quarta-feira, 1 de abril de 2015

A Estrada, Cormac McCarthy

A Estrada (The Road), Cormac McCarthy. 234 páginas. Tradução de Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva – selo “Alfaguara”, 2007.

Apesar de não ser um autor ligado à ficção científica, este romance de Cormac McCarthy era um dos mais aguardados lançamentos para o mercado brasileiro, desde que foi lançado nos Estados Unidos em 2006.
De muito prestígio nas letras americanas, McCarthy venceu o mais importante prêmio literário de seu país, o Pulitzer de 2007, com A Estrada. Já entre os prêmios mais importantes da ficção científica do mesmo país, o livro não alcançou o mesmo impacto. Talvez porque o tema não seja novidade para os iniciados no gênero, pois ‘fim do mundo’, ‘terra devastada’ ou ‘pós-holocausto nuclear’ estão entre os mais explorados pelos especialistas no gênero, com clássicos indiscutíveis como, por exemplo, Só a Terra Permanece (1949), de George R. Stewart e Um Cântico para Leibowitz (1959), de Walter M. Miller Jr.
Mesmo assim, entre os sub-gêneros da ficção científica mais abordados pelos autores mainstream está o tema do fim dos tempos. E não é para menos, especialmente entre as décadas de 50 e 80 do século passado quando sob a vigência da Guerra Fria, o mundo esteve por mais de uma vez às portas de uma guerra final. Exemplos são romances como A Hora Final (1957), de Nevil Shute e Após o Fim (1960), de Alfred Coppel.
Não sei as razões que levaram McCarthy a escrever um livro com este tema neste início de século XXI, mas apesar do apocalipse nuclear não estar mais nas manchetes diárias dos jornais, o mundo pode sim vir a viver uma catástrofe de dimensões próximas ou semelhantes, por outras razões. Seja por um novo supervírus com contínuas mutações, um sério desequilíbrio ecológico ou mesmo o impacto de um corpo celeste no planeta em que vivemos.
Curioso também é que A Estrada trata do tema do fim da civilização e do mundo natural como o conhecemos sem nos dizer claramente o que afinal aconteceu. É verdade que lá pela página 47 o homem que segue peregrinação com seu filho relembra o que teria acontecido, ao ouvir o som de uma grande explosão, seguida de outros menores e terremotos. Ele não volta a especular sobre o que ocorreu, mas pela descrição do estado do que sobrou intui-se que tenha sido o resultado de um conflito nuclear. Afinal o planeta foi devastado, as cidades em ruínas, as florestas queimadas ao ponto de se transformarem em cinzas, uma grande quantidade de fuligem pelo ar, o que impede uma maior incidência da luz do Sol e, por consequência, do calor. Os mares mortos, escuros e estéreis.
O cenário é aterrador, mas o verdadeiro enredo e drama estão centrados na história de um homem e seu filho que percorrem uma longa, triste e perigosa jornada em direção ao Sul, em busca de um pouco menos de frio e, quem sabe, alguma coisa melhor do que a destruição com que passaram a conviver. Munido de um mapa velho e tendo como referência uma estrada principal e algumas secundárias eles seguem seu caminho sob neve intensa, frio e chuva, juntando em um carrinho de supermercado o pouco que aparece pelo caminho para comer e se proteger – produtos enlatados, roupas e um revólver – e deparando-se, vez por outra, com outros sobreviventes. E o encontro com estes revela-se sempre o mais potencialmente perigoso.
Além do aspecto prático há também um forte simbolismo na escolha da estrada como condutora da jornada. Pois ela representa ao mesmo tempo liberdade e busca pela fronteira do desconhecido. O sentido de desbravamento e conquista é muito caro ao imaginário ocidental – e norte-americano em particular. Mas em um mundo como esse o único sentido que resta à estrada é o da busca de salvação à queda. Pois a civilização caiu, não existe mais Estado, nem leis e ordem, e a moral é a individual de cada um, baseada, no fim, numa luta dramática em permanecer vivo. E mais por instinto do que por razão. Pois o ser humano está reduzido à sua crua condição de animal num verdadeiro estado de natureza à lá Hobbes, para quem ‘o homem é o lobo do homem’. Pelo caminho, pai e filho são “os caras do bem” – na tocante definição do menino – à procura de outros “caras do bem” que, em princípio, só pode caber na fantasia do menino.
A prosa é fluente, direta e ao mesmo tempo intimista, contada por um narrador onisciente, num tom marcado pela desesperança ante o caos estabelecido. É, nesse sentido, uma história muito triste e fatalista, mas não necessariamente depressiva. Vale a pena acompanhar a viagem rumo a não se sabe o quê de um pai e seu filho, aí a verdadeira força da história, na luta desesperada pela sobrevivência, mesmo que objetivamente falando, não haja futuro nenhum para os dois, especialmente para uma criança. Pois em um mundo como este é como se não houvesse sentido para a juventude, já que o mundo não tem mais nada a oferecer.
Talentoso como é, McCarthy tira muita emoção da história também pela maneira como a conta. Não há capítulos, apenas pequenas pausas de páginas em páginas, acentuando um caráter de continuidade e fruição que reforça o sentido da busca angustiosa e sem pausa pelos dois personagens. Também os diálogos estão entremeados ao texto, sem nenhum tipo de indicação, dando a impressão de que tanto a narrativa, quanto as falas misturam-se mutuamente, o que ilustra o caráter psicológico e de proximidade do drama dos personagens junto ao leitor.
Pai e filho só tem um ao outro. Sabe-se que a mãe não aguentou o horror. Se o homem mantém sua integridade moral ela deve-se, em boa parte, ao menino. É bonito ver como ele é cuidadoso e amoroso, não só em cuidar da saúde do filho, como também em incutir nele valores nobres em um mundo que perdeu o rumo. E, claro, há passagens marcantes, como quando o menino vê outro menino e pede ao pai para adotá-lo, mas este nega; ou ao encontrarem um velho maltrapilho e o alimentarem. E em momentos especialmente perigosos ou horríveis, como quando encontram saqueadores, num depósito subterrâneo com prisioneiros a serem abatidos para alimento. Sim, o canibalismo viceja neste mundo degradado, como em mais de uma oportunidade eles têm a oportunidade de se deparar.
Impressiona na narrativa a sensação de morte iminente do pai e seu filho. O leitor é conduzido a cada página e parágrafo – ainda mais porque não há capítulos, como disse –, ao suspense de que algo novo e horrível pode acontecer. Ainda mais porque tanto o pai como o filho nos transmitem de maneira vívida este medo e angústia, tornando o leitor uma espécie de testemunha participante do drama.
Em termos de ficção científica strictu sensu esta história não inova em termos temáticos. A sensação macro de transformação dramática, apocalíptica que o mundo pode passar, no caso de vivenciar um armageddon, comum nos clássicos, está presente, mas não de forma prioritária no plano narrativo. Talvez porque o próprio autor tivesse isso em mente, de que seria bobagem querer acrescentar algo deste tipo a esta altura de desenvolvimento do gênero. Assim, partiu para uma abordagem mais íntima e individualizada, centrada no relacionamento de duas pessoas em um mundo destituído de sentido. Por esse aspecto o romance é mais efetivo, pois ao situar o drama deste ponto de vista, o torna mais próximo da situação que cada um de nós poderia, eventualmente, passar numa situação limite e trágica como esta.
Com isso, A Estrada faz a diferença e encontramos a sua grandeza humana e artística, ao iluminar a especificidade do relacionamento muito próximo e especial que existe – ou pode existir – entre um pai e seu filho. Pois mesmo neste cenário terrível, ainda prevalece o amor como um valor importante entre duas pessoas. Neste sentido o livro emociona – e para além do período de sua leitura – tanto em seu desenvolvimento como, principalmente, pelo desfecho brilhante e inesquecível que está reservado para o destino da jornada de um homem e seu menino num mundo moribundo.
Marcello Simão Branco

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