O Zen e a Arte da Escrita (Zen
in the art of writing), Ray Bradbury. São Paulo: Editora Leya, 166 páginas.
Tradução de Adriana de Oliveira.
O lançamento de um autor como Ray
Bradbury é um acontecimento sempre especial. Aos 91 anos completados em agosto,
é um dos decanos e mais talentosos escritores norte-americanos dedicados à
ficção científica e fantasia. Mas este lançamento, em particular, é
surpreendente e sui-generis. Não
estamos diante de mais uma magnífica coletânea ou de um romance, mas de um
volume de ensaios curtos, seguidos ao final por saborosos poemas.
Publicado originalmente em 1990, O Zen e a Arte da Escrita reúne nove
textos que celebram sob grande inspiração a literatura, escritos entre os anos
de 1961 e 1986. São vinte e cinco anos que cobrem o auge de sua carreira
produtiva e que nos legou clássicos como os romances As Crônicas Marcianas (1950) e Fahrenheit
451 (1953), e coletâneas como Os Frutos
Dourados do Sol (1953) e O País de Outubro
(1955), entre outros.
Além dos temas versarem sobre os
objetivos, a prática e as emoções que devem estar implícitas na criação
artística literária, os textos também têm em comum a fluência, leveza e
descontração, dando a impressão que foram escritos todos de uma vez. De certa
forma, este aspecto demonstra a forma como Bradbury se posiciona sobre os
assuntos tratados e, principalmente, a segurança de um estilo altamente
refinado. E brilhantemente exposto também nos textos de não-ficção.
Os ensaios são escritos de uma
maneira tão despojada, agradável, mas não menos vigorosa em seus argumentos
argutos e, por vezes, duros, que colocam-se a par com suas histórias ficcionais
em termos de prazer de leitura.
Para Bradbury o escritor não deve
ser mecânico, objetivo, racional. É preciso deixar a inspiração surgir de onde
menos se espera; libertar a mente de fórmulas e esquemas imitativos, trabalhar
com o inconsciente, as lembranças – sobretudo da infância –, sonhos e com as
associações aparentemente improváveis de palavras, sentenças, frases. Tudo para
criar ideias que eventualmente sejam buriladas numa história que tenha a cara
do escritor, que seja original no sentido de que só ele possa contá-la desta
forma.
É certo que que os caminhos
sugeridos e trilhados por Bradbury não são fáceis de serem alcançados por
outros escritores. Além de tudo é preciso um certo talento inato, uma espécie
de vocação em criar mundos com as palavras. Mas ele mesmo revela que o processo
não é fácil e sim doloroso: levou dez anos para escrever sua primeira história
publicável, não por coincidência uma de sua muitas obras-primas, o tocante
conto “O Lago” (1942).
Para escrever bem é preciso
escrever sempre; é preciso ler com regularidade – e de tudo. Mas sobretudo é
preciso gostar do que se faz, escrever pelo prazer estimulado por uma espécie
de necessidade de expor ao mundo uma visão, uma ansiedade interior. Há alguns
anos tenho cobrado dos autores brasileiros de ficção científica da falta, a boa
parte deles, do que chamo de “inquietação existencial”. Ora, é o mesmo que
Bradbury defende – de uma forma mais convicente e encantadora, é claro –, para
um autor se diferenciar dos demais, expor o seu eu particular de enxergar o
mundo. Não necessariamente melhor em termos literários, mas com uma
singularidade íntima só sua, o que lhe pode garantir alguma originalidade de
expressão, mesmo que seja sobre um tipo de história de tema comum.
Bradbury admite que o autor
iniciante deve buscar um modelo, imitando seu ídolo literário. Ele se antecipa
em dizer que não se esquivou desta prática; mas apenas para dar uma espécie de
moldura de estilo, permitindo ao autor desenvolver-se nele até poder impor uma
forma e, principalmente, uma voz própria, esta mais importante porque
relacionada com as suas inquietações particulares na hora de criar uma
história.
Os textos são valiosos tanto para
o escritor maduro, quando para o iniciante, pois menos do que lições apresentam
exemplos de postura profissional, prática literária e o que deve motivar verdadeiramente
um escritor. Não seguir modismos, não priorizar o dinheiro e sucesso rápido. Este
é o caminho mais fácil para conseguir de um lado a popularidade fugaz nos
fandons da vida mas, ao mesmo tempo, trilhar uma carreira segura em direção à
mediocridade e insignificância.
Alguns artigos são simplesmente
maravilhosos e chegam a emocionar por evocarem lembranças possíveis da infância
do próprio leitor, como uma viagem com os pais, uma descoberta, uma amizade saudosa.
Além disso relacionam aspectos da concepção de mundo, livre e jovial de
Bradbury, desprovida dos embrutecimentos e cinismos da vida adulta, como principalmente
em “Como Manter e Alimentar a Musa” e “Bêbado e no Comando de uma Bicicleta”. E
neste último ele afirma:
“Todas as minhas atividades, todo
o meu desenvolvimento, todos os meus novos trabalhos e novos amores foram
causados por esse amor primitivo e original pelas bestas que vi aos cinco anos
e continuei amando aos vinte, vinte e nove e trinta anos.” (pág. 76).
No fundo, Bradbury encontrou a sua
voz, a sua autencidade reconhecível como escritor menos nos gêneros que aborda
(fantasia e ficção científica), ou no seu estilo absurdamente lírico e poético,
mas em sua infância: nos monstros ou seres imaginários (bestas, na tradução), no circo – a quem dedicou um romance
fascinante e perturbador: Algo Sinistro
Vem Por Aí (1962) –, na viagem a Marte e tantos outros sonhos vividos e não
abandonados em sua vida adulta por meio de sua literatura.
Embora não seja uma coletânea de
artigos estritamente sobre FC&F, certamente é endereçado a estes gêneros também,
pois Bradbruy neles se exercita na maior parte de sua carreira, e revela mesmo
aspectos curiosos de como criou algumas de suas histórias.
O livro é completado por belos
poemas – também voltados à arte de escrever –, tais como cerejas em tão
saboroso bolo. Pois mesmo com um título meio dúbio – tirado de um dos artigos
reunidos para o livro –, não estamos diante de um guia de auto-ajuda para
escritores, em especial iniciantes. É muito mais do que isso, com as opiniões fortes
e os exemplos da vivência de um dos grandes escritores vivos.
— Marcello Simão Branco
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