Cumpro agora a promessa que fiz à escritora Simone Saueressig, resenhando aqui o seu novo livro, O Nalladigua, primeiro volume da série Os sóis da América, ousada proposta autoral desta escritora gaúcha que depois de uma vida dedicada a construir uma fantasia familiarizada com a cultura regional brasileira, sobe de nível e investe numa geografia mais abrangente, que pretende – e não duvido que cumprirá – assenhorar-se do continente, numa aventura pela mitologia de toda a América, da Terra do Fogo ao Alasca.
Lançado em abril, durante a 2ª Odisseia de Literatura Fantástica em Porto Alegre, O Nalladigua é uma publicação da própria autora, que decidiu não esperar pela disposição de uma editora estabelecida, embora seja uma escritora experiente e tenha publicado muitos livros profissionalmente, tais como A noite da grande magia branca (1988, Kuarup), O palácio de Ifê (1989, L&PM), A máquina fantabulástica (1997, Scipione), A estrela de Iemanjá (2009, Cortez), e o premiado aurum Domini: O ouro das missões (2010, Artes e Ofícios), entre outros.
O Nalladigua conta a história de Pelume, jovem da tribo d'Os do Fogo, que habita a Caverna Mais Alta do Mundo, numa ilha em algum lugar do círculo polar antártico, terra onde os dias e as noites duram seis meses cada. A vida d'Os do Fogo é dura mas feliz, um cotidiano limitado e familiar que parece estar sob total controle. Mas, uma noite, a vida do Homem Mais Que Velho, o contador de histórias da tribo que vivia há mais tempo que qualquer outro homem sobre o mundo, finalmente chega ao fim. E a aldeia entra em crise, pois eram as histórias do Homem Mais Que Velho que regulavam as atividades da tribo. Sem a sabedoria dele, ninguém sabe quando é hora de fazer o quê. Além do mais, Pelume teme que o dia nunca mais volte, já que o Homem Mais Que Velho era o único que sabia contar a História Para Chamar o Sol. Apavorado com a ideia de nunca mais ver a luz do Sol, Pelume decide sair da ilha e procurar pela História Para Chamar o Sol no longínquo e mítico norte. Ele pretende remar seu barquinho com um galho seco que encontrou na praia, e chegar ao lugar de onde vêm as histórias que o Homem Mais Que Velho contava. Porém, mal havia saído da caverna, uma tempestade fortíssima o derruba do alto de um penhasco e Pelume cai nas costas de uma ave gigante, que vem a ser Furufuhué, o Vento. Penalizada com a história do menino, a ave decide levá-lo até às estepes da Terra do Fogo, às portas da Elelín, a Cidade Errante. Lá, Pelume reencontra os dias e as noites que, naquelas regiões estranhas, não demoram tanto quando em sua terra natal. Ele é bem recebido pelos habitantes de Elelín e logo vai perguntando sobre a História Para Chamar o Sol, mas ninguém parece conhecê-la. Ele é então encaminhado para a casa da Velha das Palavras, a anciã que guarda a sabedoria da cidade. Com ela, Pelume descobre que o seu remo, o galho seco que carrega desde o início da jornada, é na verdade um pedaço da Nalladigua, uma árvore muito antiga e poderosa, embora ela nada mais saiba a respeito. A Velha das Palavras conhece, de fato, algumas histórias sobre o Sol, mas nenhuma delas é a história que Pelume busca, e ele terá de continuar sua jornada para o norte, onde talvez alguém a conheça. Agora acompanhado de um camahueto – uma espécie de unicórnio – e da despachada menina Misqui, Pelume avança pelos pampas para encontrar a História Para Chamar o Sol. Ao longo de sua jornada rumo ao Velho Norte, Pelume coleciona lendas sobre a origem do Sol e faz amigos valorosos, mas também tem de enfrentar inimigos poderosos, como monstros antropófagos e um perigoso feiticeiro que pretende roubar o chifre encantando do camahueto.
A história de Pelume segue uma tradição na fantasia, que é a narrativa de jornada, história sobre uma longa e atribulada viagem ao longo da qual o protagonista reúne amuletos mágicos, faz amigos e descobre a si mesmo e ao seu destino. O que diferencia esta histórias de tantas outras que seguem o mesmo formato é justamente o fato da autora ter instalado a narrativa nas paisagens de uma América mítica, fazendo uso mais ou menos livre das muitas lendas dos povos que habitaram o continente. Volta e meia surgem cenários familiares ao leitores. Neste primeiro volume, acompanhamos Pelume pelos pampas argentinos, passando pela foz do Prata até às Cataratas do Iguaçu, e encontramos histórias, seres e personagens mitológicos que povoam a imaginação dos povos americanos.
A América de Pelume parece ser pré-colombiana, contudo, algumas pistas levam a pensar que talvez não seja de um tempo tão recuado assim. Por exemplo, a imagem emprestada por Simone ao Anhangá é a de um selvagem garanhão branco. Sabemos que os cavalos só chegaram à América com Cortez, no século 16, e devem ter demorado ainda mais para se tornarem familiares aos povos da região sul do continente. Guaranis trajados de bombacha e tomando chimarrão também remetem a um tempo mais recente, mas vamos ter que aguardar a sequência da história para confirmar essa impressão.
De qualquer forma, O Nalladigua é uma leitura prazerosa e repleta de histórias surpreendentes, mesmo para nós, sul-americanos. As imagens descritas por Simone são poderosas e inspiradoras, e só posso imaginar o quanto elas impressionariam os leitores europeus ou norte-americanos, menos familiarizados com as lendas e cenários destas exóticas latitudes.
O Nalladigua tem ilustrações em preto e branco da estreante Fabiana Girotto Boff, que dão ao volume um aspecto infanto-juvenil, o que não é demérito algum. Os desenhos ainda carecem de segurança, mas acompanham bem a história e contribuem para torná-la mais acessível aos leitores jovens. Outro colaborador foi o revisor Saint-Clair Stocler, escritor identificado com a Terceira Onda da ficção fantástica brasileira, falecido em abril último.
Para encomendar este e outros livros de Simone Saueressig, visite o saite da autora, Porteira da Fantasia.
— Cesar Silva
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