Silicone XXI,
Alfredo Sirkis. 199 páginas. Capa e ilustrações internas de Al Voss. Editora
Record, Rio de Janeiro, RJ. Lançamento original em 1985.
Quando este romance foi
publicado, o Brasil vivia o período de sua transição democrática, depois de
duas décadas de autoritarismo militar. Os ânimos entre democratas e apoiadores
do regime ainda estavam tensos, à flor da pele, na expectativa de ajustes de
contas em meio a tantas arbitrariedades cometidas e a esperança de um país mais
justo e livre.
Neste contexto, não surpreende
que Alfredo Sirkis resolvesse publicar Silicone xxi, mesmo que sob a roupagem de um “romance policial
futurista”, como anunciado na capa. Foi uma solução inteligente para alguém que
não só testemunhou, como participou ativamente de movimentos de esquerda contra
o regime militar, como ficou registrado em seu livro Os carbonários, que
recebeu o Prêmio Jabuti de melhor não-ficção ainda em 1981. Sirkis adotou uma
perspectiva muito usada para se criticar um regime de exceção, situando suas
mazelas numa época futura, em princípio deslocada do tempo que ele pretende satirizar.
Em Silicone xxi estamos
no Rio de Janeiro em 2019. A cidade mantém sua aura de “maravilhosa” e, ao que
parece, remodelada em termos urbanos e arquitetônicos, com edifícios
futuristas, ruas em forma de escadas rolantes horizontais e com o predomínio da
informática e de robôs que executam desde serviços domésticos até sexuais. Duas
apostas futuristas que, até os dias de hoje pelo menos, não vingaram estão no
cotidiano deste futuro próximo: os videofones – telefones com telas onde se vê
a pessoa com quem se conversa – em certo sentido, as webcans cumprem
este papel, mas de maneira secundária –, e os aerocarros. Estes dois elementos,
aliás, estão presentes num romance e filme que em parte parece ter inspirado a
criação de Sirkis, Blade Runner, o caçador de andróides. E assim como
nesta ficção científica noir, o livro brasileiro também é assim nomeado
e conduzido por um investigador que procura solucionar uma série de crimes
sexuais cometidos por um misterioso matador.
As vítimas são todos travestis –
chamados no livro de andróginos – mortos depois do ato sexual por seu algoz
através de uma arma privativa das Forças Armadas, uma pistola de raios laser –
outro lugar comum que ainda não se realizou –, chamada de “Pistola L”. Após o
terceiro assassinato, ocorrido no movimentado Olympus Aeromotel, o investigador
José Balduíno assume o caso que trará muito suspense, ação, e reviravoltas.
Da mesma forma que os filmes e
romances noir costumam apresentar roteiros confusos e personagens
complexos do ponto de vista psicológico, o mesmo é encontrado em Silicone xxi, na figura de Balduíno, um mulato
e cinquentão divorciado, afastado dos filhos, sem muitas perspectivas de
crescimento na carreira e com uma vida sexual menos movimentada do que ele
gostaria. Por sinal, Balduíno é um dos raros protagonistas negros da ficção
científica brasileia. Outros personagens interessantes compõe o romance, como a
jornalista Lili Braga – com quem Balduíno quer ter um relacionamento –, uma
mulher que assume a independência implícita de sua profissão também com relação
ao seu comportamento social, e o dono do motel onde ocorre um dos crimes, o
argentino Pepe Moscoso, um voyer que secretamente espia o desempenho
sexual dos seus clientes e tem relações sexuais com erorobôs (robôs eróticos) femininos
e masculinos – ao mesmo tempo.
O contexto propriamente crítico
aos militares aparece quando descobre-se quem está por trás dos crimes.
Trata-se do Coronel Estrôncio, reformado do Exército que na condição de segurança
do Museu Nuclear de Angra dos Reis, lidera um esquema de contrabando de lixo
radiotivo e um grupo paramilitar, os Filhos de Plúton, ambos também com a
participação do diretor do museu, o Próton Nogueira. Talvez o leitor já deve
ter intuído o rumo do sarcasmo de Sirkis: os setores militares entusiastas do
desenvolvimento da energia nuclear no Brasil. De fato, eles foram muito
influentes durante os anos 70, a começar pelo governo do General Ernesto Geisel
(1974-1979), que queria fazer do Brasil uma grande potência do Terceiro Mundo.
Pois 1975 o país assinou um acordo de cooperação e transferência de tecnologia
nuclear com a Alemanha Ocidental, o que tornou possível a construção da usina
nuclear de Angra I, e o projeto de construção de mais duas, Angra II e Angra
III. Embora a justificativa do governo tenha sido a de praxe, ou seja, o
investimento de energia nuclear para “fins pacíficos” – devido à necessidade de
mais energia para o desenvolvimento do país –, havia uma desconfiança justificada
de que a principal intenção era possibilitar a contrução de uma bomba atômica.
Os norte-americanos foram os primeiros a insinuar o Brasil de tal intento, o
que acabou esfriando o relacionamento entre os dois países. Como de fato viria
a ser provado, em 1990, o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992),
mostrou o lugar que, supostamente, seria usado como testes para a explosão da
bomba brasileira, a Serra do Caximbo, entre o sul do Pará e o norte de Mato
Grosso.
Em Silicone xxi, um governo social-democrata
apoiado pelos militantes ambientais – os verdes – assumiu o governo do Brasil em
2005 e desativou as usinas nucleares. A partir daí, este grupo de militares
mais radicais, inconformados, procuraram se rearticular na clandestinidade para
lutar pela futura nuclearização do país, mesmo que através de ações ilegais e
politicamente autoritárias. Fundaram até mesmo uma exótica corrente ideológica
para justificar suas ações entre seus participantes, o movimento atomista.
Embora nos dias de hoje tal
comportamento possa parecer ridículo, o tema do processo de nuclearização do
Brasil foi muito candente nas décadas de 1970 e 1980 e ao criticar os militares
sob esta ótica, Sirkis está refletindo sobre a postura radical de parte dos
militares, aqueles mais diretamente responsáveis pela repressão, a corrente dos
“linhas-duras”. Além disso, a ênfase nuclear assume importância especial para o
autor já que as usinas foram construídas no Estado do Rio de Janeiro, onde ele
morava, além dele ser também um combativo militante do movimento ambiental no
país.
Ao nomear os militares rebeldes
com o nome de elementos químicos e de componentes do átomo, Sirkis claramente
realiza um engraçado deboche com a postura arrogante e reacionária, tanto no
discurso, quanto na prática, muito em voga no período em que o livro foi
escrito. E vai além, pois o tal Estrôncio possui um pênis de silicone, que
infla ao ser bombeado. Assim, os militares são também mostrados como
sexualmente impotentes e ambíguos, já que o assassino faz sexo com travestis.
Talvez o leitor possa imaginar
que o romance não vá além de um pastiche de histórias noir e com um
certo ranço vingativo, o que o tornaria superficial e panfletário. Longe dessas
características e sabe por que? Pelo fato de Silicone xxi ser, antes de mais nada, uma história
divertida, com bom ritmo, soluções criativas – como a da ambientação futurista
e a inserção de novas tecnologias no cotidiano –, e um certo ar de não se levar muito a sério.
Como se, afinal, um romance pulp noir e militares rancorosos também não
devessem ser levados muito a sério. O primeiro aspecto do ponto de vista
positivo, do bom entretenimento, mas com conteúdo crítico; e o segundo, pelo risível
de posturas tão anti-democráticas e preconceituosas.
Para corroborar este tom
descontraído, o romance tem ótimas ilustrações do franco-brasileiro Al Voss.
Além da bonita ilustração de capa, também ilustrações internas que antecedem os
capítulos mostrando situações importantes de cada um deles, como se fosse
quadrinhos. Inovador e bem concebido. Por razões como estas Silicone XXI
é uma boa leitura, um romance que mantém interesse mesmo depois de vinte e
cinco anos de sua primeira publicação.
— Marcello Simão Branco
Nenhum comentário:
Postar um comentário