Esfinge completou cem anos em 2008 e é, sem dúvida, um dos grandes momentos da ficção fantástica brasileira. Conta a história incrível de James Marian, inglês tímido em passagem pelo Brasil, hospedado na discreta e luxuosa pensão Barkley, na Rua Paissandu, no Rio de Janeiro, onde habitam também outros figurões estrangeiros e personalidades proeminentes da sociedade carioca, entre músicos, estudantes e empresários. Um deles – cujo nome não é citado e leva a crer que seja o próprio Coelho Neto – assume a narrativa e apresenta os personagens que parecem gravitar o inglês. Ele os atrai com seu ar misterioso e sua beleza extrema, sendo descrito fisicamente como um deus grego com um rosto de graça incomum.
Todos se agitam com relação a James. Alguns sentem-se atraídos por ele, como a jovem britânica Miss Fanny, professora de crianças que nutre por James uma paixão platônica. Outros, como o capitalista Comendador Bernaz, sentem repulsa por seu comportamento reservado e afetado. As relações entre os hóspedes também são alteradas pela influência do misterioso estrangeiro, como se dele emanasse algum tipo de energia perturbadora.
Numa das raras oportunidades em que James participa de uma refeição coletiva, aproxima-se do narrador e lhe faz confidências surpreendentes. Depois de uma conversa bastante íntima, James pede que ele traduza para o português uma novela que escreveu, tarefa pela qual o autor fica muito empolgado. De posse dos manuscritos, retira-se para seu quarto e inicia o trabalho.
Os manuscritos quase ilegíveis exigem grande esforço do tradutor. Aos poucos, emerge uma estranha história, que conta como um casal de jovens que morreu violentamente – o menino teve a cabeça esfacelada, e a menina o corpo destruído – tem a vida restaurada por um sábio chamado Arhat. Com o uso de conhecimentos secretos em medicina, ele une as partes preservadas num único ser: a cabeça feminina no corpo masculino. Entretanto, Arhat teme que sua criatura torne-se infeliz, com a personalidade dominada por uma eterna batalha entre dois espíritos conflituosos, sem que qualquer deles predomine definitivamente sobre o outro.
Acompanhado apenas do seu sábio tutor, quase sempre ausente, o jovem revivido passa o restante de sua infância explorando grande e bonito castelo que é sua residência. Anos depois, por ordem do sábio Arhat, um casal de adolescentes vem lhe fazer companhia e o jovem descobre os sentimentos e, com eles, seus tormentos.
Ao final da tradução deste primeiro trecho do romance, o tradutor exausto começa a apresentar um comportamento estranho: vê coisas, vaga sem destino pelas ruas, dorme mal e tem muitos pesadelos.
A tradução dos manuscritos prossegue: numa sequência de delicada beleza, Arhat transcende a existência humana e deixa para sua criatura, agora crescida e bem formada, um livro que é a chave para a revelação de sua condição, mas que apenas um homem sensível e sábio seria capaz de traduzir. Herdeira de uma grande fortuna, a atormentada quimera viaja pelo mundo em busca de alguém que lhe traduza o livro.
Enquanto isso, a delicada Miss Fanny adoece gravemente, com sintomas de tuberculose galopante. A morte precoce da donzela abala a pequena comunidade pensionista que, progressivamente, apresenta um comportamento cada vez mais irascível e extremado. O desfecho do drama se dá pouco depois do sepultamento da infeliz Miss Fanny, quando James decide ir embora. O narrador recebe uma última visita do inglês quando este vem buscar os manuscritos. Mas James ainda reserva um último grande choque ao seu tradutor, que vai tresandar o pouco equilíbrio emocional que ainda lhe resta; as páginas finais do relato são escritas muito mais tarde, depois de uma temporada numa clínica de repouso.
A narrativa de Coelho Neto antecipa o modelo de histórias que seria a marca registrada do escritor norte americano H. P. Lovecraft, em que o contato de um ser humano normal com um grande mistério o torna louco, quando não o mata. Em muitos aspectos, Esfinge reporta ao estilo do horror gótico, por conta do texto rebuscado, da narrativa em forma de diário, das imagens de casarões e castelos, e das descrições de delírios e sonhos dos personagens, na tradição de O manuscrito de Saragoça, de Jan Potocky, O vampiro de Karnstein, de Sheridan Le Fanu, A casa na beira do abismo, de William Hodgson e Frankenstein, de Mary Shelley.
Entretanto, mais fantástico que Esfinge é o seu autor. Henrique Maximiniano Coelho Neto (1864-1934), mameluco maranhense de Caxias, escritor realista, pré-modernista, foi por muito tempo um dos mais lidos escritores brasileiros. Tinha uma impressionante capacidade vocabular, que fazia questão de demonstrar em seus escritos. Recebeu o título de Príncipe dos Prosadores Brasileiros devido ao estilo sofisticado e o sucesso entre os leitores. Seu prestígio demonstra-se inclusive no fato dele ter sido um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, ocupando-lhe a cadeira de número 2, casa que presidiu em 1926. Por isso foi principalmente contra ele, bem como também a Olavo Bilac, que os modernistas apontaram suas baterias. Acusavam-no de se interessar unicamente pela forma e pelas palavras, ignorando a realidade brasileira, e estar a serviço de uma ideologia conservadora e elitista. As críticas dos modernistas para com os trabalhos de Coelho Neto foram tão ácidas e destrutivas que o autor praticamente desapareceu da memória do leitor brasileiro. Seus mais de 120 livros publicados, todos de grande sucesso, como A Capital Federal (1893), Miragem (1895) O morto (1898), Fogo fátuo (1928), A Cidade Maravilhosa (1928) e Sertão (contos, 1896), foram obliterados do cânone e mesmo sua figura de escritor foi ferozmente denegrida por incontáveis artigos desmedidamente raivosos, que até hoje causam prejuízos.
Coelho Neto expõe em Esfinge todos os atributos que tornaram famosas suas narrativas: bom ritmo, personagens bem construídos, cada qual com um léxico particular – algo em falta na ficção de forma geral –, imagens vívidas e bom domínio da narrativa psicológica, sendo dessa forma um dos mais completos autores brasileiros a ter trafegado na literatura fantástica.
— Cesar Silva
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