Dentre muitas peças resgatadas do passado para a memória da ficção científica brasileira, Zanzalá, do importante jornalista, romancista e poeta Afonso Schmidt (1890/1964), é uma das que se destacam. Não tanto por sua qualidade nos protocolos do gênero, mas por seu pioneirismo histórico e por suas virtudes literárias.
Foi publicada completa pela primeira vez em 1936 no "Suplemento Literário" de O Estado de S. Paulo, mas sua estreia aconteceu de fato em 28 de fevereiro de 1928, na forma de um pequeno conto publicado no mesmo jornal, que veio a compor o primeiro capítulo da obra. Zanzalá somente foi publicada em livro em 1938, pela Editora Spes.
A edição do Círculo do Livro aqui resenhada foi revista e ampliada pelo autor. A novela tem por volta de 30 mil palavras e foi publicada consorciada com Reino do Céu, texto um pouco mais curto que não será comentado porque não faz parte do objetivo deste artigo.
Schmidt era natural da cidade de Cubatão/SP, e ambientou a maior parte de Zanzalá nessa cidade. Mas projetou para o século XXI uma situação muito diferente da que conhecemos. Zanzalá é uma utopia, uma metrópole pacífica, culta, limpa e avançada, líder de sua região. Schmidt nunca imaginou que a cidade que amava se tornaria uma das mais poluídas do mundo. Embora tenha antecipado um holocausto no final de sua história imaginária, soa como um conto de fadas comparado à verdadeira tragédia que Cubatão conheceu na Vila Socó, em 1984.
Mas Schmidt tinha consciência da imprevisibilidade das ficções. Diz o autor na apresentação do texto: "Wells escreveu em 1898: 'o homem nunca voará'. No entanto, em 1936, ele chegou de aeroplano aos Estados Unidos." E complementa adiante "...compus estas páginas pensando no bom sorriso dos leitores de amanhã: deve ser o mesmo sorriso que eu esboço ao saborear o trabalho dos meus colegas do passado... Desejo apenas contar uma história de 2028 aos possíveis leitores deste ano da graça de 1949."
A história inicia com o conto que inspirou a novela. O autor a apresenta já dizendo que essa parte pode ser pulada, se o leitor assim desejar. Isso porque o capítulo inicial apenas narra, sem personagens e sem diálogos, a evolução sócio-política do mundo ainda no século XX: como a tecnologia se desenvolveu ao ponto de construir autômatos perfeitos que, aos poucos, substituíram a mão de obra humana deixando milhões de pessoas na miséria, sem perspectiva de trabalho. Como essa legião de miseráveis fugiu para o campo; como as cidades tornaram-se feudos eletromecânicos a serviço da classe política e, finalmente, como até os políticos foram superados pelos governantes automáticos.
Isso levou a humanidade a instalar a utopia bucólica que vai predominar no restante da novela. Em Zanzalá, metrópole encravada num belo vale na Serra do Mar, perfeitamente integrada à natureza, uma população pacífica dedica-se à pesquisa científica e às atividades artísticas e desportivas, num sistema comunista de princípios anarquistas. Maria Balbina, João Antônio e Tuca - pai, mãe e filha respectivamente -, vão para lá trabalhar e estudar. Instalam-se facilmente em confortáveis residências pré-fabricadas, pouco mais que barracas, mas que proporcionam total segurança, uma vez que a meteorologia é controlada.
Daí em diante, a narrativa acompanha a vida da família nesse ambiente estranho. Os capítulos não têm uma sequência rígida, são episódios mais ou menos independentes. Um deles conta a história de amor de Tuca – a jovem filha do casal –, como ela conhece Zéfiro, seu futuro marido, o namoro e o casamento. Outro, apresenta a história de Flanela, compositor demente que monta uma superprodução musical usando toda a natureza de Zanzalá como instrumento.
Noutro ainda, um grupo de selvagens renegados invade a cidade e rapta o jumento de estimação de Zanzalá. Esses selvagens fazem parte de um tribo ao norte, formada por estrangeiros imigrados que não conseguiram se adaptar ao sistema comunitário de vida da metrópole. Os cidadãos de Zanzalá castigam os criminosos, deportando-os de volta para sua tribo. Mas isso atiça a beligerância de todos os selvagens que, então, preparam-se para atacar Zanzalá com toda a sua força militar. Zanzalá vê-se, subitamente, ameaçada pela "Guerra", fenômeno sociológico extinto há décadas que, anunciado com antecedência, chama a atenção da mídia.
Observadores, pesquisadores e turistas do mundo inteiro partem para Zanzalá dispostos a qualquer coisa para ter a oportunidade de testemunhar uma verdadeira guerra. Os cidadãos de Zanzalá esperam o ataque com ansiedade quase festiva: eles não têm medo da morte, encaram-na como parte do milagre da vida e o risco de morrer não lhes traz nenhuma angústia.
A destruição cai sobre Zanzalá, com transmissão dos fatos em tempo real para todo o mundo. Milhões morrem nesse dia mas, ao final do combate, esgotada a volúpia bélica dos selvagens e enterrados os mortos, Zanzalá é reconstruída e a vida volta ao normal.
O último capítulo é anticlimático. Conta os dias finais de Tuca, vítima de uma doença incurável. Sua despedida encerra a novela, com um tom tão suave e poético que contrasta constrangedoramente com as regras da fc&f pulp, que então estavam ainda sendo redigidas pelos "selvagens do norte".
Não há dúvida que Afonso Schmidt foi um grande escritor. Poeta parnasiano e amigo pessoal de Monteiro Lobato, recusou participar da Semana de 22. Escreveu romances importantes como Colônia Cecília e A marcha, recebeu o Troféu Juca Pato de Intelectual do Ano em 1963 e teve a data de seu aniversário, 26 de junho, instituída pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo como o Dia do Escritor Paulista.
Zanzalá é fruto de um tempo singelo e ingênuo, quando grandes escritores, como Schmidt, não tinham preconceito em cometer uma história de ficção científica.
— Cesar Silva
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