O Homem que Adivinhava, André Carneiro. 152 páginas.
São Paulo: Editora Edart, coleção Cienciaficção no. 8. Lançado originalmente em
1966.
André Carneiro faleceu em
novembro de 2014 e nos deixou uma obra das mais significativas dentro da ficção
científica brasileira. Muito atuante ainda antes de seu ingresso na FC, como
jornalista e poeta, Carneiro tornou-se a partir dos anos 1960 no principal nome
do gênero no país, e o mais publicado e reconhecido no exterior.
Três obras estabeleceram sua
reputação a partir desta época. As coletâneas O Diário da Nave Perdida (1963) e O
Homem que Adivinhava (1966), ambas publicadas pela editora EdArt, e seu ensaio
pioneiro Introdução ao Estudo da “Science-Fiction”,
de 1967.
Em O Homem que Adivinhava, o autor retoma alguns dos temas de seu
interesse já vistos em Diário da Nave Perdida. Mas longe estão de meras
variações sobre os mesmos temas, pois ele os explora sob novos ângulos e pontos
de vista, sobretudo a questão da incompreensão entre as pessoas e as várias
formas com que essa incompreensão se manifesta.
A ficção científica de André
Carneiro é sobretudo humanista, preocupada com os impactos que a ciência e a
tecnologia podem ter sobre a sociedade e a cultura. Em O Homem que
Adivinhava, somos expostos a níveis refinados de observações sobre a
condição humana, mostrando mais uma vez como o autor é um crítico sensível
sobre a ambiguidade do comportamento humano.
A coletânea apresenta oito
histórias que se equilibram em termos de qualidade, o que é difícil em se
tratando de um conjunto de trabalhos tão diferentes entre si. Talvez porque,
além da semelhança no subtexto das narrativas, a prosa seja segura, fluente,
com um estilo já maduro quando o autor tinha 46 anos, e que seria ainda mais
desenvolvido nas décadas posteriores — ainda que o rico impacto de suas ideias
e reflexões tenha obtido melhor resultado no conto e na novela, do que nos seus
dois romances, Piscina Livre (1980) e Amorquia (1991).
A questão principal que permeia
os contos de O Homem que Adivinhava são as dificuldades de comunicação,
relacionamento e compreensão entre as pessoas. Se é verdade que esta dimensão
ganharia contornos ainda mais complexos na sua coletânea Confissões do
Inexplicável (2007), livro de notável riqueza psicológico-existencial, já
nos anos 1960 Carneiro possuía pleno domínio da palavra e do que queria
transmitir ao leitor ao contar-lhe uma história.
Alguns contos são aparentemente
esquemáticos, como “Um Casamento Perfeito”, “Um Caso de Feitiçaria”, “Planetas
Habitados” e “O Relatório Secreto”, mas a previsibilidade das ações não esconde
o tratamento sutil a respeito das situações humanas, nem a afirmativa de que a
vida moderna e tecnológica, ou a busca e a prática de rituais sobrenaturais,
não conduzem à felicidade ou paz interior às pessoas. Ou então, que o que
consideramos como certo ou normal guarda estreita — e nem sempre aceita —
relação com um certo relativismo moral, trazendo ao primeiro plano virtudes
esquecidas ou subestimadas, como humildade ou modéstia em relação tanto ao
desconhecido no plano externo (“Planetas Habitados”), quanto no interno à mente
(“O Relatório Secreto”), também deixando nas entrelinhas que não devemos nos
levar tão a sério.
Duas histórias abordam mais de
perto a questão do preconceito e desajuste social. Em “O Homem que Adivinhava”,
um sujeito tem o dom da clarividência — enxerga o futuro de outras pessoas, mas
isto acaba por conduzi-lo ao caminho fácil e traiçoeiro da fama rápida. Da
mesma forma que as pessoas o bajulam, também o discriminam quando seus poderes
começam a falhar. Já em “O Mudo”, o talento que diferencia o protagonista é
mais sutil e mesmo discutível. Ele não fala e não ouve, mas tem uma
sensibilidade apurada em lidar com as plantas. Vive num mundo marginalizado e
particular, até que se apaixona e descobre o que as pessoas verdadeiramente
pensam dele. As duas histórias trabalham com o preconceito da sociedade e a
dificuldade dos personagens em lidar com suas diferenças; e Carneiro não é nem
um pouco otimista quanto aos desdobramentos.
Duas noveletas estão mais
próximas de temas tradicionais da ficção científica: “A Espingarda”, uma
história de pós-holocausto nuclear, e “A Invasão”, sobre o contato com seres
extra-terrestres.
“A Invasão” é uma curiosa
história de fc ufológica e mostra
como seria a reação da imprensa, dos políticos, dos militares, das pessoas do
povo e dos cientistas ante a aterragem de dois gigantescos discos voadores numa
floresta. O país destinatário do contato é Calamar, nome de um Brasil fictício,
que não por coincidência vive sob uma ditadura militar. Assim, o autor pode se
sentir mais livre para criticar a falta de transparência, a censura e a
truculência dos militares no poder, e, sob o caos, lidar com um evento de
interesse a toda a humanidade. O texto é narrado como se fosse apresentado em
recortes, com flagrantes de comentários e noticiosos a respeito do evento, e
mostra novamente como a questão do preconceito e da luta pelo poder está
enraizada no comportamento das pessoas, ainda mais numa circunstância tão
especial.
Carneiro é mais feliz, porém, com
“A Espingarda”, um dos melhores textos de sua carreira. Incluída em Os
Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica, antologia organizada por
Roberto de Sousa Causo em 2007, é um relato angustiante sobre um sobrevivente
do pós-holocausto que vaga à procura de comida, abrigo e, sobretudo, companhia
humana, que resgate algum sentido à sua vida. A certa altura ele encontra uma
pessoa, mas o contato não é pacífico, pois o outro vive cercado em uma casa de
muros altos e brada para que o visitante vá embora, pois ele teria trazido a
praga do sul do país. Como notou M. Elizabeth Ginway (in Ficção Científica
Brasileira; 2005), há uma referência sutil à clivagem entre o Sul
desenvolvido e industrializado e o Norte miserável e rural. Embora o Brasil
tenha mudado desde então, a desigualdade regional continua significativa.
“A Espingarda” é um flagrante de
um mundo que se desfez e deixou apenas restos aos sobreviventes. Tanto é que a
imagem do homem com sua espingarda e a estrada como destino, não comunica um
sentido de esperança, mas antes de solidão e incerteza sobre o que virá.
Publicado há 49 anos, O Homem
que Adivinhava foi premiado como “Livro do Ano”, pela Câmara Municipal de
São Paulo em 1966, e ilustra o destaque que o autor trouxe à fc brasileira, ao mostrar que, se
realizada como literatura de qualidade, a questão do preconceito
literário recua a um plano secundário. Ainda mais se o autor reflete de forma
despojada e madura sobre temas importantes da condição humana, seja em que
época, conjuntura tecnológica ou tipo de sociedade que estivermos inseridos.
— Marcello Simão Branco
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