Ao longo dos primeiros anos deste século, evoluiu um novo subgênero na ficção fantástica, para além da ficção científica, do horror e da fantasia: a ficção vampírica, que se justifica pela grande quantidade de romances com vampiros publicados nos últimos anos. Nesse modelo, temos ficções alternativa, científica, de horror e de fantasia, cada qual usando instrumental próprio mas, invariavelmente, prestando sua homenagem a esse que é um dos principais mitos modernos.
Dentro deste subgênero, é claro que se destacam as histórias de terror, mas vai longe o tempo em que uma história de vampiro tinha que dar medo. Os vampiros ganharam status romântico, símbolo de uma humanidade transcendente, através do qual se pode discutir uma infinidade de situações dramáticas que, ainda que possíveis com a narrativa realista, ganham laivos contrastantes que permitem abordagens mais amplas, como em toda a ficção fantástica. Essa receita já se apresenta também com outros personagens típicos da literatura de horror, e a escritora e artista gráfica Giulia Moon tem dado colaboração importante ao modelo.
Autora das coletâneas Luar de vampiros (Scortecci, 2003) e Vampiros no espelho & outros seres obscuros (Landy, 2004), Giulia montou uma variada coleção de monstrinhos adoravelmente líricos, tão poéticos e suaves que bem poderiam estar em livros infantis. Justifica-se a autora que diz morrer de medo de assombração.
Do mesmo modo, os onze contos que compõe A dama-morcega agradam tanto ao leitor habituado ao gênero do horror quanto aquele que geralmente teme o estranho. Os horrores de Giulia Moon são ternos e familiares, imagens de sonho que estranham, mas não aterrorizam, que assustam um pouquinho, mas não causam pesadelos, e carregam o leitor para aquele período iluminado da vida, quando o canto escuro do quintal era tão aconchegante em seu mistério que sonhamos em um dia poder voltar a ele.
O prefácio do volume é assinado por ninguém menos que o mestre do horror brasileiro, o escritor multimídia Rubens Francisco Lucchetti, que escreveu a maior parte dos roteiros de cinema para os filmes de José Mojica Marins e Ivan Cardoso, e que, em parceria com outro mestre do horror, o ilustrador Nico Rosso, deu forma a boa parte da mitologia brasileira dos vampiros nas histórias em quadrinhos das revistas de terror ao longo dos anos 1960/70. Apesar de importante, Lucchetti é atencioso com os apreciadores de horror, e seu entusiasmo com o trabalho de Giulia Moon é, sem dúvida, sincero. E qualquer livro que tenha um prefácio desse calibre já começa bem. Também colabora com a boa impressão o cuidado gráfico do volume, em formato de bolso, com uma belíssima capa aveludada e diagramação limpa e elegante.
Depois de uma pequeníssima introdução, só mesmo para situar o leitor desavisado, Giulia apresenta o conto "Luna errante", uma história de lobisomens, mais exatamente de uma lobisomem às avessas. Ela vive a maior parte do tempo com sua alcateia, em forma de lobo e, eventualmente, transforma-se em mulher para caminhar entre os homens de vida curta, fazer amor com eles e, talvez, comê-los. Sua maldição não é ser loba, mas ter se apaixonado sinceramente em uma de suas aventuras na cidade dos homens. Um homem que desaparece, deixando-a infeliz em sua vida de loba, até que muito tempo depois, ele reaparece, heroico e envelhecido, para cumprir sua promessa de amor que, entretanto, não vai apagar a tristeza do coração da loba.
O segundo conto é o melhor de toda a antologia, por resumir perfeitamente todo o conjunto de propostas estéticas e líricas que Giulia ensaiou no volume. "Júnior e seu gnuko" conta a história do menino Júnior e seu amigo invisível. Esse amigo, entretanto, apesar de divertido, não é lá muito bem intencionado. Vive propondo brincadeiras estranhas que quase sempre implicam em algum tipo de vivissecção. Mas Júnior é um bom menino e mantêm seu amigo invisível, a quem chama de Gnuko, bem comportado. Mas um dia as coisas fogem do controle, Gnuko materializa-se, enorme, bem no meio do pátio da escola, pondo a garotada em polvorosa. Júnior mantêm-se firme, mas parece que sua autoridade não será suficiente para controlá-lo desta vez. Uma história assustadora e divertida, narrada com singeleza e sensibilidade.
A seguir temos "O vampiro e a donzela", em que a autora volta ao seu monstrinho favorito. Uma vampira envolvente apaixona-se por um homem, mas ele ama outra mulher e a despreza. Ela passa a persegui-lo e torturá-lo, até reduzi-lo a farrapos. Então, finalmente, o seduz para depois matá-lo, mas não executa o plano e o abandona, moribundo, para descobrir que, contra todos os prognósticos, ela ficou grávida dele. Apesar do tratamento inovador, a história parece prometer mais naquilo que não contou: seria uma boa história erótica, se devidamente recheada das cenas picantes de praxe, mas seria ainda melhor se mostrasse o tipo de gravidez e descendência que essa vampira teria.
"Perdido" é uma narrativa típica de Além da imaginação, de fato há muitas histórias nesse seriado que são semelhantes a ela, por isso é uma história previsível. O que lhe dá substância é a narrativa calorosa e lírica. Um menino se desencontra de sua turma de excursão, perde o ônibus e fica vagando na estrada, sem destino. Conforme caminha, confabula consigo mesmo, meio choramingando, meio praguejando. Tem um encontro soturno e, quando está prestes a entrar em pânico, o ônibus finalmente volta para pegá-lo, pois ele não podia ficar pra trás. De jeito nenhum.
O conto seguinte não é fantástico. Trata-se de uma espécie de homenagem aos gatos, esses seres estranhos que algumas pessoas gostam de ter por companhia e que já inspiraram diversas histórias deliciosas. Em "O paraíso", um gato vê sua realidade virar de cabeça para baixo quando a violência humana macula a cozinha em que ele mora. Toda placidez de seu caráter, moldado por uma vida de conforto e bem estar, submerge na ferocidade animal ao ver sua dona ser atacada por um estuprador. O leitor que já teve um gato em sua vida, certamente vai se emocionar com esta história.
Em "O ser obscuro", uma mulher que não tem muito o que fazer espiona seu vizinho esquisitão. Não há como não se identificar com um e outro, típicos habitantes citadinos, daqueles que gostam de viver sozinhos ou em meio aos livros. Uma noite, o esquisitão bate a porta da mulher. Ele está apavorado com algo que rasteja em sua biblioteca. A casa do homem é, em si, um panorama de fantasia: livros velhos por toda parte, em estantes, espalhados pelo chão, caídos e amontoados. Um monte deles emana uma presença ameaçadora, que apavora o homem. Uma história para apavorar os ratos de sebo, mas que tem o efeito contrário: afinal, que rato de sebo não sonha encontrar o seu próprio exemplar do Necronomicon perdido em alguma estante empoeirada, por uma bagatela?
"O herói e o diabrete" apropria-se de um personagem criado por um outro autor, Adriano Siqueira, o editor do site Adorável Noite no qual Giulia estreou o seu trabalho literário. Apesar do conto não o nomear, trata-se de Valente, um cavaleiro medieval heróico, como devem ser os cavaleiros medievais, mas um tanto convencido e tolo, que vai enfrentar uma bruxa poderosa. Ele leva em seu ombro um diabrete inútil, que só faz dar trabalho, mas se revela a arma secreta que derrota o monstro. Porém, o herói não poderá colher os louros de sua vitória. Como sempre, morre em circunstâncias desagradáveis e acaba sendo escravizado por seu diabrete, agora transformado num grande demônio, a qual terá de servir, acorrentado em seu ombro. A história é divertida, bem contada e tem imagens vívidas, mas é um bolo com cerejinhas que só os frequentadores do Adorável Noite vão saborear completamente.
Maya, a vampira preferida de Giulia, retorna no conto novaiorquino "Perigosa ilusão". A predadora, que tem uma paixão doentia por seu mordomo, decide arrumar um sósia do mesmo para, em seu fim-de-semana de folga, realizar algumas de suas fantasias. O conto tem sustentação própria, mas parece depender um tanto dos trabalhos com a personagem vistos em outros livros. Não se explica o porquê de Maya ter esse desvio de conduta e como o mordomo mantêm o poder sobre ela. Para quem vê a coisa de fora, como no meu caso, parece uma espécie de variação a um possível platonismo entre Bruce Wayne, o Batman, e seu mordomo Alfred. Uma brincadeirinha de internet que, como no conto anterior, só quem é iniciado vai aproveitar.
"A tia madrinha" é outra variação, desta vez sobre as histórias de fadas. Não chega a ser um conto, é mais uma vinheta de aproximadamente 700 palavras, na qual um demônio chamado Gertrudes conta como e porque resolveu poupar uma de suas vítimas, um menino com potencial psicopata, para mais tarde transformá-lo também num monstro.
"A dama-morcega" é o conto mais longo e mais elaborado do volume. Inspirado na primeira mulher-gorila dos freak shows brasileiros – a quem é dedicado –, conta a história de uma vampira mantida em cativeiro para exibição em um circo de aberrações na São Paulo do início do século XX. Numa apresentação, é vista por um médico que atesta a autenticidade da criatura, ao mesmo tempo que se encanta por ela. A vampira consegue iludir o tratador e o mata, mas o médico a captura e passa então a mantê-la prisioneira em seu laboratório, onde recebe visitas de um amigo confidente. Aos poucos o médico enlouquece, enquanto a vampira recupera sua beleza, segurança e, finalmente, a liberdade. Há muitas citações e homenagens no conto, mas não assumem a preponderância da narrativa, que tem méritos próprios.
"Pé-de-moleque em dezembro" encerra a coletânea, outro conto muito curto que narra o encontro de Saci Pererê com o menino Jesus numa certa noite de Natal. Não há um enredo para além do diálogo filosófico entre os dois protagonistas, mas o conto é forte e merecia mais destaque pois, de certa maneira, homenageia o modernismo, tão polêmico no meio dos autores de ficção fantástica brasileira.
Disse R. F. Lucchetti sobre Giulia Moon, no prefácio: "Fiquei encantado com essa jovem criatura das trevas". A dama-morcega é uma leitura agradável, divertida e, como disse o mestre, encantadora.
— Cesar Silva
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