A Cidade e as Estrelas (The City and
the Stars), Arthur C. Clarke, 278 páginas. Tradução de Hélio Pólvora. Arte de capa:
Vagner Vargas. Devir Livraria, Coleção Pulsar, 2012.
Desde a sua morte em 2008 Arthur C.
Clarke tem recuperado parte de seu merecido espaço no mercado editorial
brasileiro. Seus três livros mais importantes foram relançados no país desde
então. A editora Aleph trouxe de volta O
Fim da Infância (em 2010) e Encontro
com Rama (em 2011), em duas edições caprichadas. E em 2012 foi a vez da
Devir também fazer um trabalho editorial de relevo – a começar pela belíssima
capa – ao relançar o cultuado A Cidade e
as Estrelas.
Talvez o leitor estranhe chamar o livro
de cultuado. É que, para além do prestígio que o livro adquiriu quase que
imediatamente quando lançado em 1956, tornando-se um clássico nos anos seguintes,
eu tenho uma relação pessoal com este livro.
A
Cidade e as Estrelas
foi o livro que inaugurou minha sequência de leituras regulares de FC, que vem
desde o distante ano de 1985, quando tinha os meus 17 anos. É provável que todo
leitor de FC tenha aquele livro que o fisgou em definitivo para o gênero. Pense
no seu. No meu caso foi justamente A
Cidade e as Estrelas.
O relançamento da Devir é oportuno pelo
fato da última edição no país ter sido da Abril Cultural, em 1984. Mas para mim
também foi interessante porque me permitiu reler o livro e, inevitavelmente,
comparar com as impressões que tive quando o li pela primeira vez.
Alguns dizem – não sem razão – que reler
um livro de que se gostou na juventude é arriscado, pois o livro pode ter
envelhecido, ou mais provavelmente o leitor é que se tornou mais amargo. O que
posso dizer é que reler A Cidade e as
Estrelas me surpreendeu de novo. Não imaginava sentir o mesmo sense of wonder, mas se tal não foi o
caso esteve próximo.
A
Cidade e as Estrelas
conta a história de Diaspar, uma cidade em forma de cúpula, hipertecnológica, que
se isolou do resto da Terra, e do Universo. Criou uma utopia em que viceja o
bem-estar material a ponto de abolir a própria morte. A construção desta
cidade, governada por um supercomputador, é envolta em mistérios perdidos num
tempo suficientemente longo para toda verdade ficar esmaecida: um bilhão de
anos no futuro. Os humanos teriam conquistado a galáxia, mas sido expulsos de
sua glória estelar por outra raça, chamada de Invasores. Não seríamos
destruídos se nos recolhêssemos ao nosso planeta. Diaspar, portanto, seria o
resultado desta guerra perdida. O recolhimento pelo medo da extinção, que se
tornou o receio do desconhecido, não para além da Terra, mas para além dos próprios
limites de Diaspar.
Os habitantes de Diaspar tinham uma vida
praticamente imortal, pois depois de centenas de anos “adormeciam” para
renascerem em novos corpos a partir dos dados pessoais armazenados por um banco
de memórias ativados pelo Computador Central. Os criadores da cidade, contudo,
queriam, de tempos em tempos, incutir alguma variação à monotonia da utopia.
Programaram, então, o nascimento dos Únicos. Pessoas diferentes, sem passado
anterior – pois os demais habitantes lembravam de suas vidas passadas –, que
trariam consigo um valor humano esquecido: a curiosidade, o desbravamento do
desconhecido. Alvin vem cumprir este papel, tornando-se o único que tirará os
habitantes de Diaspar de seu conforto letárgico e os confrontará com verdades incômodas,
mas necessárias à sua sobrevivência. Como parte disso, Alvin foge e descobre a pastoral
comunidade de Lys, uma outra construção utópica humana na Terra, mas com
valores distintos: reina a vida simples, o ciclo normal de vida e morte e a
capacidade telepática, talvez o grande trunfo deste outro povo. Contudo, também
cultivam a solidão e o medo do desconhecido.
A
Cidade e as Estrelas permite
muitas leituras. Uma delas é da dicotomia entre dois modos de vida,
representados por Diaspar e Lys. No fundo o que Clarke sugere é que as duas
utopias não se bastam a si mesmas, mas o que mais lhes falta só pode ser
encontrado no seu oposto. Contudo, o centro do romance está na figura de Alvin,
um personagem admirável em sua coragem e ingenuidade, representando de forma clara,
o sentido de especulação e curiosidade inata da própria ficção científica como
forma de expressão artística. Creio que poucos personagens expressaram tão bem
o sentido de mudança tão caro ao gênero. Outra interpretação possível é ver em
Alvin a figura de um enviado – neste caso seria de alguém programado –, um
messias que altera de forma radical e definitiva a vida e os valores de todos.
Este romance de Clarke teve uma versão
anterior publicada em 1946 chamada de Anti-Crepúsculo
(Against the Fall of Night). Uma
novela que Clarke reconhecia carecer de mais contextualização sobre as ideias e
tramas que criara. E assim ele o reescreve e transforma, dez anos depois, no
romance A Cidade e as Estrelas. De
fato uma obra mais bem trabalhada e acabada, tanto em termos narrativos como no
desenvolvimento do enredo.
Em A
Cidade e as Estrelas, Clarke mostra sua visão de mundo cósmica, de como deverá
ser inevitável para o homem – em algum momento de sua história – ter de lidar
com o Universo, com todas as possíveis implicações científicas, filosóficas e religiosas.
Mas talvez possamos afirmar que esta visão clarkeana da transcendência cósmica
do Homem têm um aspecto mais, digamos, luminoso e otimista, do que visto, por
exemplo, no romance O Fim da Infância
(Childhood´s End, de 1953). Pois
neste o homem, prestes a alcançar o espaço, é surpreendido pela chegada dos
Senhores Supremos que o impedem de sair da Terra e o tiraniza. Constróem uma
outra utopia social, mas esmagam os sonhos humanos de liberdade e exploração do universo. É curioso que em A Cidade e as Estrelas ocorre o inverso:
o homem teria chegado aos confins da galáxia, mas também devido ao contato com
uma inteligência alienígena, fora obrigado a se recolher no seu casulo, a
Terra.
O sentido mais otimista de Clarke em A Cidade e as Estrelas se dá pelo tom
abertamente exploratório do livro, de excitação pela descoberta do
desconhecido, a despeito – ou até por causa – da estrutura social contrária
solidamente estabelecida há um bilhão de anos. Alvin lidera a Terra à sua
redescoberta e, mais que isso, a suas verdades perdidas nas brumas do tempo.
Por contraste, vemos em O Fim da Infância uma visão pessimista
do destino do homem. De como nossa instabilidade política e imaturidade social
nos renega a saída para o espaço e nos aprisiona para um fim alheio ao nosso
livre-arbítrio, nas mãos de civilizações extraterrenas misteriosas e com
objetivos obscuros. Em certo sentido o romance (e o filme), 2001, Uma Odisséia no Espaço (ambos de
1968), recupera uma certo sentido de redenção cósmica menos sombria, ainda que
não clara sobre o destino final do homem.
Já em A Cidade e as Estrelas, Clarke estava, de fato, muito inspirado,
não só em termos filosóficos e cognitivos, mas também em termos narrativos, com
algumas passagens absolutamente admiráveis. Como quando Alvin e seu companheiro
Hilvar chegam aos Sete Sóis, nos confins da galáxia; quando as verdades ocultas
sobre o passado distante são reveladas, pela enigmática mente pura de
Vanamonde; em momentos simples, mas líricos como, por exemplo, quando Alvim visualiza
a chegada da noite nos limites da cúpula de Diaspar. Uma epifania. Além disso, Clarke também
especula com sagacidade sobre temas como realidade virtual, inteligência
artificial, controle climático, imortalidade e telepatia com uma elegância
poucas vezes retomada na literatura de FC. Enfim, um livro magnífico.
Alguns críticos o acusam de pender para
soluções pulp em algumas passagens,
especialmente na conclusão do livro. Pode até ser, pois a história se situa no
contexto do tipo de FC padrão que se praticava na época, a Golden Age, possuindo um ritmo de aventura e voluntarismo que soa pouco
verossímil em algumas passagens, como quando algumas questões são resolvidas rapidamente,
como que para não atrapalhar o ritmo principal do enredo narrado. Mas não creio
que isso diminua a obra, pois poucas vezes um livro de FC apresentou tal
riqueza de ideias e profusão de soluções interessantes. Clarke estava no auge
da criatividade e do seu lirismo como autor. E isto transparece página após
página, num processo de crescimento até o clímax.
Se me arrependi de alguma coisa nesta
releitura de A Cidade e as Estrelas
foi ter ficado tantos anos sem relê-lo. O arrepio na pele que senti ao encerrar
a leitura me lembrou o da adolescência, e isso só realça porque, ao menos para
mim, este é um dos mais belos livros de ficção científica já escritos.
— Marcello Simão Branco
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