Jeronymo Monteiro é, sem dúvida, um dos nomes mais proeminentes da ficção científica brasileira em todos os tempos, gênero para o qual dedicou praticamente toda a obra. Sua ficção é difícil de ser encontrada para leitura, pois todos os livros encontram-se esgotados e nenhum deles parece ter conhecido segunda edição ou uma tiragem expressiva, como aconteceu com outros autores a ele contemporâneos. Por isso, ainda que o fãs tenham seu nome na ponta da língua quando se refere à ficção científica brasileira, seus escritos receberam pouca atenção dos mesmos.
Nascido em São Paulo em 1908, passou a juventude no bairro do Brás. Seus primeiros trabalhos foram publicados nas revistas Fom-Fom e O Cruzeiro. Em 1927 lançou o programa Dick Peter na Rádio Difusora, cujas histórias escrevia e narrava. As novelas do programa foram publicadas em 1950 como As aventuras de Dick Peter, em uma coleção de dez volumes pela Editora Martins.
Fundou e foi o presidente da mítica Associação Brasileira de Ficção Científica e escreveu mais de uma dúzia de livros, entre os quais O irmão do diabo (Editora Nacional, 1937), 3 meses no século 81 (Globo, 1947), A cidade perdida (Nacional, 1948), Fuga para parte alguma (GRD, 1961) e Os visitantes do espaço (Edart, 1963). Já no final da vida, assinou a editoria do Magazine de Ficção Científica da Editora Globo, vindo a falecer em 1970, quando a revista estava ainda em seus primeiros números.
Tangentes da realidade é uma coletânea, publicada em 1969 pela editora Quatro Artes em sua Série Infinito, com oito contos do autor, alguns vistos em outras antologias, mas a maioria inéditos.
“As pedras radiantes”, escrito em 1964, abre a coletânea. José Prendick Campos apresenta-se nas joalherias de São Paulo como um garimpeiro de Cuiabá, oferecendo uma partida excepcional de diamantes da melhor qualidade por preços muito baixos. Depois de realizar várias vendas, um joalheiro desconfiado chama a polícia pois acredita que José estivesse vendendo mercadoria roubada. Porém, José escapa dos policiais e volta à joalheria para concluir o negócio. Dessa forma, vende seu estoque inesgotável de diamantes em várias cidades do mundo.
Na segunda parte do conto, acompanhamos a transformação de Seu Garcia, um próspero especulador imobiliário que enriqueceu explorando seus clientes. Repentinamente, ele muda de atitude perante a vida, passando a praticar preços honestos e investir em habitações populares. O mesmo fenômeno inexplicável acontece também em outras partes do mundo, com muitas pessoas que antes exploravam, agora colocando-se a serviço da sociedade. Na terceira e última parte do conto, será revelado o que os diamantes do garimpeiro José Prendick Campos têm a ver com a súbita metamorfose do Seu Garcia e dos demais empresários pelo mundo. A história é um tanto ingênua, mas tem sequências bem elaboradas.
“Estação Espacial Alfa”, escrito originalmente em 1955, já fora apresentado aos leitores na histórica Antologia brasileira de ficção científica (GRD, 1961). Lot é o cientista que supervisiona a instalação da primeira estação espacial em órbita da Terra. Ele não tem muita convicção de seu próprio trabalho, mas realiza as primeiras etapas do projeto de acordo com o planejado. Quando a estação está semi-operacional, decide testar um veículo de reboque, no que é acompanhado por outros cientistas. Durante a expedição, avistam um objeto desconhecido que revela ser outra estação espacial, construída em segredo pelos russos. Ao se aproximarem da estação, ocorre um fenômeno imprevisto que os obriga a desembarcar; apesar de algum receio, são recebidos cordialmente pela tripulação russa. Porém, a abordagem é interpretada pelos governos da Terra como um ato de guerra, e detona-se um sério conflito mundial. Este trabalho apresenta a narrativa apoiada em descrições didáticas, com pouca participação ativa dos personagens. Também mostra uma visão positivista do futuro da humanidade, redimida de sua belicosidade através do conhecimento científico, porém não sem passar por uma tragédia global, o que para o leitor moderno soa simplista, mas pode ter parecido dramático ao leitor da década de 1960, que esperava sobressaltado a deflagração de um conflito nuclear que, para nossa sorte, nunca aconteceu.
“O copo de cristal”, escrito em 1964, é o terceiro conto da coletânea. Miguel tem, há muitos anos, um taça de cristal com o pé quebrado. Ele a encontrou quando garoto, num terreno baldio onde brincava. Na noite que se seguiu, a taça colocada sobre o tampo da pia da cozinha fulgurou um belo brilho azulado. Depois de tantas décadas, o artefato ainda lhe é um mistério, pois parece ter sido modelado originalmente sem o pé, além de que, apesar de ser feito do mais fino cristal, é inquebrável mesmo sob impactos fortes.
Miguel tenta reproduzir o fenômeno que testemunhou na noite de sua longínqua infância e, no processo, voltam-lhe as memórias de seu passado infeliz com um pai demasiadamente severo e a prisão no DOPS acusado de comunista. Auxiliado pela esposa, Miguel começa a desvendar o segredo de sua taça de pé quebrado. O que ele vê apenas como um brilho azulado, a esposa percebe como cenas realistas de violência e miséria: a taça é, na verdade, um aparelho que mostra o futuro da humanidade e o que ela exibe é terrível. Um conto clássico da ficção científica brasileira, muito mais maduro que os anteriores, com poderosa carga emocional e, ao que tudo indica, com generosa dose autobiográfica. Parece ter sido o único trabalho da ficção científica brasileira da época a fazer referência explícita à repressão militar da ditadura.
“Missão de paz” foi escrito em 1955. Cientistas captam sinais vindos do espaço que, quando descodificados, revelam ser emissões de discos voadores alienígenas anunciando para breve um pouso na Terra. Na data marcada, os discos aterrizam em várias partes do planeta, mas deles desembarcam apenas humanos que haviam sido anteriormente abduzidos. Num local, contudo, o disco não consegue pousar, pois é recebido pela artilharia de forças armadas receosas de uma invasão. O ataque não faz mal ao veículo, mas ele emite um raio misterioso que faz todas as armas atacantes explodirem, deixando o exército sem qualquer equipamento operacional. Pouco depois, os sinais anunciam um ultimato a todos os países da Terra, para que destruam seus arsenais ou então os discos o farão, com grande perda de vidas. O autor novamente volta a tratar a humanidade com pessimismo, relegando aos alienígenas a missão de nos pacificarem. Porém, simultaneamente, ele vê o futuro com otimismo pois, destruídas as armas, imagina que a humanidade irá se comportar. Ainda assim, o conto tem o mérito de antecipar muitas outras histórias de contato na mesma linha.
“O elo perdido”, escrito originalmente em 1947, já fora visto na antologia Além do tempo e do espaço (Edart, 1965). Um casal jovem e exemplar tem uma vida perfeita, repleta de amor e sucesso profissional, quando decide que é hora de ter um filho. A gravidez corre bem e o menino nasce com saúde de ferro, mas ele não é uma criança normal. Trata-se de uma espécie de neandertal, com ossatura sólida, braços desproporcionais, musculatura forte, penugem avermelhada por todo o corpo e rosto, e um pequeno rabo. O pai recebe a notícia com horror, mas a mãe o trata como um bebê normal. Com o tempo a cauda atrofia, mas o garoto continua a parecer um elo perdido. A família se isola numa casa de campo para preservar o garoto da curiosidade popular, e o menino delicia-se com a vida campestre que parece ser de fato o seu ambiente natural. Contudo, o pai continua incomodado com a criança. Aos onze anos, esse incômodo, transformado em ódio, vai causar uma tragédia. Um dos melhores contos da antologia, emotivo e dramático, sem qualquer dos problemas estruturais vistos nos trabalhos anteriores.
“Um braço na quarta dimensão”, escrito em 1964, é sem dúvida o trabalho tecnicamente mais bem realizado da coletânea, com a narrativa em tom de crônica que lhe dá muita personalidade. O personagem-narrador conta a história de um homem que vai realizar um trabalho de manutenção em sua casa em Mongaguá (cidade em que o autor residiu por muitos anos). Esse homem não tem um dos braços e a forma como o perdeu é inusitada. Reservado, ele só conta sua tragédia pessoal depois que o narrador testemunha o fenômeno que é a maldição de sua família e prenuncia o fim de sua própria vida.
“A incrível história de Tômas de Saagunto”, escrito em 1950, também tem boa qualidade técnica e dramática, mas não é uma história de ficção científica, e sim de horror. Conta a aventura traumática de um sobrevivente, o citado Tômas, que ficou várias semanas preso, com o seu pai e alguns mineiros, nas profundezas de uma mina que desmoronou. Sem qualquer chance de sair de lá pela entrada original, o grupo tenta encontrar saída através de uma caverna desconhecida, mas há muitos perigos na escuridão que o infeliz Tômas terá de carregar para o resto de sua vida.
“O sonho”, que fecha a coletânea, foi escrito em 1964. Tem um tom de crônica e também não é possível classificá-lo como fc, sendo mais provavelmente um trabalho de fantasia sombria. Começa com um debate entre diversos personagens durante um encontro social na residência de um deles. Aqui também se percebe alguma referência autobiográfica, pois as personagens devem ter sido inspiradas em pessoas de seu convívio do autor. Uma delas pergunta aos demais: “O que seriam os sonhos?” Cada um dos presentes dá a sua definição, umas místicas, outras científicas, até que um deles, perneta cético e assumidamente covarde, resolve dar um depoimento ao invés de apenas dizer o que ele pensa que os sonhos são. Ele conta a estranha experiência onírica que teve quando jovem, transformando este conto quase familiar numa história de guerra como poucas que já se escreveu na ficção científica brasileira, com um final surpreendente, ainda que não seja propriamente um final surpresa. O conto é perfeito em todos os aspectos, igualando em qualidade os demais bons trabalhos da coletânea.
Como se percebe, o tema principal do livro é a tragédia humana. Seja pessoal, familiar ou global, o conteúdo de todos os contos presentes em Tangentes da realidade é construído em torno de uma tragédia e das marcas que imprimiu nos sobreviventes.
Ainda que, de forma geral, não seja um trabalho equilibrado, Tangentes da Realidade é um livro perturbador, que deixa no leitor um toque de estranhamento com relação à realidade objetiva e ao futuro da humanidade.
— Cesar Silva
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