Paraíso líquido, Luiz Bras. 303 páginas. Texto da
orelha de Rebecca O´Brien. Terracota Editora, 2010.
Uma das grandes novidades da
ficção científica brasileira dos últimos anos foi a aproximação do renomado
escritor Nelson de Oliveira. Primeiro com artigos provocadores e em seguida com
a organização do projeto Portal, com seis antologias, e o livro Futuro
presente (2009), que reuniu alguns dos mais expressivos nomes da fc e do mainstream brasileiro. Se
tantas atividades já seriam suficiente para lhe colocar numa posição de
destaque, neste ano de 2010, ele publicou nada menos do que três livros! Tudo
isso o colocou na condição de “Personalidade do Ano de 2010”, merecendo uma
longa entrevista nesta edição.
Talvez para se desvencilhar de
sua persona no mainstream, Oliveira assumiu o pseudônimo de Luiz
Bras para se exercitar na seara da fc.
Mesmo assim, dos três livros publicados, um deles ainda conserva o seu nome de
batismo. É Poeira, demônios e maldições, um romance de fantástico
literário levemente inspirado em Borges, que também está resenhado nesta
edição.
Luiz Bras escreveu uma novela
infanto-juvenil de fc Babel
Hotel, que explora a ideia de repetição e prisão dentro de um mesmo dia,
numa sequência aparentemente inexplicável e impossível de fugir. Um texto que
foi finalista do Prêmio Jabuti 2010.
Finalmente, o terceiro livro é
este Paraíso líquido. Publicado com o apoio do governo do Estado de São
Paulo, dentro do Programa de Ação Cultural (proac),
traz uma reunião de sua produção curta recente que o aproximou do campo da fc de meados de 2007 para cá. Em termos
de proposta temática e interesse intelectual é, possivelmente, o livro mais
importante. A maioria das histórias foi publicada antes nas antologias de sua
própria iniciativa ou em outras que ele também colaborou, como Contos imediatos
(2009) ou Cartas do fim do mundo (2009).
Todos os textos são
reconhecidamente de ficção científica. Mas engana-se quem supõe que esta
aproximação seja tranquila ou realizada nos termos tradicionais dos escritos e
temas do gênero. As treze histórias do livro primam pelo desconcerto e por certo
desconforto, não necessariamente desagradável, mas instigante. Assim como nas
antologias por ele organizadas, a intenção é sacudir os lugares-comuns e suas
zonas de conforto medíocres, seja dos autores mainstream –
principalmente, desconfio –, seja dos de fc.
Nesse sentido, Paraíso líquido é a voz mais elaborada e profunda do
autor, sinalizando novas possibilidades, principalmente de estilo e linguagem,
mas também de temas na maneira como podem ser trabalhados. Ainda que, por
vezes, falte mais intimidade com os temas do gênero.
Como aponta a autora da orelha
Rebecca O´Brien, há uma linha narrativa e temática identificável na sequência
das histórias, embora elas sejam muito específicas e voltadas a si mesmas, numa
leitura independente. O fio que tece a linha temática de Bras situa-se na incerteza
e na dúvida, no estranhamento e mal estar dos personagens com situações em que
eles, gradativa ou abruptamente, perdem todo o seu controle racional e
emocional. E parte significativa advém do que poderíamos chamar de uma desconstrução
da realidade. Mas não em termos filosóficos, mas literários.
Os resultados nem sempre são bem
sucedidos, mas vale a tentativa e percebe-se que quando isso ocorre nenhuma das
histórias está deslocada de um projeto que se fortalece em conjunto. Isso
porque os textos estão elaborados numa estrutura narrativa e estilística que
aprofunda a sensação de estranhamento e que se acentua de história para
história. E não só para o leitor, mas também aos personagens, como que presos
numa teia enrredada pela imaginação experimental do autor.
Como em toda coletânea, alguns
textos são mais felizes do que outros. Dentro de uma perspectiva que leve em
conta o prazer da leitura e o impacto dramático, as histórias mais bem
realizadas são “Primeiro Contato”, “Daimons”, “Dèjá-vu”, “Cruzada” e
“Singularidade nua”. Em “Daimons”, por exemplo, crianças são manipuladas por
brinquedos para que envenenem seus pais. Com um ritmo quebradiço, e súbitas
mudanças que desconcertam o leitor e os personagens, é dos textos mais
pungentes sobre o universo infantil – nem tão infantil assim. A melhor história
do livro talvez seja aquela que mais próxima esteja da fc em stritu sensu: “Déjá-vu”, pois é uma narrativa
sobre uma máquina do tempo. Mas o que a torna tão inusitada e interessante é
que o tema está retratado a partir da estrutura narrativa, pois lido do começo
ao fim vai ao passado e do fim para o começo avança para o futuro. Brilhante.
Há textos mais complexos e de leitura
algo dificil, como a novela delirante e perturbadora “Paraíso líquido”, o agudo
exercício de especulação político-existencial de “Futuro presente” ou histórias
que exploram com coragem temas como os da paranoia e esquizofrenia em chave de fc, como “”Nuvens de cães-cavalos”,
“Memórias” e “Aço contra osso”.
Percebe-se que a perspectiva de
Bras vai na linha da exploração das incertezas, ou melhor, dos limites do que
entedemos por realidade, a partir das insuficiências e contradições do ser
humano, aproximando-se aqui de um Philip K. Dick, mesmo que de forma aparentemente
não intencional. Contudo, o melhor ainda oferecido por Bras é o seu texto
literário. O refinamento de sua linguagem, rara na fc brasileira em particular. Como ilustrado acima em
“Dejà-vú”, estamos diante de um autor talentoso e com pleno domínio da técnica
literária, a ponto de explorá-la sem medo e com desenvoltura. Por esse aspecto,
Bras se coloca como uma voz literária no campo da fc brasileira, ocupando um espaço que em
algum momento Ivan Carlos Regina e Braulio Tavares preencheram durante os anos
80 e 90 do século passado, embora estes com mais intimidade com o gênero em si.
Nesse sentido, a bem-vinda chegada de Luiz Bras à fc brasileira traz um salto de qualidade de estilo e que,
espero, possa influenciar positivamente para que textos com mais elaboração e
estilos mais arrojados melhorem a qualidade média da fc escrita no país, em boa parte com uma qualidade temática
interessante e promissora, mas que, em geral, ainda deixa a desejar em termos
formais.
— Marcello Simão Branco
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