Que o Brasil é um país exótico não há nenhuma dúvida, o mundo sabe disso. Além das inúmeras atrações naturais, acontecem aqui espetáculos sem paralelo, como o carnaval do Rio de Janeiro e o Festival de Parintins, que atraem milhões de turistas. Mesmo sendo um país de terceiro mundo com boa parte de seu povo ainda vivendo a margem da sociedade, o Brasil domina tecnologias de ponta em diversos segmentos e tem uma das maiores concentrações de aparelhos celulares do mundo.
Esse tipo de contradição também de manifesta em outros segmentos. Nos quadrinhos, por exemplo, temos artistas bem sucedidos, premiados e famosos do exterior, que não conseguem publicar aqui. E, apesar de termos um grande mercado que consome ávidamente quadrinhos de origem americana, italiana e japonesa, praticamente inexistem produções nacionais nas bancas para além das onipresentes edições de Maurício de Sousa. Na literatura fantástica ocorre algo similar, com abundância de material traduzido nas livrarias que praticamente não oferecem nenhum título de autor nacional, geralmente relegados às edição alternativas e por demanda.
Portanto, não é de se estranhar que ninguém tenha comentado o surpreendente V.I.S.H.N.U., álbum de quadrinhos de ficção científica de autoria de Eric Acher, Ronaldo Bressane e Fabio Cobiaco, publicado em 2012 pela editora Companhia das Letras em seu selo Quadrinhos na Cia.
Trata-se de uma obra de fôlego, como poucas que o gênero já recebeu no País. O livro tem nada menos que 224 páginas no incomum formato de 29x29 cm, com narração autoral e ilustrações ousadas e perturbadoras. Conta a história de dois homens poderosos, ligados a criação de uma inteligência artificial ilegal – chamada de Vishnu. Eles tentam salvar suas carreiras sem sacrificar a criatura que, apesar de estranha e misteriosa, aparenta ter boas intenções para com a humanidade. Mas nem mesmo eles sabem se podem realmente confiar nela. Isso porque, algum tempo antes, o mundo já havia sido assolado até quase a extinção por uma enlouquecida inteligência artificial global e, desde então, esse tipo de pesquisa estava proibido pelo governo mundial. Mesmo assim, esta sociedade futura continua dependente da tecnologia digital em computadores, robôs e androides, que são combatidos por ativistas neoluditas que, apoiados em táticas de guerrilha, tentam convencer governos e população a retornarem a modelos sociais de baixa tecnologia.
Nesse cenário, os dois cientistas são envolvidos por espionagem industrial, intrigas políticas e a iminência de uma guerra mundial, enquanto negociam com Vishnu uma alternativa para o aparentemente inevitável nó que se configura no futuro da humanidade.
V.I.S.H.N.U. tem diversos méritos. A narrativa, argumento do estreante Eric Acher roteirizado pelo experiente escritor Ronaldo Bressane, trafega entre o cyberpunk e o New Weird, uma interessante novidade nos quadrinhos nacionais de fc, geralmente mais conservadores na abordagem. Também ousa no estilo gráfico, com os desenhos de Fabio Cobiaco, em preto e branco de um estilo cambiante que, em muitos momentos, remete a Philippe Druillet e Enki Bilal. Apesar de constante mutabilidade, Cobiaco não deixa que o leitor se perca entre os personagens, sempre claramente caracterizados. A ilustração da capa, única pintura em cores de todo o volume, revela o alto grau de experimentalismo deste artista natural de São Vicente que, desde 1980, publica ilustrações e histórias em diversos jornais e revistas.
A leitura é ágil e não enfada, mas não é dependente da ação, o que pode desencorajar leitores menos experientes. Toda grande obra sempre cobra algum preço, e V.I.S.H.N.U., sem dúvida, é uma grande obra que não pode ser esquecida nos compêndios da ficção científica brasileira.
— Cesar Silva
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