Simone Saueressig é uma das mais
ativas e bem-sucedidas autoras brasileiras de ficção científica e fantasia.
Vencedora de prêmios literários de prestígio, como o Nestlé em 1988, publica
seus livros regularmente ano após ano, a maioria deles por editoras do seu
estado de origem e residência, o Rio Grande do Sul. O Anuário já
resenhou outras de suas obras em edições anteriores e este livro apresenta
algumas diferenças em relação aos outros. É, salvo engano, o seu trabalho mais
longo, um romance, e é de FC, além
de ter sido publicado primeiramente em capítulos num blog na internet
para só depois aparecer impresso e de maneira praticamente independente.
Mas talvez a principal
característica de sua obra mantenha-se: é uma história endereçada ao seu
público preferencial: os jovens. Mas, como em outros de seus escritos, não se
destina exclusivamente a eles; é rico e complexo o suficiente para ser lida com
seriedade e prazer por pessoas de qualquer idade.
Mais desenvolta e prolífica em
histórias de fantasia de recorte brasileiro e, vez por outra, com elementos
sobrenaturais, a autora com b9
inverte essa orientação ao apresentar uma história de moldura clássica de
ficção científica. O romance mostra uma nave de gerações chamada nca 4468 em missão à estrela Gliese 581,
onde um planeta em órbita deverá ser colonizado. Pouco antes de chegar ao
destino, porém, a nave é atingida por um cinturão de asteroides inesperado e,
avariada, é conduzida à órbita da estrela mais próxima, um sistema binário. Mas
o detalhe nem um pouco insignificante é que a estrela principal é, na verdade,
um buraco negro que, num breve espaço de tempo, deverá tragar a nave em suas
entranhas.
O palco para um bom romance hard
de fc já estaria bem armado, mas o
foco da autora é outro. O verdadeiro drama no interior da nave não é apenas
tirar a nave do perigo, mas contar a história de b9. Mas quem é b9?
Depois do acidente, o pai de duas crianças morre e quem passa a cuidar delas é
o avô, o comandante da nave, Oliver Carges. Só que o sujeito está longe do
padrão de retidão moral e liderança carismática tão comum em histórias do
gênero. Carges é autoritário e sexualmente pervertido, praticando orgias e não
poupando nem seus netos. Engravida a neta Sofia e estupra o neto Douglas. Com
medo e vergonha, o menino foge para o interior semi-abandonado da nave. E
recomeça sua vida de forma anônima, simulando mesmo que esteja morto. E assim
nasce b9, o nome tirado de uma
jaqueta que antes pertencia a um homem que o ajudou e veio a falecer.
Devido a um problema no sistema
de comando da nave, o comandante Oliver não é mais reconhecido pelo computador
central para poder pilotar a nca
para fora do buraco negro. E o segundo em comando é justamente b9, o seu neto. Começa, então, uma busca
por seu paradeiro. Tanto pelo comandante, como por sua irmã, que deseja saber,
antes de mais nada, se Douglas está vivo e é possível tentar resgatá-lo.
O romance é intenso e com muita
ação. De saída chama a atenção em suas primeiras páginas a objetividade e poder
de concisão em sintetizar o enredo. Admirável. Mas é só o começo de um livro
protagonizado por personagens jovens, mas que discute de forma profunda temas
delicados e polêmicos: a violência covarde contra os frágeis, e ainda
perpetrada por aqueles que deveriam servir de modelo moral e provedores de
segurança.
Simone é habil em conduzir a
história de ritmo ágil, ao mesmo tempo em que insere estas questões como leitmotifs
da narrativa. E nisso a figura de Douglas Carges/ b9 serve como condutora, na própria dúvida existencial do
menino violentado e do jovem que luta por uma nova identidade que apague sua
dor e vergonha, mas sem que ele tenha noção integral do que vai se tornar
quando amadurecer, se é que vai.
O cenário temático é de ficção
científica, mas as questões realmente discutidas no livro são de interesse para
qualquer cidadão ou pai de família cioso de como é importante proteger crianças
e jovens de violências provocadas por adultos: estupradores e pedófilos que
permeiam a sociedade e podem estar mais perto do que imaginamos.
Apesar do enfoque estar centrado
na busca do paradeiro de Douglas, e das questões subjacentes embutidas na
violência que ele e sua irmã sofreram, Saueressig não descuida do ambiente em
que a história é contada, e este é, de fato, um dos raros livros brasileiros de
fc ambientados inteiramente dentro
de uma astronave. Assim, de maneira não muito detalhada, mas não descuidada, é
narrado como a nave produz alimento, água e oxigênio, além de seu sistema de
higienização. Elementos que só funcionam bem próximo da ponte de comando, pois
à medida que se afasta, a situação geral vai se deteriorando. E é lá, nos
chamados arrabaldes, que Douglas torna-se o incógnito adolescente b9, que vive de bicos, arrumando
sistemas elétricos avariados.
A tripulação precisa de b9, Sofia também e até o seu avô. Todos
por motivos diferentes, o que só entremeia os dramas e demandas pessoais
particulares num cruzamento com os próprios dramas de b9. Assim, a narrativa é conduzida como que rumo à
realização dos desejos de cada um, em que, claro, b9 será o ponto principal da resolução do romance. Mas tudo
isso só será possível — se é que é — como parte da construção da identidade do
próprio Douglas, da sua redenção depois da violência que sofreu. Nesta busca
interna e particular do protagonista é que o romance ganha sua maior
relevância.
Talvez a trama tenha se centrado
em demasia nos dramas de cada personagem e deixado de lado um componente vital:
a própria sobrevivência da nave. Ficou a impressão de que tudo seria resolvido
apenas pela volta de Douglas, mas isso não soa muito verossímil. Podíamos
esperar mais de uma tripulação de nave estelar para resolver um problema
técnico de sobrevivência, sem depender em demasia de um só personagem.
No início do romance, informa-se
que a nave orbita 14 dias pela estrela secundária e dois pelo buraco negro.
Neste período de total escuridão, as pessoas passam a compartilhar os sonhos
quando adormecem, num fenômeno onírico não explicado. Esta peculiaridade
poderia ser mais explorada, embora ela seja citada como parte das experiências
dos personagens ao longo da história.
Talvez por ter sido publicado de
forma independente, o livro ressente-se de uma boa revisão. Em várias páginas
trechos ficam truncados pela falta de uma preposição, ausência de pontuação ou
por palavras grafadas de forma incorreta. Não atrapalha a leitura, já que ela é
absorvente, mas exatamente por isso o texto merecia um trabalho mais
profissional de revisão.
Se em termos de qualidade, a
ficção científica brasileira se notabiliza mais pela ficção curta (contos e
noveletas), b9 candidata-se,
desde já, a estar entre os bons romances do gênero escritos no país. Pois
Simone nos apresenta uma obra madura em suas especulações e segura em sua
construção narrativa. E ainda mais importante, é uma história que pode
interessar não apenas ao leitor de fc,
mas por qualquer pessoa, por abordar de forma hábil um tema polêmico e
necessário.
— Marcello Simão Branco
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