (Boitempo, 2015), vencedor do Hugo 2010; A Guerra do Velho (Old Man´s War), de John Scalzi (Aleph, 2016), finalista do Hugo 2006.
Mas nem mesmo neste contexto a publicação de O Problema dos Três Corpos, de Cixin Liu, deixa de ser uma boa surpresa. Isso porque trata-se, muito provavelmente, da primeira obra da FC chinesa lançada no Brasil e, mais importante, representa a primeira vitória no Prêmio Hugo de Melhor Romance para uma obra não escrita em inglês e de um autor não-anglófono, em 2015. Isso não é pouco e demonstra, em boa medida, como o fenômeno da internacionalização da ficção científica se ampliou neste século XXI, embora o centro hegemônico ainda permaneça com os norte-americanos. Lembro ainda o ótimo O Cromossomo Calcutá (The Calcutta Chromosome, 1995), do indiano Amitav Ghosh (Editora Ática, 1998), que também foi pioneiro ao vencer o prestigioso prêmio britânico Arthur C. Clarke Award 1997. São obras como estas que ampliam a leitura e a perspectiva do gênero para além da cultura anglo-americana. Mas independentemente disso, o fato é que O Problema dos Três Corpos vale por si mesmo. É um livro maiúsculo de ficção científica, desde já entre as de maior relevo no tema das histórias de contatos com civilizações extraterrestres.
Primeiro volume da trilogia Remembrance of Earth’s Past, a narrativa começa durante os caóticos e sinistros anos da Revolução Cultural na China, um processo de reorganização social que se seguiu à implantação revolucionária do regime socialista no país, no final dos anos 1940. Foi um movimento violento de perseguição, humilhação e eliminação dos formalmente escolarizados antes do socialismo. O objetivo era estabelecer uma nova doutrinação ideológica, totalmente anti-burguesa. E todos que, mesmo que remotamente, cultivassem hábitos e opiniões burguesas deveriam ser combatidos.
Uma jovem vê seu pai, professor de Física de uma universidade, ser brutalmente assassinado em público durante uma das cerimônias de humilhação. Perseguida, ela recebe uma nova chance para trabalhar numa remota estação de monitoramento de satélites. Mas nunca mais recuperou o gosto de viver e a fé na humanidade. Por meio de sua atuação ao longo de décadas, o autor desenvolve o romance. E numa estrutura em camadas, em que se sobrepõem e se agregam mais informações, deixando o leitor sempre na expectativa de que determinada sequência tenha o seu desenlace. Assim, o autor deixa ganchos que vão sendo preenchidos ao longo da narração, situada entre o final dos anos 1960 até os dias atuais, já numa China ainda formalmente socialista, embora mais integrada ao capitalismo globalizado – e seus valores burgueses.
O mistério que ronda o tal problema dos três corpos começa a ser revelado através de um videogame online que simula a vida no planeta Trissolaris. Iluminado por três estrelas, ele sofre de enorme instabilidade geológica e climática, a ponto de levar ao colapso periodicamente as civilizações que emergem, até o próximo ressurgimento centenas (ou até milhares) de anos depois. Em si, é pouco crível que tal situação pudesse acontecer, que vida inteligente socialmente organizada e com desenvolvimento tecnológico pudesse vicejar, quanto mais várias vezes. Mas o problema dos três corpos é também um teorema não resolvido pela física clássica. Equações e cálculos não conseguem chegar a um modelo de interação e equilíbrio gravitacional entre três esferas. Ou seja, seria intrinsecamente instável e imprevisível devido à mútua influência da força gravitacional, se entendi bem o que é discutido no livro. A resolução deste enigma poderia ajudar os habitantes do mundo de Trissolaris a encontrarem alguma viabilidade em sua sucessão trágica de eras, ora chamadas de Estáveis, ora de Caóticas. Tudo a depender da presença de uma ou mais estrelas no céu do planeta ao mesmo tempo.
Como disse, tudo no livro é revelado paulatinamente, o que, depois de certo tempo, torna-se um pouco cansativo e anticlimático, pois apenas no terço final do livro é que sabemos que o tal jogo nada tem de lúdico, pois é uma representação da vida dos alienígenas que orbitam, simplesmente, o sistema trinário de Alfa-Centauri, a estrela mais próxima da Terra, situada a meros 4,3 anos-luz.
Jogo nada inocente, porque tem por objetivo recrutar os melhores jogadores para a causa de uma seita, a Organização Trissolaris, que estabeleceu contato, por meio de ondas de rádio, com os extraterrestres e anseia por sua chegada para intervir nos assuntos humanos – ou até mesmo, eventualmente, exterminar a raça humana.
E por onde andava a jovem vítima da Revolução Cultural? Ye Wenjie tem um papel chave, pois foi ela quem enviou a primeira mensagem e recebeu a resposta dos trissolarianos. Passa a ser uma das lideranças da seita que traiu a humanidade. Talvez o autor tenha exagerado um pouco ao imaginar uma organização que se insurge contra o restante de seus semelhantes, formada por fanáticos místicos e ambientais de variados matizes, verdadeiros sociopatas. Mas, por outro lado, quem sabe o que realmente aconteceria se tal descoberta fosse feita por pessoas com esta índole amarga e fanática?
Os trissolarianos organizam uma expedição gigantesca com naves de gerações, pois viajam a um milionésimo da velocidade da luz, para invadir e fazer da Terra o seu novo lar, um verdadeiro paraíso, em comparação ao inferno onde vivem. Mas depois de descobrirem que os governos da Terra desmascararam a seita e descobriram seu objetivo, chegam à conclusão de que os 450 anos que levarão para chegar ao seu destino permitirá aos terráqueos desenvolver-se tecnologicamente para repeli-los. Assim, lançam mão de um engenhoso estratagema baseado na física de partículas para travar o desenvolvimento científico da humanidade. A discussão do conceito é fascinante, mas um pouco difícil para um leigo acompanhar. Certamente deverá deleitar leitores com formação em física.
O romance apresenta uma boa contextualização histórica da China contemporânea importante para a história, mas ela é, principalmente, uma FC hard e das boas. Procura basear-se no conhecimento científico conhecido hoje, e isso dá mais plausibilidade à especulação de como seria o mundo alienígena e seus habitantes, chegando mesmo a impressionar pelo seu grau de detalhismo. Isso sem falar do que poderíamos chamar de uma perspectiva não-ocidental para uma aventura de FC, ao mostrar dois momentos diferentes da sociedade e da cultura chinesa. Soa até estranho imaginar que os chineses façam o eventual contato, tão acostumados que estamos a pensar que esta primazia pertencerá a alguma nação rica do Ocidente. Mas por que não?
E como alerta Cixin Liu em seu ótimo posfácio, não é sensato imaginar que eventuais civilizações extraterrenas sejam, necessariamente, pacíficas. Por que elas assim seriam, se nós mesmos nunca fomos com outras culturas e povos aqui da Terra, com tantos casos de genocídio e escravização? Apenas porque teriam atingido um estágio científico tecnológico superior ao chegarem às estrelas? É um equívoco primário associar desenvolvimento da técnica com valores éticos e morais. Até porque eles são relativos, de uma sociedade para outra. Quanto mais dirá de civilizações não humanas.
O Problema dos Três Corpos é o primeiro de uma celebrada trilogia campeã de vendas na China. (Imagine o que deve ser isso, no país mais populoso do mundo!) O segundo volume acaba de sair no país, também pela Suma de Letras: A Floresta Sombria (The Dark Forest, 2008). A trilogia deverá ser completada, assim esperamos, com Death’s End (2010). Para quem gostar do primeiro, será certamente uma leitura obrigatória.

– Marcello Simão Branco

Um comentário:

  1. Excelente resenha. Amei o livro e não sabia que era uma trilogia. Agora sei que terei de ler os outros dois. Só uma pequena correção. A seita se chama OTT (Organização Terra-Trissolaris).

    ResponderExcluir