quinta-feira, 16 de abril de 2015

Dieselpunk: Arquivos secretos de uma bela época

Dieselpunk: Arquivos secretos de uma bela época, Gerson Lodi-Ribeiro, org. 384 páginas. Capa: Erick Sama. Editora Draco, São Paulo, 2011.

O hábito de montar seletas de contos e novelas parece mesmo ser um dos grandes prazeres do fãs de fc&f no Brasil. E, curiosamente, temos um critério próprio que permite que essas coletâneas sejam possíveis num mercado que praticamente não publica ficção curta de outra maneira.
De modo geral, antologias são montadas com textos já experimentados em outros veículos, principalmente revistas periódicas. É comum nos Estados Unidos, por exemplo, seletas do tipo “O melhor da nova fc” ou “O melhor do novo horror”, reunindo os textos de autores que estrearam nos últimos meses. No Brasil, isso é obviamente impossível, pois não há nenhum periódico a publicar ficção de espécie alguma. Os contistas não têm onde se exercitar – nem mesmo os fanzines existem mais – e a internet mostrou não ser a salvação da lavoura nesse quesito.
Dessa forma, a dinâmica aqui é abrir editais para que os autores submetam seus textos, inéditos ou não, ao crivo de um ou mais organizadores que vão escolher quais serão os textos adequados ao projeto. Debates quentes rolam cotidianamente nas redes sociais quando um e outro projeto de “antologia” se mostra um pouco mais mercantilista. Contudo, foi essa dinâmica que favoreceu o florescimento de uma indústria de antologias nacionais nos últimos três anos que, tal como os cogumelos, surgem da noite para o dia. Essas seletas são o que tem sustentado a ficção fantástica nacional neste período, mas não permitem que antologias reunindo “os melhores do ano”, por exemplo, sejam realizadas, uma vez que os textos ficam retidos por contrato com as editoras. A exceção são as antologias montadas a partir de material antigo, como aquelas organizadas por Braulio Tavares para a editora Casa da Palavra, e do Roberto de Sousa Causo para a Devir Livraria, algumas delas comentadas neste Almanaque.
Não é o caso de Dieselpunk: Arquivos confidenciais de uma bela época, organizada por Gerson Lodi-Ribeiro para a Editora Draco. Seguindo o molde de uma antologia anterior, Vaporpunk: Relatos steampunk publicados por ordem de Suas Majestades, lançada em 2010 pela mesma editora, Dieselpunk também se propõe ser uma seleção de textos de história alternativa. Se em Vaporpunk a tecnologia dominante deveria ser o motor a vapor, em Dieselpunk supõe-se que seja o motor a óleo diesel que vai mover as histórias. Como a tecnologia do diesel ainda está por aí, podemos imaginar que qualquer coisa moderna pode estar enquadrada na premissa. Pelo menos, sempre vejo nos postos de combustível, ao lado das bombas de gasolina, álcool e gás, uma de óleo diesel. Mas a ideia talvez não fosse bem essa, já que a maior parte dos autores selecionados trabalharam temas restritos às primeiras décadas do século XX.*
O texto que abre a seleção é “Fúria do Escorpião Azul”, de Carlos Orsi, uma aventura de vingador mascarado ambientada nos anos 1930 de um Brasil no qual os princípios da União Socialista Soviética tornaram-se a política predominante. É claro que o Escorpião Azul vai enfrentar os comunistas.
“O grande G” é uma fábula tecnológica escrita por Tibor Moricz, que contrapõe duas metrópoles — uma movida a carvão e outra a diesel — que lutam pelo predomínio econômico. No lado do diesel, um feroz empresário faz uso de todos os instrumentos de que dispõe não só para manter sua cidade na liderança, mas também para satisfazer suas taras e manter o poder em suas próprias mãos. O texto é algo libertino na abordagem, mas de fundo extremamente moralista: “não façam isso em casa, crianças, ou vocês vão se dar mal.”
“O dia em que Virgulino cortou o rabo da cobra sem fim com o choço excomungado”, de Octávio Aragão, explora o confronto entre o bando de Lampião e a Coluna Prestes, que historicamente nunca aconteceu. Mas há mais na noveleta além do encontro destes dois mitos da história brasileira, entre os quais se incluem armas de tecnologias muito avançadas, pós-humanismo, viagens no tempo e um pouco de ufologia, Ou não. Trata-se de um bom trabalho, com muita ação e um final feliz.
“Impávido Colosso”, de Hugo Vera, é um épico ingênuo inspirado nos animes de robôs gigantes para contar como um Brasil monarquista, comandado pelo sucessor de D. Pedro II, enfrenta um infame ataque da Argentina à região sul do país. Enquanto o agressor usa um exército de autômatos mecânicos cedidos pelo Império Britânico, o Brasil defende-se com o experimental Impávido Colosso, um robô gigante projetado pelo engenheiro Rudolf Diesel e tripulado por uma bombshell paraguaia que é uma declarada homenagem à Larissa Riquelme, musa da Copa do Mundo de 2010 na África do Sul, uma entre muitas citações que acabam chamando mais a atenção do leitor do que a história em si.
O único conto não inédito da antologia é “Pais da aviação”, de autoria do próprio organizador, que já havia sido visto na antologia Vinte voltas ao redor do Sol, publicada pelo CLFC em 2005. Numa França em que Jules Verne é o presidente da República, Santos Dumont e os Irmãos Wright disputam a primazia de serem os primeiros homens a alçar voo num aparelho mais pesado que o ar.
O jornalista Antonio Luiz M. C. Costa participa com “Ao perdedor, as baratas”, um suspense político sobre um atentado à vida de um importante candidato a presidência num Brasil subdividido em repúblicas menores, inimigas entre si. A barata do título faz uma pontinha no final da história.
“Auto de extermínio”, do jovem fluminense Cirilo Lemos, é de longe o melhor texto da antologia e, arrisco dizer, um dos melhores contos da fc brasileira em todos os tempos. Bem escrito, com diálogos precisos, cenas empolgantes e personagens muito bem estruturados, a noveleta apresenta recursos mais que suficientes para ser expandida num romance. Até as citações são de uma engenhosidade inspirada e não perturbam a credibilidade da história, que gira em torno de Jerônimo Trovão, assassino de aluguel que se mete numa confusão maior do que pode administrar. A trama de várias frentes revela aos poucos a estrutura do rico universo alternativo que Lemos criou.
Outra noveleta ótima é “Cobra de Fogo”, do experiente roteirista Sidemar de Castro, um dos raros exemplos de ficção desportiva na fc brasileira. É o texto que melhor responde às propostas da antologia, com uma corrida mundial de super locomotivas, sendo M’Boitata, a tal Cobra de Fogo, a representante do Brasil nessa disputa que tem um ligeiro fundo político. Ecos de Esses homens maravilhosos e suas máquinas voadoras, filme de 1965 dirigido por Ken Annakin, reverberam em cada página da noveleta, que tem um sabor Golden Age bem ao gosto do leitor brasileiro.
O texto que fecha o volume é “Só a morte te resgata”, do português Jorge Candeias, único autor estrangeiro da antologia. A primeira metade da história é militar, com uma batalha aérea entre caças e dirigíveis, que depois é completada por um thriller de espionagem, no qual um sobrevivente da batalha narrada anteriormente tenta retornar para casa. Trata-se de uma história dramática, e uma breve notinha final acrescenta-lhe uma profundidade pessoal emocionante.
Graças à experiência e representatividade dos autores selecionados, Dieselpunk resultou numa antologia de qualidade média superior às seletas nacionais publicadas recentemente. Um caminho adequado caso se pretenda construir outras seleções de boa qualidade dentro das limitações do mercado brasileiro.
— Cesar Silva
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* Assim como a antologia anterior, esta reúne histórias de ficção científica recursiva, voltada para o passado.

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