Desde que Luiz Bras surgiu no panorama da ficção brasileira, a partir das antologias Portal (seis volumes publicados entre 2008 a 2010) experimentamos um período especial nessa arte literária. Herdeiro estilístico do premiado autor mainstream Nelson de Oliveira, Bras trouxe para a ficção de gênero não apenas uma respeitabilidade incontestável, mas um novo paradigma autoral que, antes dele, poucos praticavam. Surgido, ele também, no mainstream, Bras agregou à ficção científica, gênero que elegeu para ser plataforma de sua obra, um discurso artisticamente avançado em ousadia técnica e temática que foi além daqueles que antes o praticaram, como André Carneiro e Braulio Tavares, por exemplo.
Isso já podia ser percebido na sua primeira coletânea, Paraíso líquido, publicada em 2010 pela Terracota e premiada com o financiamento do Proac. Desde então, Brás tem se destacado como um dos principais proponentes estilísticos da ficção científica brasileira, explorando em sua produção os limites da arte que, praticada no Brasil principalmente por fãs, demonstra grande dificuldade em romper devido a décadas de influência da literatura pulpesca anglo-americana.
Em sua mais nova coletânea, Máquina Macunaíma, publicada em 2013 pela editora Ragnarok, Bras reuniu trabalhos inéditos e contos já vistos em publicações anteriores, apresentando um viés inovador em sua proposta. Ainda que os contos mantenham a ficção científica como base, estão mesclados, em proporções variáveis, com a fantasia e, principalmente, com o horror, num flerte que sinaliza que o autor não é resistente a novas influências. Justamente por este aspecto, vale a pena comentar individualmente os doze textos que compõe esta coletânea.
"Virtuais", o conto que abre a seleção, é provavelmente a narrativa mais convencional do conjunto, reportando ao modelo de histórias que acostumamos ver no seriado de tv Além da Imaginação (Twilight Zone). Mostra a situação bizarra de um jovem viciado em redes sociais quando, na área de alimentação de um shopping, recebe uma mensagem de socorro de uma garota que diz estar literalmente sozinha no mundo. Contudo, ela também afirma estar no mesmo ambiente que ele. Uma história que discute o quanto as coisas estão mudando para todos nós.
"Heidegard não voltará jamais" desmonta o confortável modelo do texto anterior. Completamente diferente em ritmo, estilo e dotado de um fino senso de humor, conta a história de um casal de gêmeos, ambos delegados de polícia em uma realidade pós-humana, com vilões de nomes inspirados em figurões da história. Eles vão confrontar revelações terríveis ao investigar um crime que exige visitas pessoais ao céu e ao inferno.
"Onde vivem os monstros" retorna a um modelo narrativo mais simples, mas avança para o ambiente da fantasia e do horror na história de uma jovem escultora que foge de casa à noite e decide morar escondida no museu de arte da mítica cidade de Cobra Norato. Hábil no léxico de vegetais e minerais, a garota 'ouve' as esculturas e isso vai levá-la a uma realidade que trará consequências radicais em sua vida.
"Impostor" é uma space opera de nítido contorno político-revolucionário. Um investigador da polícia da Terra, acompanhado de seu pai - o narrador da história, com quem tem uma relação ambígua - chegam a um luxuoso iate espacial para recuperar um artefato roubado que pode estar sendo contrabandeado à bordo. A administração da espaçonave deixa bem claro que não está disposta a colaborar com a investigação, e ambos são mantidos à distância dos passageiros, a maior parte deles magnatas em cruzeiro de férias. Enquanto enfrentam dificuldades nas investigações, surge no quarto que lhes foi designado, na área de serviços, um pequeno objeto circular que flutua e gira, um anel aparentemente inofensivo mas que vai provar ser uma ameaça cósmica que pode causar não apenas a destruição da espaçonave, mas de todo o universo.
"Mecanismos precários" pode ser descrito como um poema-catástrofe ao colocar, frente a frente, dois gigantes de metal em luta furiosa e demolidora. Contudo, pilotando os ferozes titãs, estão um homem e uma mulher discutindo a sua relação.
“O índio do abismo sou eu” conta a história de uma mulher que, sofrendo de uma doença terminal, é congelada até que a cura seja descoberta. Quando volta à consciência, muitos anos no futuro, é sequestrada por um grupo de ativistas que pretende retirar dela todos os órgãos para suprir transplantes em pessoas carentes. A narrativa salta continuamente entre o tempo objetivo natural e um tempo subjetivo virtual, que acontece apenas na mente da protagonista. O conto foi anteriormente visto na antologia Geração sub-zero (Record, 2012).
"Coisas que a gente não vê todo dia" é sobre uma estudante dotada de poderes paranormais que não aceita, pois acredita na ciência. Contudo, os poderes começam a se manifestar espontaneamente, causando constrangimento à menina que já é bastante tímida.
A bruxaria continua, em tom de fábula, em "Humana, demasiado humana", com uma menina que, apaixonada pela ciência e pela natureza, sente-se deslocada em uma família de bruxos e bruxas com a qual vive numa casa no meio da floresta. Um dia, aparecem três artistas-bruxos à caminho de um festival e ali fazem uma das incríveis apresentações musicais que os fizeram famosos. O problema é que a menina sabe que cada vez que o poder de um bruxo é usado, uma estrela se apaga o céu. Por causa disso, ela irá finalmente descobrir o seu real papel no universo. Um conto incomum, divertido e delicado, que lembra algumas das melhores histórias de Ray Bradbury em O país de outubro.
"Distrito Federal" evoca elementos da ficção científica, fantasia e horror para contar a história de uma jovem moradora das ruas de Cobra Norato que terá de enfrentar uma espécie de apocalipse zumbi na cidade quando os personagens do popular jogo online Distrito Federal, no qual os usuários assumem papéis de políticos, começam a se manifestar fora do jogo. E o horror não vem apenas do fato de ter que encarar perigosos deputados e senadores, mas também uma legião de criaturas mitológicas que se incorporaram ao jogo. É o conto mais nonsense da coletânea, com um fino humor negro muito raro na ficção fantástica.
"Olhos de gato" é mais um dos textos não-inéditos da coletânea, visto primeiro na antologia Portal Fahrenheit. Conta a história de uma jovem cadete do exército das mulheres que, há anos, luta contra os homens. Depois de passar por um rigoroso treinamento doutrinário, ela está prestes a graduar-se e, para isso, em uma macabra cerimônia pública, terá de arrancar os olhos de seu gato de estimação. Contudo, desta vez o evento terá um detalhe imprevisto que pode acabar com a guerra definitivamente.
"Galáxia" é uma espécie de poema em prosa, com vários episódios de uma realidade na qual os homens convivem com inteligências artificiais e, repentinamente, experimenta uma queda catastrófica da rede de dados. Isso faz pessoas reais e digitais confrontarem a mutante e imprevisível natureza do universo e faz pensar se este pós-humano imerso no ciberespaço ainda somos nós.
Fechando a coletânea temos "Primeiro de Abril: Corpus Christi", texto já visto nas antologias Portal 2001 e Cidades indizíveis (2011, Llyr). Conta o drama de uma cidade futurista controlada por uma inteligência artificial, que entrou em uma grave convulsão tecnológica. Evacuada de seus habitantes humanos, a megalópole está prestes a ser bombardeada por um míssil nucelar. A ação é caótica e intensa, misturando violência, ciborgues e máquinas inteligentes em um contexto no qual o estilo e as imagens falam mais alto que a história. Trata-se de uma das peças literárias mais expressivas da ficção científica brasileira, uma experiência sensorial surpreendente que transcende as dimensões do conto e desafia o resenhista. Melhor ser experimentado diretamente.
Por motivos autorais, Máquina Macunaíma foi publicado em tiragem muito limitada distribuída diretamente pelo autor, não sendo possível encontrá-lo nos pontos de venda convencionais. Portanto, se acaso conseguir encontrá-lo por aí, não deixe escapar. Trata-se de um dos melhores livros da ficção fantástica brasileira recente.
— Cesar Silva
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