Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, cidade do Rio de Janeiro. Mulato, pobre, gago e epilético, ninguém naquela sociedade ainda escravocrata poderia imaginar que atingiria tal significado na cultura brasileira ao ponto de, quando de sua morte, ser enterrado com cerimônias de chefe de estado.
A ficção de Machado de Assis é brilhante em sua capacidade de transmitir os contornos da sociedade brasileira do final do século XIX, evidenciando as suas contradições de uma forma aguda e, ao mesmo tempo, acessível. Seu texto é geralmente irônico e formalmente sofisticado, porém enxuto e econômico. Em seus contos, Machado é mais identificado com a escola romântica, o que o aproxima dos temas fantásticos.
Na coletânea Papéis avulsos (1882), a novela "O alienista" trabalha muito bem os conceitos que a ficção científica viria a se ocupar mais tarde, ironizando amplamente o pensamento científico frente à contraditória estrutura sócio-política, um ótimo exemplo de soft-fiction new-wave, antecipada em oitenta anos.
Nessa novela, Dr. Simão Bacamarte é um figurão na corte, respeitado pelo rei e seus súditos. Médico e pesquisador científico de alta patente, poderia ter sido o que bem quisesse com o beneplácito real, mas sua curiosidade científica o fez ir à cidade de Itaguaí, onde usou de sua influência para instalar uma clínica psiquiátrica, a primeira da cidade, num prédio grande e vistoso especialmente construído para tal fim. Pretendia o sábio Dr. Bacamarte sondar os segredos da mente humana através da observação minuciosa dos alienados e dementes de Itaguaí. A inquietação que os loucos causavam facilitou que os poderosos da cidade apoiassem a iniciativa do sábio que foi amplamente festejado, e a ele cederam plenos poderes no que se referia ao diagnóstico e tratamento dos dementes.
Recolhidos os primeiros desvirtuados mentais, começou Bacamarte a estabelecer, com métodos estritamente científicos, as muitas formas de loucura que acometiam os homens de Itaguaí, classificando-as por forma e relevância. Logo, Bacamarte percebeu que mesmo as pessoas bem socializadas podiam apresentar sintomas esquizofrênicos e, ao primeiro sinal, recolhia também esses pacientes em uma das celas de sua clínica, para estudos mais detalhados. Quando começou a deter personalidades importantes da cidade, as autoridades reagiram. Porém, a autoridade científica de Bacamarte era tamanha, que eles nada podiam fazer. A sociedade como um todo indignou-se contra a clínica e promoveu uma verdadeira revolução, aos gritos de "Morte a Simão Bacamarte". O levante foi a princípio combatido pelas autoridades constituídas, mas quando a polícia bandeou-se para o lado dos revoltosos, o governo foi dissolvido e, em seu lugar, instalado um governo revolucionário. Porém, o discurso anti-Bacamarte não resistiu sequer ao primeiro ato do novo governo que, traindo suas próprias convicções, alinhou-se ao cientista garantindo-lhe a continuidade do trabalho. Bacamarte avaliou isso como algum tipo de descontrole emocional patológico e tomou as devidas providências, recolhendo vários dos rebeldes para uma melhor avaliação do seu quadro clínico. Outras tentativas de revolução pipocaram, mas não progrediram, e o governo legal enfim retomou o poder.
A volúpia carcereira de Bacamarte não esmoreceu, ao contrário. Quando o sábio notou que três quartos da população de Itaguaí estavam detidos no seu manicômio, iluminou-lhe na mente um novo conceito: se o normal era ser louco, os verdadeiros doentes eram os que não apresentavam qualquer sintoma. Libertou todos os detidos e passou a observar os demais. Quando diagnosticava alguém como absolutamente equilibrado, detinha-o imediatamente, submetendo-o a tratamentos adequados a fim de "normalizá-lo" para o bom convívio social.
Depois de mais algum tempo, o sábio finalmente concluiu que não havia mais nenhum mentecapto em Itaguaí, e que única deformidade digna de estudos só poderia estar naquele indivíduo que fosse absoluta e perfeitamente equilibrado, exemplar do qual Simão Bacamarte só conhecia um espécime: ele mesmo. Assim, o sábio recolhe-se solitário em seu próprio manicômio, na intenção de estudar a si mesmo até descobrir uma cura adequada.
Machado estabelece em sua novela uma discussão sobre a relevância da ciência na vida do cidadão comum, a partir da iniciativa de um sábio que, da ciência, tudo sabe, mas que não tem absolutamente nenhuma empatia pela vida humana, que classifica com a mesma impessoalidade que dedicaria a um objeto qualquer. A Bacamarte importa apenas a pesquisa, pois ele tem completa convicção da relevância científica, acima de todas as coisas. Logo de saída, Machado nos conta, por exemplo, como Bacamarte selecionou sua própria esposa, considerando principalmente as qualidades físicas adequadas a uma boa procriação. Apesar da lógica perfeita, Bacamarte morreu sem filhos. Deste modo, vemos em "O alienista" a descrença de Machado na ciência e nos cientistas em especial.
Da mesma forma, o autor não economiza na crítica ao sistema governo. Os políticos eleitos comportam-se de forma fisiológica, apoiando ou opondo-se conforme as conveniências de momento. Saem de cena ao primeiro sinal de problemas e aqueles que lhe tomam o lugar, antes muito determinados, mudam imediatamente o discurso, continuando no mesmo modelo fisiológico de seus antecessores.
Muito espertamente, Machado defendeu-se de possíveis críticas na medida em que estabeleceu que toda a história do manicômio de Bacamarte em Itaguaí aconteceu muito tempo antes, possivelmente no período colonial. Mas está claro que não se trata de um épico: o autor refere-se de fato a gente de seu próprio tempo, que não deixa de ser válido ainda nos nosso dias.
Há hoje uma confiança maior nas boas intenções da ciência devido à presença massiva da tecnologia na vida das pessoas, especialmente nas grandes cidades, mas ainda é escopo importante da ficção científica antecipar os descaminhos de decisões tecnocratas e cientificistas. Neste aspecto, Machado estava sintonizado com o futuro do gênero, enquanto em seu tempo a ficção científica, ainda sem esse nome, era palco de fantasias e aventuras científicas positivistas, e assim continuaria por muito tempo.
Seria um exagero tratar Machado de Assis como um autor de ficção científica, isso ele definitivamente não foi. Seus textos eram muito variados e atendiam públicos diferentes em diversas categorias editoriais. Portanto, não é de se admirar que, em alguns momentos, tenha enviezado por esse gênero ainda nacituro, por simples sorte — ou azar, como devem pensar muitos. Contudo, não há como negar que "O alienista", uma de suas novelas mais conhecidas e características, tenha diversos pontos de contato com a ficção científica. Com certeza, um material que merece ser revisitado pela crítica acadêmica.
— Cesar Silva
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