quinta-feira, 9 de abril de 2015

Vinte Voltas ao Redor do Sol: 20 Anos do CLFC

Vinte voltas ao redor do Sol – Uma antologia comemorativa, Alfredo Keppler, organizador, 410 páginas. Clube de Leitores de Ficção Científica, São Paulo, 2005.


Em 2005 o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC) completou 20 anos de fundação. Esta associação de fãs nasceu do desejo de um fã de congregar um grupo que compartilhasse de um prazer e objetivo comum, a ficção científica.
Inicialmente o objetivo de R.C. Nascimento era encontrar mais colecionadores da coleção Argonauta, de Portugal, como fica claro quando lançou o seu livro Quem é quem na ficção científica – Volume 1: A coleção Argonauta (1985). Há dois encartes no fim do volume. O primeiro para apurar quais seriam as dez melhores obras publicadas na coleção e o segundo, uma ficha de inscrição para um clube de ficção científica, justamente o CLFC.
Este grupo de fãs, colecionadores e escritores tornou-se nestas duas últimas décadas a principal organização social do fandom brasileiro de ficção científica. Passou por várias fases, algumas delas muito efervescentes, outras de claro declínio, mas o objetivo aqui não é uma análise sobre a importância do CLFC para a história recente de nossa FC&F.
Isto certamente é um trabalho importante ainda a ser realizado, mas de certa forma, a própria maneira que o clube encontrou para marcar esta efeméride tão significativa já é, por si só, uma contribuição que muito diz o que foi o CLFC em sua trajetória.
Refiro-me, é claro, à antologia de contos e depoimentos, Vinte voltas ao redor do Sol – Uma antologia comemorativa. É um livrão que impressiona por suas mais de 400 páginas, pela produção editorial profissional e principalmente pelo grande número de histórias.
A ilustração de capa é bonita e alusiva ao espírito de ficção científica, razão de ser do clube. Já os textos estão demarcados em duas partes. A primeira contém 10 pequenos depoimentos de sócios sobre o significado da data. A segunda parte é composta de duas dezenas de trabalhos de ficção, desde contos curtos até uma novela.
É comum em edições comemorativas e corporativas uma seção como a de depoimentos. Em outras publicações do próprio CLFC isto já ocorreu, por exemplo, quando o clube comemorou 10 anos e a edição especial de sua publicação oficial, o Somnium, trouxe vários deles. Desta forma, embora compreenda o sentido de sua presença nesta nova obra comemorativa, achei-os totalmente dispensáveis. E até para criar algo novo, diferente em termos de uma edição que se declara como ‘comemorativa’, seria mais interessante se eles estivessem ausentes.
Mas a maior controvérsia desta antologia foi o método de seleção das histórias. Já no prefácio da obra, o presidente do CLFC Alfredo Keppler argumenta que deixou aos critérios dos próprios sócios-autores a escolha de seus trabalhos, pois uma escolha editorial sofreria de um viés de preferência, “muitas vezes mal defendido por um indefinível critério de qualidade” (página VI). Ora, mas para que serve um selecionador, um editor? Esta ausência de atitude por parte do responsável pela organização da obra não o exime dos eventuais problemas e virtudes encontrados. Conforme ficará claro nos comentários sobre os contos publicados neste livro, esta ‘falta de seleção’ foi um dos fatores que mais chamou a atenção na avaliação da qualidade da antologia.
 Comecemos pelo número de trabalhos. São duas dezenas. Certamente é um número alto para qualquer livro deste tipo, o que aumenta a possibilidade da obra ser mais irregular. A intenção declarada publicamente pela Diretoria era que a obra marcasse de forma contundente a atual administração e talvez fosse um símbolo do próprio fim da entidade, tão criticada nos últimos anos, na mesma proporção da baixíssima participação e interesse dos sócios. Mas, felizmente, pelo impacto positivo que o lançamento do livro teve entre os sócios, respira-se aliviado com a anunciada continuidade do CLFC.
Para uma publicação claramente corporativa como esta, optou-se pelo critério óbvio na sequência das histórias: o número do sócio. Assim, quanto mais antigo, primeiro aparece nas páginas do livro.
Assim é que o primeiro conto do livro é Ivan Carlos Regina, “MOMA – Minha organização mundial de animais”. Contado em tom de fábula, não há propriamente uma história no sentido convencional.
O Homem e outros animais depõem sobre suas virtudes, defeitos, belezas e transcendências. Sem dúvida que o texto é belo nas palavras e metáforas, literariamente bem escrito. Mas é também um pouco tedioso, pois se torna um repetitivo e previsível em seus objetivos claros: um sentido espiritual para a busca evolutiva das espécies, sua razão de existir. No fundo, esta própria justificativa já seria questionável, mas é a estrutura da história o que a torna pouco interessante.
O conto a seguir é “Aí vem o Sol”, do carioca José dos Santos Fernandes. Neste caso, a escolha do autor não poderia ter sido mais feliz. O título do conto se refere a uma antologia de ficção científica inspirada no título de canções dos Beatles. A antologia, infelizmente não deu certo, mas o conto veio à luz pela primeira vez no fanzine Megalon n.49, de junho de 1998. E é o melhor conto que ele já escreveu e, para mim, um dos melhores da história de nossa ficção científica. Se tivesse que organizar uma antologia dos ‘melhores’ da FCB, esta história seria selecionada.
O cenário é o Rio de Janeiro sob um rigoroso inverno nuclear. Um pai sobrevive com seu filho dentro de uma caverna no que restou da floresta da Tijuca. O frio é intenso, com forte nevasca e escuridão na maior parte do tempo. Periodicamente ele sai em busca de comida. Mas não ousa contar ao seu filho doente o tipo de alimento que ele traz.
O tema do pós-holocausto nuclear é clássico e a ele se alia a questão polêmica do canibalismo. Temos uma prosa enxuta e fluente, com apenas o essencial para a criação do ambiente narrativo. Mas isso não limita seu conteúdo dramático, no devido limite para não soar exagerado.
Tem um clima de golden age marcante, mas com boa plausibilidade científica, o que só aumenta a emoção e a credibilidade do texto. O desfecho é terrível e revelador, acentuando a condição de uma obra-prima, entre as poucas de nossa ficção científica.
Roberto de Sousa Causo é o autor seguinte, com a novela “O par”. E ela vem bem recomendada. Venceu o prestigioso Prêmio Nascente, de 2001, promovido pela Universidade de São Paulo (USP) para jovens talentos que lá estudam.
Talvez alheios a tão promissora premissa, vários sócios criticaram – de antemão – a publicação da história, pelo fato dela ser muito maior em termos de número de páginas do que as demais. De fato, eu mesmo admito que achei a opção questionável por, supostamente, abrir um espaço excessivo a um autor em comparação com os outros. Nesse sentido, continuo achando que um dos poréns desta antologia é a falta de critérios nela adotada, entre os quais, o do tamanho desequilibrado entre as histórias.  E “O par” é o exemplo mais visualizável. Contudo, ao lê-la me rendi às evidências e a um critério que oblitera qualquer outro: a excelência da história.
É uma nova aventura do autor pelo interior profundo da floresta amazônica – já vista antes na novela Terra verde (2000). Em “O par” a ação se situa na terceira década do nosso século, com uma invasão extraterrestre em plena Amazônia. Tropas brasileiras tentam isolar a área tomada pelos invasores. Mas o combate não se dá diretamente com eles, mas sim com tropas internacionais chanceladas pela Organização das Nações Unidas (ONU). No fundo, estamos diante de um dos maiores temores históricos das Forças Armadas brasileiras: a perda de soberania sobre a Amazônia.
Em meio a este contexto explosivo e controverso, conta-se a história de Feitosa. Um soldado desafortunado que é obrigado a desertar da tropa e se embrenhar na Amazônia dos alienígenas. Causo realiza uma das melhores descrições de ‘floresta profunda’ que já li. Me remete às descrições extremamente verossímeis do interior da selva vietnamita no romance de horror Koko (1988), de Peter Straub.
Em sua luta por sobrevivência, Feitosa desperta com uma mulher, muito parecida com uma antiga namorada que havia morrido. Juntos enfrentam perigos humanos, mistérios da Natureza e o fascínio com a visão das naves extraterrestres. Até descobrirem, finalmente, quem (ou o que) são eles.
Causo narra a aventura com muita fluência e intensidade dramática, além de agilidade e soluções criativas às peripécias pelas quais ‘o par’ têm de enfrentar. O interesse é mantido, mesmo quando é fácil perceber quem era a companheira de Feitosa, assim que ela ‘reapareceu’ subitamente no meio da floresta.
Assim como na já citada Terra verde há uma simbiose temática entre o estranhamento do contato alienígena e das forças da Natureza, com uma crítica sociopolítica importante à situação hipócrita pela qual o Estado brasileiro – e boa parte da sociedade –, encara a chamada ‘questão amazônica’, no contexto das prioridades ambientais e econômicas do país.
Mesmo com esta abordagem pertinente, o que dá realmente liga a esta simbiose é o vigor do elemento humano e individual, em todo este cenário turbulento e transformado. Alguns críticos notaram que esta história retoma – mais uma vez – o tema do soldado em crise de consciência, que seria o próprio alter ego do autor. De fato, não há como escapar desta observação, mas o que é novo nesta história é o violento despojamento de Feitosa, um sujeito socialmente desajustado desde antes de se alistar no Exército e que não hesita em quebrar as regras e matar friamente, quando julga necessário. Do que eu li, a novela “O par” é a melhor história da ficção científica brasileira em 2005.
“Quadros pretéritos de uma vida” é o conto seguinte e marca a presença de Cesar Silva – um dos editores deste Anuário – na antologia. Ele também produziu esta antologia, certamente responsável pela boa impressão geral que o livro teve entre aqueles que o recebeu.
Não é uma história inédita, foi publicada originalmente no Somnium n.48, em 1990. Já se passaram 15 anos, portanto, mas o texto continua sendo uma evidência do ecletismo do autor. Silva faz de tudo um pouco em nossa ficção científica: edita, ilustra, organiza eventos e também escreve – e bem.
A história mostra em flash back cenas pretéritas da vida de um piloto espacial de caça prestes a enfrentar seu destino final. O contexto mostra os terrestres colonizando com sucesso o Sistema Solar, com uma grande empresa dominando as relações políticas e econômicas. Há uma crise quando uma colônia independente se estabelece em Titã, a maior lua de Saturno.
Silva entremeia o cenário político sob o olhar do piloto, quando menino. Este ângulo de observação torna a narrativa mais sensível e foge do lugar-comum, tornando-a interessante de ser lida. E a conclusão não deixa de ter certo viés poético – ainda que trágico –, ressaltando que o autor poderia – e pode – se tornar um nome promissor entre os escritores brasileiros de ficção científica se escrevesse mais ficção. Embora sua opção de ‘abraçar’ a FC&F em diversas atividades também o torne uma das pessoas mais influentes em nosso meio.
O próximo no índice é Braulio Tavares, que se faz presente com o conto “O molusco e o transatlântico”. A trama mostra um brasileiro que possui poderes paranormais de movimentar elétrons. E com esta habilidade ele se torna um dos tripulantes, ao lado de mais seis astronautas, em uma Estação Orbital.
Lá pelas tantas sofrem um acidente e despertam no interior de um local estranho, que depois descobrem ser uma nave alienígena. Todos os astronautas são libertados, menos o brasileiro que, assim, nos conta sua sina, prisioneiro para experiências dos Intrusos. Sim, eles mesmos, os alienígenas já conhecidos de trabalhos anteriores de Tavares, especialmente em uma de suas principais histórias, “Principe das sombras”, presente na sua já clássica coletânea A espinha dorsal da memória (1989).
Narrada em primeira pessoa é um texto de moldes um tanto convencionais, no qual o mais interessante é a percepção de mudança de atitude psicológica por parte do sequestrado. Pouco a pouco ele vai se adaptando, se conformando à uma situação impossível de enfrentar. Não deixa de ser uma parábola da insignificância humana frente aos mistérios da realidade que mal apreendemos, como as de possíveis forças – físicas ou não – que podem estar nos espreitando pelo universo.
Após Braulio Tavares, chega André Carneiro, outro ilustre sócio e personalidade de nossa ficção científica. Mas em “A grande obra” não temos uma história estritamente do gênero; talvez nem mesmo uma história em seu sentido, digamos, convencional.
Menos pelo enredo – que se revela fascinante em sua sutileza em seu final – o texto vale mais pelo estilo seguro e arrojado e ainda mais pelo suspense e intensidade psicológica do personagem que conta a história. No caso é um sujeito que leciona literatura e trabalha numa editora e conhece um pai e uma filha aparentemente simplórios, além de sem origem e atividade definida. Com uma atmosfera que lembra contos policiais e narrado em primeira pessoa, o literato vai mostrando seu envolvimento misterioso, surpreendente e desesperador com Saulo e sua bela filha Roxana, por quem se apaixona.
É uma história que procura trabalhar com a noção de que o fantástico e o improvável tem lugar no mundo e pode estar oculto para todos os que não vêem. Ou não tem como vislumbrar uma ‘grande obra’. Uma história curiosa pelo tema e que agrada por sua prosa saborosa e segura, de um autor maduro e ainda capaz de surpreender. Outro grande momento do livro.
 “Paradoxos méson”, de Miguel Carqueija, é o próximo e nos mostra uma história de viagem no tempo, com o clássico tema do sujeito que volta ao passado e encontra com si mesmo. O autor, mais uma vez, tem uma mulher como protagonista, mas a história tem cores menos coloridas do que de costume em suas aventuras.
No caso, trata do tema do estupro de uma menina que se tornou mulher e volta no tempo para impedir a tragédia. O conto é curto e objetivo quanto aos paradoxos de tal empreitada, mas não acrescenta nada em especial a um subtema já por demais explorado na ficção científica.
A história seguinte é “Pais da aviação”, de Gerson Lodi-Ribeiro. O título faz referência a Santos Dumont. A pretexto de se valer desta homenagem – que não deixa de ser justa – em termos práticos o texto narra aproximadamente 150 anos de domínio político e militar da França sobre a Europa e parte do continente americano. Exceções são a Rússia a leste e os Estados Unidos a oeste, com que os franceses e seus dominados empreendem duras batalhas pela América do Sul e do Norte, na primeira metade do século XX.
Como já deu para notar é uma história alternativa e com premissas steampunks, ou seja, em uma linha histórica alternativa com um inovação tecnológica que muda o desenrolar histórico como o conhecemos. O ponto de divergência inicial seria a vitória francesa na Batalha de Trafalgar, permitindo a invasão das forças de Napoleão ao Reino Unido. O texto procura se apoiar nas modificações históricas ao longo do século XIX e parte do XX, tendo como linha de ação a superioridade tecnológica francesa, especialmente com o advento dos aeroplanos e seu emprego bélico.
Embora a história tenha o seu interesse, transcorre em um ritmo quase documental, com pouca dramaticidade. Assim, o texto segue uma linha, digamos, determinista, o que de certa forma não é um problema desta história em particular, mas uma recorrência comum no subgênero das histórias alternativas.
Em várias histórias alternativas ocorre uma modificação de um fato histórico – geralmente militar ou político – que altera quase tudo o que conhecemos. O problema é que soa como voluntarista e simples, com pouca análise, primeiro de como este ponto de divergência se contraporia à uma estrutura social e histórica já assentada e em segundo lugar, e mais importante: como se daria as transformações sociais em muitos aspectos que poderia advir de tal mudança, que engendraria outras modificações difíceis de apreender, até para um texto ficcional.
Claro que há um bom número de histórias alternativas notáveis por enfrentar as dificuldades acima de forma criativa e convincente, e os clássicos do subgênero são do conhecimento de todos os apreciadores. Contudo, esta ponderação pode ser feita para qualquer história alternativa, especialmente naquelas que partem de grandes modificações, como se elas coubessem dentro de um modelo previamente concebido. Mas é possível fugir desta armadilha, trabalhando de forma mais apurada questões sociais e culturais, sem esquecer do necessário elemento humano, que é o que da vida a uma história, alternativa ou não.
Em resumo, “Pais da aviação” é um texto pequeno para as tantas questões que aborda. Tem o seu mérito como exercício de construção de cenários bélicos alternativos, mas ressente-se do já mencionado elemento humano à trama.
Anna Creuza Zacharias é a próxima autora a publicar na antologia, com a noveleta “Argonáutica”. Ela escolheu um trabalho relativamente antigo, publicado no Somnium n.62, de 1995. E não foi feliz, pois é uma história confusa que, em linhas gerais, traça um paralelo sobre a viagem espacial até um planeta identificado por místicos medievais, com as conseqüências da viagem de Jasão e Medéia, da mitologia grega.
O relato entremeia de maneira irregular trechos da viagem espacial, da saga mitológica grega e do planeta a ser visitado. Tudo isso em um texto truncado, com trechos mal escritos, pontas soltas, qual um roteiro de um filme mal realizado. Se isso não é o bastante, ainda há uma coleção de personagens estereotipados. Além de situações clichê dignas de séries de TV de má qualidade.
Como se vê, uma história com muitos problemas, no qual mesmo sua demonstração de erudição não torna a história menos desequilibrada e incerta quanto aos seus objetivos temáticos, ou seja, sobre o quê, afinal, ela pretende contar. Esta história é o exemplo mais eloquente deste livro de um texto que não deveria ser publicado – ainda mais em um livro. Seria preciso reescrevê-lo, enxugá-lo, melhorá-lo, enfim. E a responsabilidade do organizador é tão grande quanto da autora, que já escreveu contos bons e poderia ter sido poupada deste constrangimento.
Ainda mais se a contrastarmos com a próxima, “Vidinha caseira”, de Martha Argel. Ainda que não seja o melhor conto desta autora é agradável, bem escrito, criativo e com agudo senso de ironia.
É outro conto já conhecido, publicado antes na antologia Lugar de mulher é na cozinha (2000), organizada pela própria autora. Conta a história de uma dona-de-casa que não sai da cozinha, aliás, como tantas que existem por aí. Seu marido reclama – sempre em frente à TV, como tantos por aí também. Ela diz que está muito ocupada. E está mesmo, pois na verdade ela é uma tripulante de uma nave espacial em guerra com uma civilização alienígena hostil e vive entre a missão e sua ‘vidinha caseira’. O texto é conduzido com leveza e bom humor, embora termine, curiosamente, por reforçar o papel subalterno da mulher na sociedade. Pois mesmo com todas as suas conquistas políticas, civis e sociais, a mulher ainda continua a exercer seu papel de ‘dona de casa’, mesmo que não seja – não para todas, ao menos – propriamente uma ‘vidinha caseira’.
O conto seguinte, “Valentim”, de Ataíde Tartari, coincidentemente, tem o mesmo ritmo leve e descompromissado da história anterior. Este resenhador foi parcialmente responsável por “Valentim”, pois o encomendei para a edição especial de fim de milênio, do meu fanzine Megalon n.55, de dezembro de 1999.
Neste trabalho Tartari faz uma dupla homenagem. No estilo, à obra da escritora Helen Fielding, Os diários de Bridget Jones – depois levada às telas de cinema em 2001, com grande interpretação de Renne Zelwegger –, e no enredo a Valentine Michael Smith, o terráqueo criado em Marte, do clássico Um estranho numa Terra estranha (1962), de Robert A. Heinlein. A tentativa é bem sucedida, principalmente porque o autor sabe escrever com facilidade e coloquialidade, intercalando diálogos ágeis e um humor inspirado.
O que já não é o caso do próximo conto, “Aniquilador”, de Carlos Orsi Martinho – aliás, é curioso que neste livro, publicado dois meses depois de Tempos de fúria, ele volta ao seu nome, digamos, original.
Como dizia, este conto não repete o bom nível dos dois últimos. A história é indefinida e curta demais para apreender todos os seus significados existenciais – se for este mesmo o caso. Um sujeito que vive no limite entre um mundo real e virtual, quer morrer porque diz não suportar o “fardo da consciência”. Mas é só isso? Falta um drama mais concreto, um pouco truncado também por um jargão excessivamente técnico, que mais aborrece do que esclarece dentro do contexto da trama.
Já Lúcio Manfredi comparece com “A caçadora”. Um texto com prosa forte em imagens e ambíguo em seus significados. Nesse sentido semelhante ao conto anterior.
O trabalho apresenta uma tentativa estilística interessante, ao entremear a ação concreta, com outro plano de realidade, que o espreita o nosso em busca de uma vítima, no caso um mendigo. Mas ainda que a narrativa procure sair do convencional, o resultado final é um pouco confuso, transmitindo uma sensação de incompletude, de um desfecho abrupto e que não completa o ciclo que a história poderia sugerir. Afinal, a experiência foi real ou imaginária? Manfredi, conscientemente, quis deixar a dúvida no leitor? Não ficou claro.
Tanto Martinho como Manfredi poderiam ter escolhido trabalhos melhores e mais significativos, ao invés destes dois contos pálidos e que não causariam impacto nem nas páginas de um fanzine. Aqui, de novo, a ausência de um editor responde pela queda de qualidade das histórias publicadas.
Na sequência vem “Exercícios de silêncio”, de Finísia Fideli. É uma história publicada originalmente no distante ano de 1983, na antologia Conto paulista e republicada em 1991 no fanzine Megalon, n.21, com direito a ilustração de capa e tudo. No ano seguinte os leitores deste fanzine a elegerem como a melhor história publicada no ano, por meio do Prêmio Tapìrài. Sem medo de exagerar, considero este o melhor trabalho de uma escritora muito boa, uma das melhores histórias da chamada Segunda Onda da FCB.
Trata-se de uma história de ficção científica de moldes tradicionais, com um piloto espacial com problemas com sua nave. Ele é obrigado a pousar em um planeta distante e lá trava contato com a civilização nativa. Seres humanóides, como ele, originários de colonizadores descendentes da Terra.
Sim, você já deve ter lido mais de uma história com um enredo como este. Mas o que diferencia esta noveleta de outras, é a profundidade do contato humano, entre culturas e posturas diante da vida tão diferentes e opostas.
Finisia narra de forma econômica e sensível, sem excessos, numa espécie de convite a uma viagem interior, da qual não apenas o piloto, mas também o leitor é convidado a participar. Para além da alteridade de culturas distintas, o subtexto trabalha a questão de quais valores são importantes em meio a uma sociedade tão competitiva, egoísta e materialista, como a do Ocidente laico.
A dedicatória final ao povo tibetano não deixa dúvida quanto à analogia da história e creio que é até desnecessária, pois a riqueza dos sentimentos transmitida nos deixa claro de onde vem sua inspiração. Mais um grande momento do livro e a lamentar apenas que a autora praticamente tenha desistido de uma carreira das mais promissoras.
Outro que está lutando em torno de uma carreira é o carioca Rogério Amaral de Vasconcellos, muito produtivo nos últimos anos, escrevendo e editando contos e novelas, no universo ficcional Nave profana.
Em Vinte voltas ao redor do Sol, ele nos mostra “Os seres do vácuo”. De saída nota-se que forma e conteúdo estão desequilibrados. Talvez seja possível afirmar que uma atrapalha a outra. O conteúdo é interessante, ainda que sem novidade. A Terra é destruída por uma súbita chuva de meteoritos e uma nave escapa pouco antes com uma tripulação. Após um acidente – mal explicado no texto, por sinal –, que explode a nave, um casal consegue fugir em uma das naves auxiliares e aterrissa em um planeta. Lá descobre que eles não eram mais apenas seres humanos, no sentido biológico do termo, especialmente em termos reprodutivos, mas sim entrecruzados com elementos mecânicos, artificiais. Este fato em si já suscita um novo enredo dentro do primeiro e remete este novo tema, a um drama em torno da continuidade da espécie.
Bem se vê que o conto é ambicioso, trabalha em grandes questões. Isso é interessante em termos de proposta temática, mas para a forma de uma história curta, torna o desafio quase um problema, pois exigiria muita habilidade e harmonia do escritor, um sentido de concisão preciso. No texto em questão isso não ocorre, talvez por falta de experiência do autor, pois a narrativa se mostra confusa. Muitas ideias e conceitos que precisariam ser mais elaborados. A falta confere um incômodo na leitura. Acrescente-se a estes problemas, o estilo distanciado, num tom documental e uma prosa escrita de forma apressada e com escolhas de palavras que destoam do cenário da narrativa. Para resumir, percebe-se que o melhor seria que a história fosse reescrita e talvez aumentada em seu tamanho.
Octavio Aragão vem a seguir com o já conhecido “Lâminas cruzadas”, originalmente vista no Somnium n. 86, de 2003. É uma história situada na segunda metade do século XIX, na frente de batalha da Guerra do Paraguai. O texto narra de forma competente algumas lutas corporais entre um soldado brasileiro, o negro Zuavos, com soldados paraguaios. Até que em uma delas, ferido e em desvantagem, ele é subitamente salvo por um combatente misterioso e fugidio.
O conto é despretencioso, uma homenagem ao escritor Gerson Lodi-Ribeiro – nosso principal autor no subgênero história alternativa e autor da  noveleta clássica A ética da traição (1993), que versa sobre uma vitória paraguaia na guerra vencida pela Tríplice Aliança, em nossa linha temporal. Tanto é que “Lâminas cruzadas” é um conto-homenagem, que se permite, no final, uma surpresa na figura do escritor Júlio Verne – aliás, também homenageado na história “Pais da aviação”, de Lodi-Ribeiro, neste mesmo livro.
Por uma coincidência feliz, de certa forma, o tom de homenagem prossegue na história seguinte. Trata-se da presença rara de Rubens Teixeira Scavone, com uma história já conhecida, “Leica modelo 1932”, publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 1989.
Scavone relata com inspiração e capricho a história de uma máquina fotográfica que chega como um presente inesperado de um tio distante da família. Pois a Leica tira fotos do passado e do futuro e não do presente. Passado do centro de São Paulo e o futuro dos pequeninos parentes, filhos e sobrinhos, ainda quando crianças. O recurso ao fantástico é engenhoso e sutil, para Scavone celebrar sua nostalgia por uma São Paulo que não existe mais e o amor aos seus futuros herdeiros.
Max Mallmann estréia ficcionalmente no CLFC, com “História natural”, uma parábola sobre o desenvolvimento das formas de vida no planeta. Que pena, entretanto, que não passe de uma vinheta, um esboço inteligente do que poderia ser tornar uma ficção instigante. Pois talento é o que não lhe falta. Talvez o incentivo de um editor, fizesse Mallmann escrever uma história de verdade.
M.R.R. Olivieri é, provavelmente, a mais jovem deste livro. Um bem-vindo sopro de renovação em nossa ficção científica de meia-idade. O conto é “O apanhador do tempo” e narra em primeira pessoa um cientista que encontra o elixir da juventude, em meio à solidão em uma ilha deserta.
Há um sentimento de deja vù, pois o tema do abandono da civilização e, por meio dela, a descoberta de milagres ocultos em lugares afastados, está longe de ser uma novidade. O cientista em questão está sendo julgado, mas não fica claro qual é a acusação concreta que ele sofre. Esta indefinição somada ao tom distanciado e resumido do relato, termina por limitar um potencial dramático maior.
E se a autora me permite, sugiro que altere o seu nome artístico. M.R.R., sinceramente, soa mais como uma sigla enigmática do que a assinatura de uma artista. Simplicidade e objetividade tem um efeito maior, tanto em termos comerciais, como de retenção na memória de seus futuros leitores. Assim sendo, “Márcia Olivieri” seria um nome mais interessante para a continuidade de uma carreira que, espero, esteja só começando.
E o livro termina com o conto de Edgard Guimarães, “O menino que descrescia”. Também é sua estréia literária no CLFC e, ao que me consta, um dos seus poucos trabalhos em prosa, ele que é um prestigiado roteirista e ilustrador de histórias em quadrinhos no Brasil. A premissa do conto é interessante: Uma mulher tem cinco filhos gêmeos, todos com a mesma composição genética, mas nascidos em épocas diferentes, ou seja, de diferentes gestações. O relato se desenvolve não como um texto ficcional, mas como se fosse um artigo em tom acadêmico, daí o peso um tanto exagerado do tom professoral. Isso acaba por diluir qualquer possibilidade dramática ou fantástica. Esta mesma história recontada dentro de um molde literário, pode render uma ficção científica instigante; do jeito que está fica difícil manter o interesse até o fim.
Qual o balanço possível depois da leitura destas duas dezenas de contos? A de uma antologia das mais irregulares e desniveladas em termos de qualidade. De um lado o livro está muito bem produzido, contando, inclusive com o prefácio, as orelhas e ótimas introduções para cada história, a cargo da verve bem-humorada e espirituosa de Alfredo Keppler. De outro lado há problemas de revisão em todas as histórias, a maioria de ortografia. Porém, o mais importante é a análise do conteúdo. E como afirmei no início, a decisão dos formuladores do projeto – não foi só do organizador, mas de outros membros do CLFC – de se eximirem de selecionar as histórias foi um fator responsável por um resultado final aquém do que poderia apresentar.
Olhe o índice e veja os nomes presentes. A maior parte dos principais escritores brasileiros de FC&F dos últimos 20 anos está no livro. Vinte voltas ao redor do Sol é uma das mais representativas antologias da história desta Segunda Onda, mas desperdiça este simbolismo e potencial, por não tratá-la de forma profissional na seleção das histórias, mas sim amadora, no sentido do fã. De se revelar num projeto corporativo para dentro do ambiente do clube. Sem dúvida que esse é um argumento defensável, a de comemorar uma data com contos dos sócios. Mas depois de tantos anos pede-se mais do CLFC do que uma publicação voltada apenas para seus pares.
A decisão de limitar a distribuição para os sócios – sem divulgação e venda externa –, é outra mostra desta visão intramuros, que contribui pouco para um esforço de melhora na qualidade e divulgação da ficção científica escrita em nosso país, tão carente de espaço e oportunidade. A ausência de um projeto editorial mais engajado talvez tenha se refletido na própria postura da maioria dos autores. Ou enviaram histórias antigas – algumas muito boas, é verdade, mais ainda assim já conhecidas – ou então textos novos de segunda categoria dentro da carreira do autor. Tanto é que no livro inteiro, rigorosamente, só há, ao meu ver, duas histórias inéditas realmente boas, “O par” e “A grande obra”. Convenhamos, isso é pior do que um pessimista poderia esperar.
No dia do lançamento do livro, 18 de dezembro de 2005, alguns sócios lançaram a ideia de que o CLFC realize uma antologia anual, ou então uma dentro do mandato de dois anos. Assim como houve uma surpresa positiva quando o projeto deste livro foi anunciado, espero que a ideia de continuá-la em novas edições realmente vingue. Mas também é preciso que os futuros responsáveis das novas antologias tenham uma visão do CLFC como uma associação ‘inter muros’. Isto é, que procure, por meio de uma iniciativa do seio do fandom, realizar um projeto profissional em termos de conteúdo – com seleção das histórias –, e talvez abrindo a participação para escritores não sócios. Com isso, creio, aumentará o alcance da publicação junto a um público maior e poderá ajudar a elevar o nível de qualidade da antologia e, por extensão, da ficção científica brasileira como um todo.
Marcello Simão Branco

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