A totalidade pelo horror: O mito na obra de Howard
Phillips Lovecraft, Caio Alexandre Bezarias. Prefácio de Raul Fiker e
apresentação de Marcos César de Paula Soares. 154 páginas. Editora
Annablume/Fapesp, 2010.
A partir desta primeira década do
século XXI o ambiente
universitário brasileiro passou a conviver com uma nova tendência: a de
trabalhos acadêmicos sobre temas e autores alternativos ou marginais ao cânone
literário. Claro que é uma tendência minoritária, mas com certa regularidade. Provavelmente
deve ter sido efeito primeiro do surgimento de uma nova geração de estudantes e
pesquisadores, que buscaram refletir sobre os seus interesses mais próximos e
influentes; e em segundo lugar, pela aposentadoria de uma geração de
acadêmicos, tradição literária mais conservadora. Dentro deste contexto, um dos
trabalhos mais representativos e interessantes é A totalidade pelo horror: O
mito na obra de Howard Phillips Lovecraft, originalmente uma dissertação de
mestrado defendida no Departamento de Letras, da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 2006, e que em 2010
finalmente foi publicada como livro.
É emblemático também que esta
obra aborde justamente um dos maiores outsiders da literatura do século XX, um sujeito tão admirado por seus
escritos quanto incompreendido por sua personalidade, num dos casos mais
contundentes de confusão entre estes limites. Claro, estamos falando de H.P.
Lovecraft (1890-1937).
Lovecraft viveu toda a sua vida
numa área restrita do Nordeste dos EUA, descendente de duas famílias que teriam
sido originárias dos primeiros imigrantes que vieram para a Nova Inglaterra,
puritanos religiosos e homogêneos social e culturalmente. O autor nunca
escondeu a nostalgia dos seus antepassados e seu estilo de vida que em tudo
diferia do momento histórico que ele presenciou: a transformação radical do modo
de vida rural para o urbano, com uma enorme e rápida industrialização, além de
uma intensa imigração, como parte deste processo de desenvolvimento econômico,
que trouxe para o país pessoas das mais diferentes paragens e costumes estranhos.
E esta nostalgia foi aprofundada pelas dificuldades econômicas e familiares que
o autor enfrentou, tornando-se quase que um recluso que passava a maior parte
do tempo escrevendo rodeado por dezenas de gatos.
Estas peculiaridades de sua vida
tornaram-se um ingrediente a mais para a compreensão de sua obra, tão
diferente, original e recheada de polêmicas e muita influência em fãs e autores
que o cultuam e imitam até hoje, inclusive no Brasil.
Nesse sentido é que a obra de Caio
Bezarias se destaca do ponto de vista do conteúdo. Pois analisa o autor e a
criação de seu mito – as histórias do ciclo de Cthulhu – de uma perspectiva
desmistificadora tanto com respeito à personalidade do homem, como de sua obra.
Mostra sim que ambas estão intimamente imbricadas, mas procura interpretá-las
com mais sofisticação e refinamento do que a que encontramos costumeiramente.
Colin Wilson na excelente
introdução ao seu romance neo-lovecraftiano, Parasitas da mente (1977),
argumenta que o fascínio que Lovecraft exerce advém de sua obsseção pelo terror
e pelo repulsivo, explícito tanto pela intensidade imagética quanto pelo estilo
adjetivado e barroco do seu texto. Para além do reconhecimento de um outsider
de seu tempo, a exemplo de outros em outras épocas, o romântico Lovecraft levou
às últimas consequências criativas sua rejeição e desajuste ao mundo que vivia.
A esta moldura social e literária
construída por Wilson podemos contrapor a visão mítico e histórica de Bezarias,
que inicia seu trabalho com a vinculação de Cthulhu e os outros deuses dos
Grandes Antigos através da ideia do mito original e fundador. Os tempos
imemoriais, antiquísssimos e muito antes do surgimento da humanidade seriam
cosmogônicos. Este seria o mais profundo, pois daria origem e conformação aos
demais e teria uma explicação fundante das raízes do mundo. Bezarias mostra,
com exemplos do próprio Lovecraft e de autores que estudaram os mitos, como
Cthulhu é um mito deste tipo e porque isso ajuda a entender suas características
fatalistas e niilistas, entre outras.
Por tudo o que se sabe, o mundo
ideal para Lovecraft era o dos colonos norte-americanos, com suas fazendas e
modo de vida puritano – mas não religioso no seu caso, já que ele era
racionalista e ateu –, e composto por seus iguais em termos culturais: brancos
e falantes da língua inglesa. Tudo o que destoasse deste quadro sócio-cultural seria
desagregador e ameaçador. O livro analisa de forma instigante como este mundo idealizado
foi desafiado e modificado pela transformação dos EUA numa potência industrial, e
de como sua profunda negação rendeu os frutos literários de sua obra de reação
ao status quo. Cthulhu e Os Grandes Antigos, descobertos por infelizes
pesquisadores que defendiam o modo de vida puritano, representam esta desordem
industrial e cultural, horrenda ao ponto de significar o fim da própria
humanidade. Se podemos entender as características da obra de Lovecraft através
de sua identidade, outro caminho seria a dos efeitos da pobreza em sua vida.
Wilson percorre com mais atenção esta seara.
Como sublinha Bezarias, a
despeito desta crítica ao mundo em transformação sugerir, em tese, uma prosa de
estilo mais modernista, duvidando mesmo das certezas racionais que este mundo
sugere, em termos literários Lovecraft conservava uma forma bastante
conservadora, realista, não modernista. Ou seja: ele usava um estilo
tradicional que, numa primeira visão, se prestaria a uma concordância com a
realidade, para rejeitá-la radicalmente. Certamente um paradoxo que ajuda a
tornar os escritos de Lovecraft ao mesmo tempo mais regressivos, críticos e
libertadores de qualquer tendência: seja ela artística, seja ela social. Por
esta linha, Bezarias recompõem em outro nível a crítica muitas vezes apressada
ao estilo adjetivado e em primeira pessoa de Lovecraft, que seria pura e simplesmente
deficiente. Pois ele poderia ser visto como parte desta rejeição, explicitando
subjetivamente a incompreensão, o desconforto e o medo, através dos
personagens.
A análise de Bezarias sobre a
função utópica das histórias do ciclo também é muito interessante, ao mostrar
que a volta dos Grandes Antigos de seu sono eterno, representaria a desordem
suprema, o caos em seu sentido mais absoluto, destruindo a civilização. Seria a
confirmação em estado mais acabado das rejeições que Lovecraft tanto aponta: o
horror representado pela industrialização, urbanização e miscigenação cultural.
Para Bezarias estaríamos diante de uma distopia: este mundo rejeitado por
Lovecraft já seria distópico, mas o seu limite seria niilista, pois levaria o
retorno de Cthulhu e seu panteão, trazendo o caos, ao fim da humanidade ou da
civilização.
Em seu conjunto, A totalidade
pelo horror é um título adequado, pois expressa a intenção da obra: a
tentativa de compreender a realidade por uma lógica que a rejeita e por isso é mais
bem expressa pelo horror. Nesse sentido, no delírio criativo de Lovecraft
vislumbra-se o potencial de suas virtudes críticas e os limites niilistas e
reacionários de sua visão de mundo.
Nesta análise de cunho acadêmico
e no âmbito dos estudos culturais, Bezarias traz uma contribuição relevante
tanto para o ambiente acadêmico, como para a comunidade de leitores e
escritores de ficção científica e horror do país, ainda tão carentes de boas
obras de não-ficção, em especial a que trate de estudos de autores e aspectos
de sua obra. Mas se o mito de Cthulhu é, por assim dizer, dissecado e de forma
coerente com o objetivo proposto, acaba por transparecer uma espécie de
“deshorrorização” do primeiro plano da obra de Lovecraft, a do horror e mais
especificamente do “horror cósmico” em si, por seus efeitos próprios de estilo
e seus significados de ameaça oculta e irresistível ao mundo cotidiano. Como
observou Wilson, tais características são as grandes responsáveis pelo inegável
fascínio que a obra de Lovecraft continua a transmitir através de gerações de
leitores e aficcionados.
— Marcello Simão Branco
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