Romance de aventura mitológica e especulativa de Roberto de Sousa Causo, escritor nascido em São Bernardo do Campo que desde muito jovem optou pelos temas fantásticos, principalmente a ficção científica. São seus livros a antologia A dança das sombras (Caminho Editorial, Lisboa, 1999), o romance Terra verde (editora Cone Sul, São Paulo, 2000) e o ensaio Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875-1950 (editora UFMG, Belo Horizonte, 2003).
A sombra dos homens reúne dois contos já vistos na revista Dragão Brasil (ed. Trama) mais uma noveleta inédita, resultando num dos poucos exemplos autênticos de fix-up na literatura fantástica brasileira, uma vez que não é comum no Brasil a publicação avulsa de contos em revistas (fix-up é um romance que resulta da compilação de contos originalmente independentes que, justapostos, formam uma trama única e coerente).
Tajarê, o protagonista da história, é um índio sul americano que vive numa época pré-cabralina. Dotado de poderes espirituais e mágicos, Tajarê é usualmente convocado pelas forças da natureza para dar cabo de qualquer ameaça à integridade da mesma, as quais sempre atende embora não aprecie o uso da força que tem de lançar mão para cumprir a tarefa, principalmente quando por conta disso possam acontecer mortes. Portanto Tajarê é um herói infeliz na sua condição de protetor.
A história do primeiro conto, que dá nome ao livro, inicia-se quando Tajarê é convocado a defender sua terra de invasores perigosos vindos de outro continente. O índio é conduzido pelos seres mágicos até uma praia, onde vê desembarcar um grupo pequeno de guerreiros vikings. Eles protegem Sjala, sacerdotisa que pretende localizar e libertar o deus Loki que está aprisionado em algum lugar na Amazônia. Fazendo uso de seus atributos físicos surpreendentes, Tajarê derrota todos os guerreiros vikings e captura a sacerdotisa, pela qual se apaixona.
O segundo conto é o mais curto do livro. "A Benção das Águas" é a narrativa de um monólogo interior de Sjala. Algum tempo adiante e ainda cativa, ela vive com Tajarê em sua aldeia e dele espera um filho. Apesar de ser prisioneira e sentir um amor paradoxal por seu captor, a sacerdotisa espera a oportunidade ideal para escapar e cumprir a missão que a trouxe para tão longe de sua terra.
A noveleta a seguir é divida em duas partes. A primeira, chamada "Sangue no Grande Rio", mostra exatamente o momento em que a oportunidade da fuga se apresenta a Sjala, anos mais tarde. Niadorã, o filho de Sjala e Tajarê, já é um curumim crescido. Ao pressentir o ataque de uma onça ao seu filho, Sjala usa seus poderes para salvá-lo, irritando a tribo que já não via com muito gosto a presença da cativa branca entre eles. A decisão do chefe tribal, aproveitando a presença de uma comitiva comercial de guerreiras brancas — as ferozes icamiabas — é o banimento de Sjala, que é entregue às amazonas.
Tajarê, que não estava na aldeia, retorna quando o fato já está consumado. Tomado de angústia, parte imediatamente em busca da mãe de seu filho. Depois de uma perseguição exaustiva muitos quilômetros rio acima e com a ajuda de algumas entidades mágicas da natureza, Tajarê ataca o barco das icamiabas que leva Sjala, mas as guerreiras reagem fazendo uso de atributos mágicos, ferindo o guerreiro gravemente. Ainda assim, Tajarê insiste na batalha mas, no momento em que imaginava ter conseguido resgatar Sjala, ela se transforma numa garça e literalmente foge de seus braços, voando em direção da aldeia fortificada das icamiabas, a montante do grande rio. Tajarê não sabe que, apesar de todo o seu amor por ele e Niadorã, Sjala agora está decidida a cumprir sua missão original: libertar Loki e promover o Ragnarok.
A segunda parte da noveleta, chamada "Olhos de fogo", arremata o volume em grande estilo, não deixando nada a dever aos grandes momentos de ação dos grandes livros estrangeiros de fantasia. Sjala, ainda transformada em garça, chega a aldeia das icamiabas, uma cidadela fortificada construída sobre o rio. É recebida pelas guerreiras com um misto de desconfiança e fascinação. As amazonas, que dizem ser descendentes dos atlantes, dominam uma série de instrumentos de tecnologia desconhecida, trunfos contra os muitos inimigos que têm. Mas agora cobiçam o talento de se transformar em ave demonstrado por Sjala que, por isso, é aprisionada até que se recupere o bastante para ensinar-lhes o encanto. Mesmo contida pela magia da cidadela, Sjala elabora um novo plano de fuga, convocando mentalmente para ajudá-la o monstro do mar Kraken. Enquanto as icamiabas esperam que a sacerdotisa viking se recupere, Tajarê planeja o ataque definitivo à cidadela. Para isso, usa todos o expediente de magia que tem a sua disposição, arregimentando um grande número de entidades da natureza, entre elas o poderoso Mboitatá, uma gigantesca cobra que lança fogo pelos olhos. Mas nada lhe será dado sem um preço, e Tajarê sabe que pode não sobreviver a esse custo. Mas seu amor a Sjala e a Niadorã fala mais alto; com o coração apertado pelas mortes que irá causar, Tajarê aceita seu destino, seja qual for.
Causo mostra competência na construção deste enredo, que é dramático sem ser piegas e violento sem ser gratuito. Explora com competência uma mancheia de lendas e mitologias indígenas, dando ao livro um sabor brasilianista poucas vezes visto na fc&f. O excesso de ufanismo que isso poderia sugerir é compensado com referências à mitologia nórdica que, felizmente, não sobressaem. A forma como o autor aproveitou uma variedade de animais nativos da Amazônia, incorporando-lhes atributos mitológicos, é uma das melhores qualidades da obra. Não é definitiva, mas dá um bom exemplo aos demais autores brasileiros das ricas possibilidades ainda por explorar.
Entretanto, apesar do que a apresentação gráfica do volume sugere, com a ilustração de capa assinada por Lourenço Mutarelli, ilustrações e vinhetas gráficas do próprio autor ao longo de todas as páginas internas, e a própria narrativa de fantasia heróica, A sombra dos homens não é um livro infantojuvenil. O texto não apresenta leitura fácil, com a fluidez adequada para crianças e jovens, pois Causo elaborou uma estrutura linguística criativa para modular a identidade dos diversos personagens e culturas, usando palavras incomuns e construções gramaticais exóticas em maior ou menor grau conforme a "indianização" dos mesmos. Resultou, mas esse instrumento exige uma concentração de leitura que pode dificultar a aceitação do texto por leitores pouco tolerantes. A complicada gramática criada pelo autor não é muito elegante, além de ser contraditória em si. Uma língua que não gerou a ideia de uma primeira pessoa do singular não iria permitir insigts de individualidade por parte de seus interlocutores.
Um problema adicional que pode incomodar o leitor exigente é a falta de profundidade do protagonista. Uma vez que Tajarê segue o arquétipo do herói, isso já lhe dá dificuldades para ser "redondo", pois um arquétipo que ganha profundidade deixa imediatamente de ser um arquétipo. Mas o mais visível é que, apesar de ser obviamente um índio, Tajarê não apresenta nacionalidade específica. É um índio genérico, que tanto poderia ser Tupi-Guarani, Tapajó, Xavante ou Caiapó. É de esperar que, aos olhos dos homens brancos, os índios pareçam todos iguais, mas eles não são. Elaborar um índio brasileiro autêntico é tão difícil quanto um viking, talvez mais. Isso não implicaria em conspurcar o arquétipo do protagonista, pois os traços culturais indígenas mais visíveis estão na arquitetura das moradias, na religião, na língua, nos costumes sociais e alimentares, etc. Causo deu pouca atenção a isso, infelizmente, passando muito rápido pelas descrições que poderiam colaborar no estabelecimento dessa identidade, dando ainda ao trabalho alguma profundidade antropológica. Esse descuido não atrapalha a narrativa, mas enfraquece o valor da obra, que poderia ter sido muito enriquecida por uma pesquisa mais profunda.
Ainda assim, superada a dificuldade inicial com a gramática heterodoxa, A sombra dos homens é um trabalho que se lê com prazer e que se reveste de dimensão significativa no panorama da FC&F brasileira; um trabalho que deve ser lido e discutido por suas muitas contribuições e sugestões ao gênero.
Ainda vale ressaltar a introdução luxuosa que o jornalista, compositor e escritor Braulio Tavares cedeu ao volume, um ensaio sobre o mito do herói, o herói realista, o herói brasileiro e o aproveitamento que Roberto Causo faz disso no texto que se segue.
— Cesar Silva
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