Há muitos livros publicados para autores novos com conselhos e receitas de como escrever bem. Alguns são técnicos e observam aspectos estruturais do enredo e da narrativa, outros investem na gramática e na sintaxe, e outros ainda ensinam como se preparar um texto para agradar os leitores ou ser aceito mais facilmente pelas editoras. Alguns são realmente úteis, outros são pretensiosos e pedantes, mas isso ocorre com todo o tipo de literatura.
Nada disso vai ser encontrado em O zen e a arte da escrita, seleta de ensaios do importante autor norte americano Ray Bradbury, escritos entre 1965 e 1985, alguns deles publicados como introduções ou prefácios. Apesar do distanciamento temporal entre os textos, o conceito que os alinhava é tão sólido e coerente que dá a impressão de terem sido escritos juntos, como parte de um mesmo trabalho.
O livro foi publicado no Brasil pela poderosa editora Leya, fundada em Portugal em 2008 e recentemente instalada no país. É tradução de Zen in the art of writing (1990) e, sendo um Bradbury, era de se esperar uma abordagem no mínimo surpreendente. A começar pelo título que o autor declara, no próprio livro, ter adotado apenas para atrair a atenção dos leitores, ainda que lá no fundo, suas propostas tenham de fato algo de zen.
Onze ensaios compõe o livro: "A alegria da escrita", "Corra, pare, ou a coisa no topo da escada, ou novos fantasmas de mentes antigas", "Como manter e alimentar a Musa", "Bêbado e no comando de uma bicicleta", "Investindo moedas: Fahrenheit 451", "Apenas este lado de Bizâncio: O vinho da alegria", "Sobre os ombros de gigantes", "Crepúsculo nos museus de robô: o renascimento da imaginação", "A mente secreta", "O zen e arte da escrita" e "Sobre criatividade", este último um conjunto de sete poemas sobre as características da personalidade criativa valorizadas pelo autor.
Bradbury não é um teórico convencional. Ele parte do princípio que o verdadeiro escritor não é aquele que escreve para viver, mas o que vive para escrever, como algo vital, necessário, terapêutico até. Por isso usa suas experiências pessoais, principalmente seus fracassos, para demonstrar que vale a pena ser autêntico e escrever com o coração. E isso é algo que não dá para ensinar como fazer: é um caminho solitário e doloroso. Uma frase deste mestre da fantasia resume sua ideologia criativa: "Toda manhã, pulo da cama e piso num campo minado. O campo minado sou eu. Depois da explosão, passo o resto do dia juntando os pedaços. Agora é a sua vez. Pule!"
Difícil de entender? Talvez conhecer um pouco da carreira de Bradbury ajude. A propósito, o livro é quase uma autobiografia, pois R.B., como ele mesmo às vezes se refere no livro, toma a sua vida como parâmetro para explicar e ilustrar seu método criativo.
Nascido em 1920 em Waukegan, Illinois, estado do meio-oeste americano, Ray Douglas Bradbury tinha tudo para ser um legítimo redneck. O que alterou sua caminhada foram as histórias em quadrinhos de Buck Rogers que, quando criança, ele colecionava recortando cuidadosamente dos jornais. Também era leitor ávido dos livros de Júlio Verne e H. G. Wells, das novelas de Edgar Rice Burrougs, Clark Ashton Smith e H. Ride Haggard, e era fascinado com as maravilhas de seu mundo, especialmente parques de diversão itinerantes, circos, mágicos, trens, dinossauros e uma pletora de coisas simples que não era importante para mais ninguém.
Aos oito anos de idade, uma experiência traumática iria determinar a trajetória de sua vida. Pressionado pelos colegas de escola que exigiam dele um comportamento mais "normal", o pequeno Ray rasgou toda a sua coleção de quadrinhos. Mas isso só serviu para que ficasse perdido num mundo que ele não compreendia e entendeu ali que o seu destino não era ter uma vida "normal". Voltou avidamente à sua coleção e decidiu que seria um escritor.
Nos ensaios presentes nesta coletânea, Bradbury conta todos os detalhes dessa história. Ele chegou a publicação de seu primeiro conto em 1941, na revista Super Science Stories, embora tivesse publicado antes em um fanzine editado por ele mesmo em 1938, o Futuria Fantasia. Também conta como sofreu para entender o que significava escrever como Ray Bradbury, já que antes dele ninguém escrevia assim. A princípio, ele seguiu os manuais, mantendo uma produção diária e enviando seus contos para todas as revistas que conhecia, mas com a consciência de que seus textos não eram bons. Mesmo quando escreveu seu primeiro clássico, um conto chamado "The lake", não sabia por quê havia obtido sucesso. Somente anos depois ele iria descobrir e essa busca é que torna O zen e a arte da escrita uma leitura emocionante.
Bradbury tornou-se um dos maiores escritores americanos, com uma produção de qualidade reconhecida pelo mainstream, apesar de instalada no que se chama de ficção de gênero que, de forma geral, é desprezada pela crítica.
Entre seus grandes livros está o romance Fahrenheit 451 (1953), alegoria sobre a censura que conta a história de um homem apaixonado pelos livros cujo trabalho é justamente destruí-los. Levado ao cinema em 1966 pelo importante cineasta francês François Truffaut, tornou Bradbury uma personalidade conhecida no mundo inteiro.
Outros livros importantes de Bradbury são Martian chronicles (1950), Somethig wicked this way comes (1952) e Dandelion wine (1957), além das antologias The golden apples of the Sun (1953), The illustrated man (1951) e The october country (1955). Vários de seus contos estão entre os mais significativos da literatura mundial, devido a sua poética incomparável.
Suas histórias foram adaptadas para inúmeras outras mídias, principalmente o teatro, o cinema e a televisão. A melhor versão para os quadrinhos aconteceu nos anos 1950 pela lendária editora EC Comics de William Gaynes. Al Feldstein adaptou vários de seus contos, que foram ilustrados por grandes mestres como Frank Frazetta e Wallace Wood. Algumas dessas HQs foram publicadas no Brasil no início dos anos 1990 pela editora L&PM nos álbuns O papa-defuntos e O pequeno assassino.
O primeiro de seus livros aqui publicados foi O país de outubro, traduzido em dois volumes pela Editora GRD em 1963 e 1966, antologia que reúne alguns de seus contos mais destacados. Praticamente toda a sua obra foi traduzida no Brasil, sempre ficando em catálogo.
Bradbury compõe a trindade dos mais bem sucedidos escritores de ficção científica na opinião dos brasileiros. Ao lado de Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, forma o "ABC" do gênero, como é chamado pelos seus inúmeros leitores. Contudo, R.B. é um estranho no ninho, pois não se conforma com as orientações impostas pelo mercado. Sua ficção científica, por exemplo, não é científica em quase nada, uma vez que lhe importa muito mais as pessoas do que a ciência. Bradbury também é mais versátil que seus colegas de gênero, enveredando com igual desenvoltura por terrenos tão pantanosos como o terror, a fantasia, o mistério e até o realismo, sem esquecer da poesia em prosa e verso.
O zen e a arte da escrita, mais que um manual para escritores iniciantes, é um manual para a vida. A criatividade bradburiana pode servir a todo mundo, para todo tipo de artista ou profissional. Não seria de estranhar caso se tornasse o livro de cabeceira dos executivos. E como seria bom para o mundo se isso realmente acontecesse.
— Cesar Silva
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