Vinte voltas ao redor do Sol – Uma antologia
comemorativa, Alfredo Keppler, organizador, 410 páginas. Clube de
Leitores de Ficção Científica, São Paulo, 2005.
Em 2005 o Clube de Leitores de Ficção
Científica (CLFC) completou 20 anos de fundação. Esta associação de fãs nasceu
do desejo de um fã de congregar um grupo que compartilhasse de um prazer e
objetivo comum, a ficção científica.
Inicialmente
o objetivo de R.C. Nascimento era encontrar mais colecionadores da coleção
Argonauta, de Portugal, como fica claro quando lançou o seu livro Quem é
quem na ficção científica – Volume 1: A coleção Argonauta (1985). Há dois
encartes no fim do volume. O primeiro para apurar quais seriam as dez melhores
obras publicadas na coleção e o segundo, uma ficha de inscrição para um clube
de ficção científica, justamente o CLFC.
Este
grupo de fãs, colecionadores e escritores tornou-se nestas duas últimas décadas
a principal organização social do fandom brasileiro de ficção científica.
Passou por várias fases, algumas delas muito efervescentes, outras de claro
declínio, mas o objetivo aqui não é uma análise sobre a importância do CLFC
para a história recente de nossa FC&F.
Isto
certamente é um trabalho importante ainda a ser realizado, mas de certa forma,
a própria maneira que o clube encontrou para marcar esta efeméride tão
significativa já é, por si só, uma contribuição que muito diz o que foi o CLFC
em sua trajetória.
Refiro-me,
é claro, à antologia de contos e depoimentos, Vinte voltas ao redor do Sol –
Uma antologia comemorativa. É um livrão que impressiona por suas mais de
400 páginas, pela produção editorial profissional e principalmente pelo grande
número de histórias.
A
ilustração de capa é bonita e alusiva ao espírito de ficção científica, razão
de ser do clube. Já os textos estão demarcados em duas partes. A primeira
contém 10 pequenos depoimentos de sócios sobre o significado da data. A segunda
parte é composta de duas dezenas de trabalhos de ficção, desde contos curtos
até uma novela.
É
comum em edições comemorativas e corporativas uma seção como a de depoimentos.
Em outras publicações do próprio CLFC isto já ocorreu, por exemplo, quando o
clube comemorou 10 anos e a edição especial de sua publicação oficial, o Somnium,
trouxe vários deles. Desta forma, embora compreenda o sentido de sua presença
nesta nova obra comemorativa, achei-os totalmente dispensáveis. E até para
criar algo novo, diferente em termos de uma edição que se declara como ‘comemorativa’,
seria mais interessante se eles estivessem ausentes.
Mas
a maior controvérsia desta antologia foi o método de seleção das histórias. Já
no prefácio da obra, o presidente do CLFC Alfredo Keppler argumenta que deixou
aos critérios dos próprios sócios-autores a escolha de seus trabalhos, pois uma
escolha editorial sofreria de um viés de preferência, “muitas vezes mal
defendido por um indefinível critério de qualidade” (página VI). Ora, mas para
que serve um selecionador, um editor? Esta ausência de atitude por parte do
responsável pela organização da obra não o exime dos eventuais problemas e
virtudes encontrados. Conforme ficará claro nos comentários sobre os contos
publicados neste livro, esta ‘falta de seleção’ foi um dos fatores que mais
chamou a atenção na avaliação da qualidade da antologia.
Comecemos pelo número de trabalhos. São duas
dezenas. Certamente é um número alto para qualquer livro deste tipo, o que
aumenta a possibilidade da obra ser mais irregular. A intenção declarada
publicamente pela Diretoria era que a obra marcasse de forma contundente a
atual administração e talvez fosse um símbolo do próprio fim da entidade, tão
criticada nos últimos anos, na mesma proporção da baixíssima participação e
interesse dos sócios. Mas, felizmente, pelo impacto positivo que o lançamento
do livro teve entre os sócios, respira-se aliviado com a anunciada continuidade
do CLFC.
Para
uma publicação claramente corporativa como esta, optou-se pelo critério óbvio
na sequência das histórias: o número do sócio. Assim, quanto mais antigo,
primeiro aparece nas páginas do livro.
Assim
é que o primeiro conto do livro é Ivan Carlos Regina, “MOMA – Minha organização
mundial de animais”. Contado em tom de fábula, não há propriamente uma história
no sentido convencional.
O
Homem e outros animais depõem sobre suas virtudes, defeitos, belezas e
transcendências. Sem dúvida que o texto é belo nas palavras e metáforas, literariamente
bem escrito. Mas é também um pouco tedioso, pois se torna um repetitivo e
previsível em seus objetivos claros: um sentido espiritual para a busca
evolutiva das espécies, sua razão de existir. No fundo, esta própria
justificativa já seria questionável, mas é a estrutura da história o que a
torna pouco interessante.
O
conto a seguir é “Aí vem o Sol”, do carioca José dos Santos Fernandes. Neste
caso, a escolha do autor não poderia ter sido mais feliz. O título do conto se
refere a uma antologia de ficção científica inspirada no título de canções dos Beatles.
A antologia, infelizmente não deu certo, mas o conto veio à luz pela primeira
vez no fanzine Megalon n.49, de junho de 1998. E é o melhor conto que
ele já escreveu e, para mim, um dos melhores da história de nossa ficção
científica. Se tivesse que organizar uma antologia dos ‘melhores’ da FCB, esta
história seria selecionada.
O
cenário é o Rio de Janeiro sob um rigoroso inverno nuclear. Um pai sobrevive
com seu filho dentro de uma caverna no que restou da floresta da Tijuca. O frio
é intenso, com forte nevasca e escuridão na maior parte do tempo.
Periodicamente ele sai em busca de comida. Mas não ousa contar ao seu filho
doente o tipo de alimento que ele traz.
O
tema do pós-holocausto nuclear é clássico e a ele se alia a questão polêmica do
canibalismo. Temos uma prosa enxuta e fluente, com apenas o essencial para a
criação do ambiente narrativo. Mas isso não limita seu conteúdo dramático, no
devido limite para não soar exagerado.
Tem
um clima de golden age marcante, mas com boa plausibilidade científica,
o que só aumenta a emoção e a credibilidade do texto. O desfecho é terrível e
revelador, acentuando a condição de uma obra-prima, entre as poucas de nossa
ficção científica.
Roberto
de Sousa Causo é o autor seguinte, com a novela “O par”. E ela vem bem
recomendada. Venceu o prestigioso Prêmio Nascente, de 2001, promovido pela
Universidade de São Paulo (USP) para jovens talentos que lá estudam.
Talvez
alheios a tão promissora premissa, vários sócios criticaram – de antemão – a
publicação da história, pelo fato dela ser muito maior em termos de número de
páginas do que as demais. De fato, eu mesmo admito que achei a opção
questionável por, supostamente, abrir um espaço excessivo a um autor em comparação
com os outros. Nesse sentido, continuo achando que um dos poréns desta
antologia é a falta de critérios nela adotada, entre os quais, o do tamanho
desequilibrado entre as histórias. E “O
par” é o exemplo mais visualizável. Contudo, ao lê-la me rendi às evidências e
a um critério que oblitera qualquer outro: a excelência da história.
É
uma nova aventura do autor pelo interior profundo da floresta amazônica – já
vista antes na novela Terra verde (2000). Em “O par” a ação se situa na
terceira década do nosso século, com uma invasão extraterrestre em plena
Amazônia. Tropas brasileiras tentam isolar a área tomada pelos invasores. Mas o
combate não se dá diretamente com eles, mas sim com tropas internacionais
chanceladas pela Organização das Nações Unidas (ONU). No fundo, estamos diante
de um dos maiores temores históricos das Forças Armadas brasileiras: a perda de
soberania sobre a Amazônia.
Em
meio a este contexto explosivo e controverso, conta-se a história de Feitosa.
Um soldado desafortunado que é obrigado a desertar da tropa e se embrenhar na
Amazônia dos alienígenas. Causo realiza uma das melhores descrições de
‘floresta profunda’ que já li. Me remete às descrições extremamente verossímeis
do interior da selva vietnamita no romance de horror Koko (1988), de
Peter Straub.
Em
sua luta por sobrevivência, Feitosa desperta com uma mulher, muito parecida com
uma antiga namorada que havia morrido. Juntos enfrentam perigos humanos,
mistérios da Natureza e o fascínio com a visão das naves extraterrestres. Até
descobrirem, finalmente, quem (ou o que) são eles.
Causo
narra a aventura com muita fluência e intensidade dramática, além de agilidade
e soluções criativas às peripécias pelas quais ‘o par’ têm de enfrentar. O
interesse é mantido, mesmo quando é fácil perceber quem era a companheira de
Feitosa, assim que ela ‘reapareceu’ subitamente no meio da floresta.
Assim
como na já citada Terra verde há uma simbiose temática entre o
estranhamento do contato alienígena e das forças da Natureza, com uma crítica sociopolítica
importante à situação hipócrita pela qual o Estado brasileiro – e boa parte da
sociedade –, encara a chamada ‘questão amazônica’, no contexto das prioridades
ambientais e econômicas do país.
Mesmo
com esta abordagem pertinente, o que dá realmente liga a esta simbiose é o
vigor do elemento humano e individual, em todo este cenário turbulento e
transformado. Alguns críticos notaram que esta história retoma – mais uma vez –
o tema do soldado em crise de consciência, que seria o próprio alter ego
do autor. De fato, não há como escapar desta observação, mas o que é novo nesta
história é o violento despojamento de Feitosa, um sujeito socialmente
desajustado desde antes de se alistar no Exército e que não hesita em quebrar
as regras e matar friamente, quando julga necessário. Do que eu li, a novela “O
par” é a melhor história da ficção científica brasileira em 2005.
“Quadros
pretéritos de uma vida” é o conto seguinte e marca a presença de Cesar Silva –
um dos editores deste Anuário – na antologia. Ele também produziu
esta antologia, certamente responsável pela boa impressão geral que o livro
teve entre aqueles que o recebeu.
Não
é uma história inédita, foi publicada originalmente no Somnium n.48, em
1990. Já se passaram 15 anos, portanto, mas o texto continua sendo uma
evidência do ecletismo do autor. Silva faz de tudo um pouco em nossa ficção
científica: edita, ilustra, organiza eventos e também escreve – e bem.
A
história mostra em flash back cenas pretéritas da vida de um piloto espacial
de caça prestes a enfrentar seu destino final. O contexto mostra os terrestres
colonizando com sucesso o Sistema Solar, com uma grande empresa dominando as
relações políticas e econômicas. Há uma crise quando uma colônia independente
se estabelece em Titã, a maior lua de Saturno.
Silva
entremeia o cenário político sob o olhar do piloto, quando menino. Este ângulo
de observação torna a narrativa mais sensível e foge do lugar-comum, tornando-a
interessante de ser lida. E a conclusão não deixa de ter certo viés poético –
ainda que trágico –, ressaltando que o autor poderia – e pode – se tornar um
nome promissor entre os escritores brasileiros de ficção científica se escrevesse
mais ficção. Embora sua opção de ‘abraçar’ a FC&F em diversas atividades também
o torne uma das pessoas mais influentes em nosso meio.
O
próximo no índice é Braulio Tavares, que se faz presente com o conto “O molusco
e o transatlântico”. A trama mostra um brasileiro que possui poderes
paranormais de movimentar elétrons. E com esta habilidade ele se torna um dos
tripulantes, ao lado de mais seis astronautas, em uma Estação Orbital.
Lá
pelas tantas sofrem um acidente e despertam no interior de um local estranho,
que depois descobrem ser uma nave alienígena. Todos os astronautas são
libertados, menos o brasileiro que, assim, nos conta sua sina, prisioneiro para
experiências dos Intrusos. Sim, eles mesmos, os alienígenas já conhecidos de
trabalhos anteriores de Tavares, especialmente em uma de suas principais
histórias, “Principe das sombras”, presente na sua já clássica coletânea A
espinha dorsal da memória (1989).
Narrada
em primeira pessoa é um texto de moldes um tanto convencionais, no qual o mais
interessante é a percepção de mudança de atitude psicológica por parte do sequestrado.
Pouco a pouco ele vai se adaptando, se conformando à uma situação impossível de
enfrentar. Não deixa de ser uma parábola da insignificância humana frente aos
mistérios da realidade que mal apreendemos, como as de possíveis forças –
físicas ou não – que podem estar nos espreitando pelo universo.
Após
Braulio Tavares, chega André Carneiro, outro ilustre sócio e personalidade de
nossa ficção científica. Mas em “A grande obra” não temos uma história
estritamente do gênero; talvez nem mesmo uma história em seu sentido, digamos,
convencional.
Menos
pelo enredo – que se revela fascinante em sua sutileza em seu final – o texto
vale mais pelo estilo seguro e arrojado e ainda mais pelo suspense e
intensidade psicológica do personagem que conta a história. No caso é um
sujeito que leciona literatura e trabalha numa editora e conhece um pai e uma
filha aparentemente simplórios, além de sem origem e atividade definida. Com
uma atmosfera que lembra contos policiais e narrado em primeira pessoa, o
literato vai mostrando seu envolvimento misterioso, surpreendente e
desesperador com Saulo e sua bela filha Roxana, por quem se apaixona.
É
uma história que procura trabalhar com a noção de que o fantástico e o
improvável tem lugar no mundo e pode estar oculto para todos os que não vêem.
Ou não tem como vislumbrar uma ‘grande obra’. Uma história curiosa pelo tema e
que agrada por sua prosa saborosa e segura, de um autor maduro e ainda capaz de
surpreender. Outro grande momento do livro.
“Paradoxos méson”, de Miguel Carqueija, é o
próximo e nos mostra uma história de viagem no tempo, com o clássico tema do
sujeito que volta ao passado e encontra com si mesmo. O autor, mais uma vez,
tem uma mulher como protagonista, mas a história tem cores menos coloridas do
que de costume em suas aventuras.
No
caso, trata do tema do estupro de uma menina que se tornou mulher e volta no
tempo para impedir a tragédia. O conto é curto e objetivo quanto aos paradoxos
de tal empreitada, mas não acrescenta nada em especial a um subtema já por
demais explorado na ficção científica.
A
história seguinte é “Pais da aviação”, de Gerson Lodi-Ribeiro. O título faz
referência a Santos Dumont. A pretexto de se valer desta homenagem – que não
deixa de ser justa – em termos práticos o texto narra aproximadamente 150 anos
de domínio político e militar da França sobre a Europa e parte do continente
americano. Exceções são a Rússia a leste e os Estados Unidos a oeste, com que
os franceses e seus dominados empreendem duras batalhas pela América do Sul e
do Norte, na primeira metade do século XX.
Como
já deu para notar é uma história alternativa e com premissas steampunks,
ou seja, em uma linha histórica alternativa com um inovação tecnológica que
muda o desenrolar histórico como o conhecemos. O ponto de divergência inicial
seria a vitória francesa na Batalha de Trafalgar, permitindo a invasão das
forças de Napoleão ao Reino Unido. O texto procura se apoiar nas modificações
históricas ao longo do século XIX e parte do XX, tendo como linha de ação a
superioridade tecnológica francesa, especialmente com o advento dos aeroplanos
e seu emprego bélico.
Embora
a história tenha o seu interesse, transcorre em um ritmo quase documental, com
pouca dramaticidade. Assim, o texto segue uma linha, digamos, determinista, o
que de certa forma não é um problema desta história em particular, mas uma
recorrência comum no subgênero das histórias alternativas.
Em
várias histórias alternativas ocorre uma modificação de um fato histórico –
geralmente militar ou político – que altera quase tudo o que conhecemos. O
problema é que soa como voluntarista e simples, com pouca análise, primeiro de
como este ponto de divergência se contraporia à uma estrutura social e
histórica já assentada e em segundo lugar, e mais importante: como se daria as
transformações sociais em muitos aspectos que poderia advir de tal mudança, que
engendraria outras modificações difíceis de apreender, até para um texto
ficcional.
Claro
que há um bom número de histórias alternativas notáveis por enfrentar as
dificuldades acima de forma criativa e convincente, e os clássicos do subgênero
são do conhecimento de todos os apreciadores. Contudo, esta ponderação pode ser
feita para qualquer história alternativa, especialmente naquelas que partem de grandes
modificações, como se elas coubessem dentro de um modelo previamente
concebido. Mas é possível fugir desta armadilha, trabalhando de forma mais
apurada questões sociais e culturais, sem esquecer do necessário elemento
humano, que é o que da vida a uma história, alternativa ou não.
Em
resumo, “Pais da aviação” é um texto pequeno para as tantas questões que
aborda. Tem o seu mérito como exercício de construção de cenários bélicos
alternativos, mas ressente-se do já mencionado elemento humano à trama.
Anna
Creuza Zacharias é a próxima autora a publicar na antologia, com a noveleta
“Argonáutica”. Ela escolheu um trabalho relativamente antigo, publicado no Somnium
n.62, de 1995. E não foi feliz, pois é uma história confusa que, em linhas
gerais, traça um paralelo sobre a viagem espacial até um planeta identificado
por místicos medievais, com as conseqüências da viagem de Jasão e Medéia, da
mitologia grega.
O
relato entremeia de maneira irregular trechos da viagem espacial, da saga
mitológica grega e do planeta a ser visitado. Tudo isso em um texto truncado,
com trechos mal escritos, pontas soltas, qual um roteiro de um filme mal
realizado. Se isso não é o bastante, ainda há uma coleção de personagens
estereotipados. Além de situações clichê dignas de séries de TV de má
qualidade.
Como
se vê, uma história com muitos problemas, no qual mesmo sua demonstração de
erudição não torna a história menos desequilibrada e incerta quanto aos seus
objetivos temáticos, ou seja, sobre o quê, afinal, ela pretende contar. Esta história
é o exemplo mais eloquente deste livro de um texto que não deveria ser
publicado – ainda mais em um livro. Seria preciso reescrevê-lo, enxugá-lo,
melhorá-lo, enfim. E a responsabilidade do organizador é tão grande quanto da
autora, que já escreveu contos bons e poderia ter sido poupada deste
constrangimento.
Ainda
mais se a contrastarmos com a próxima, “Vidinha caseira”, de Martha Argel.
Ainda que não seja o melhor conto desta autora é agradável, bem escrito,
criativo e com agudo senso de ironia.
É
outro conto já conhecido, publicado antes na antologia Lugar de mulher é na cozinha
(2000), organizada pela própria autora. Conta a história de uma dona-de-casa
que não sai da cozinha, aliás, como tantas que existem por aí. Seu marido
reclama – sempre em frente à TV, como tantos por aí também. Ela diz que está
muito ocupada. E está mesmo, pois na verdade ela é uma tripulante de uma nave
espacial em guerra com uma civilização alienígena hostil e vive entre a missão
e sua ‘vidinha caseira’. O texto é conduzido com leveza e bom humor, embora
termine, curiosamente, por reforçar o papel subalterno da mulher na sociedade.
Pois mesmo com todas as suas conquistas políticas, civis e sociais, a mulher
ainda continua a exercer seu papel de ‘dona de casa’, mesmo que não seja – não
para todas, ao menos – propriamente uma ‘vidinha caseira’.
O
conto seguinte, “Valentim”, de Ataíde Tartari, coincidentemente, tem o mesmo
ritmo leve e descompromissado da história anterior. Este resenhador foi
parcialmente responsável por “Valentim”, pois o encomendei para a edição especial
de fim de milênio, do meu fanzine Megalon n.55, de dezembro de 1999.
Neste
trabalho Tartari faz uma dupla homenagem. No estilo, à obra da escritora Helen
Fielding, Os diários de Bridget Jones – depois levada às telas de cinema
em 2001, com grande interpretação de Renne Zelwegger –, e no enredo a Valentine
Michael Smith, o terráqueo criado em Marte, do clássico Um estranho numa
Terra estranha (1962), de Robert A. Heinlein. A tentativa é bem sucedida,
principalmente porque o autor sabe escrever com facilidade e coloquialidade,
intercalando diálogos ágeis e um humor inspirado.
O
que já não é o caso do próximo conto, “Aniquilador”, de Carlos Orsi Martinho –
aliás, é curioso que neste livro, publicado dois meses depois de Tempos de
fúria, ele volta ao seu nome, digamos, original.
Como
dizia, este conto não repete o bom nível dos dois últimos. A história é
indefinida e curta demais para apreender todos os seus significados
existenciais – se for este mesmo o caso. Um sujeito que vive no limite entre um
mundo real e virtual, quer morrer porque diz não suportar o “fardo da
consciência”. Mas é só isso? Falta um drama mais concreto, um pouco truncado
também por um jargão excessivamente técnico, que mais aborrece do que esclarece
dentro do contexto da trama.
Já
Lúcio Manfredi comparece com “A caçadora”. Um texto com prosa forte em imagens
e ambíguo em seus significados. Nesse sentido semelhante ao conto anterior.
O
trabalho apresenta uma tentativa estilística interessante, ao entremear a ação
concreta, com outro plano de realidade, que o espreita o nosso em busca de uma
vítima, no caso um mendigo. Mas ainda que a narrativa procure sair do
convencional, o resultado final é um pouco confuso, transmitindo uma sensação
de incompletude, de um desfecho abrupto e que não completa o ciclo que a história
poderia sugerir. Afinal, a experiência foi real ou imaginária? Manfredi,
conscientemente, quis deixar a dúvida no leitor? Não ficou claro.
Tanto
Martinho como Manfredi poderiam ter escolhido trabalhos melhores e mais
significativos, ao invés destes dois contos pálidos e que não causariam impacto
nem nas páginas de um fanzine. Aqui, de novo, a ausência de um editor responde
pela queda de qualidade das histórias publicadas.
Na
sequência vem “Exercícios de silêncio”, de Finísia Fideli. É uma história
publicada originalmente no distante ano de 1983, na antologia Conto paulista
e republicada em 1991 no fanzine Megalon, n.21, com direito a ilustração
de capa e tudo. No ano seguinte os leitores deste fanzine a elegerem como a
melhor história publicada no ano, por meio do Prêmio Tapìrài. Sem medo de
exagerar, considero este o melhor trabalho de uma escritora muito boa, uma das
melhores histórias da chamada Segunda Onda da FCB.
Trata-se
de uma história de ficção científica de moldes tradicionais, com um piloto
espacial com problemas com sua nave. Ele é obrigado a pousar em um planeta
distante e lá trava contato com a civilização nativa. Seres humanóides, como
ele, originários de colonizadores descendentes da Terra.
Sim,
você já deve ter lido mais de uma história com um enredo como este. Mas o que
diferencia esta noveleta de outras, é a profundidade do contato humano, entre
culturas e posturas diante da vida tão diferentes e opostas.
Finisia
narra de forma econômica e sensível, sem excessos, numa espécie de convite a
uma viagem interior, da qual não apenas o piloto, mas também o leitor é
convidado a participar. Para além da alteridade de culturas distintas, o
subtexto trabalha a questão de quais valores são importantes em meio a uma
sociedade tão competitiva, egoísta e materialista, como a do Ocidente laico.
A
dedicatória final ao povo tibetano não deixa dúvida quanto à analogia da
história e creio que é até desnecessária, pois a riqueza dos sentimentos
transmitida nos deixa claro de onde vem sua inspiração. Mais um grande momento
do livro e a lamentar apenas que a autora praticamente tenha desistido de uma
carreira das mais promissoras.
Outro
que está lutando em torno de uma carreira é o carioca Rogério Amaral de
Vasconcellos, muito produtivo nos últimos anos, escrevendo e editando contos e
novelas, no universo ficcional Nave profana.
Em
Vinte voltas ao redor do Sol, ele nos mostra “Os seres do vácuo”. De
saída nota-se que forma e conteúdo estão desequilibrados. Talvez seja possível
afirmar que uma atrapalha a outra. O conteúdo é interessante, ainda que sem
novidade. A Terra é destruída por uma súbita chuva de meteoritos e uma nave
escapa pouco antes com uma tripulação. Após um acidente – mal explicado no
texto, por sinal –, que explode a nave, um casal consegue fugir em uma das
naves auxiliares e aterrissa em um planeta. Lá descobre que eles não eram mais
apenas seres humanos, no sentido biológico do termo, especialmente em termos
reprodutivos, mas sim entrecruzados com elementos mecânicos, artificiais. Este
fato em si já suscita um novo enredo dentro do primeiro e remete este novo tema,
a um drama em torno da continuidade da espécie.
Bem
se vê que o conto é ambicioso, trabalha em grandes questões. Isso é
interessante em termos de proposta temática, mas para a forma de uma história
curta, torna o desafio quase um problema, pois exigiria muita habilidade e
harmonia do escritor, um sentido de concisão preciso. No texto em questão isso
não ocorre, talvez por falta de experiência do autor, pois a narrativa se
mostra confusa. Muitas ideias e conceitos que precisariam ser mais elaborados.
A falta confere um incômodo na leitura. Acrescente-se a estes problemas, o
estilo distanciado, num tom documental e uma prosa escrita de forma apressada e
com escolhas de palavras que destoam do cenário da narrativa. Para resumir, percebe-se
que o melhor seria que a história fosse reescrita e talvez aumentada em seu tamanho.
Octavio
Aragão vem a seguir com o já conhecido “Lâminas cruzadas”, originalmente vista
no Somnium n. 86, de 2003. É uma
história situada na segunda metade do século XIX, na frente de batalha da
Guerra do Paraguai. O texto narra de forma competente algumas lutas corporais
entre um soldado brasileiro, o negro Zuavos, com soldados paraguaios. Até que
em uma delas, ferido e em desvantagem, ele é subitamente salvo por um
combatente misterioso e fugidio.
O
conto é despretencioso, uma homenagem ao escritor Gerson Lodi-Ribeiro – nosso
principal autor no subgênero história alternativa e autor da noveleta clássica A ética da traição
(1993), que versa sobre uma vitória paraguaia na guerra vencida pela Tríplice
Aliança, em nossa linha temporal. Tanto é que “Lâminas cruzadas” é um
conto-homenagem, que se permite, no final, uma surpresa na figura do escritor
Júlio Verne – aliás, também homenageado na história “Pais da aviação”, de
Lodi-Ribeiro, neste mesmo livro.
Por
uma coincidência feliz, de certa forma, o tom de homenagem prossegue na
história seguinte. Trata-se da presença rara de Rubens Teixeira Scavone, com
uma história já conhecida, “Leica modelo 1932”, publicada no jornal Folha de
S. Paulo, em 1989.
Scavone
relata com inspiração e capricho a história de uma máquina fotográfica que
chega como um presente inesperado de um tio distante da família. Pois a Leica
tira fotos do passado e do futuro e não do presente. Passado do centro de São
Paulo e o futuro dos pequeninos parentes, filhos e sobrinhos, ainda quando
crianças. O recurso ao fantástico é engenhoso e sutil, para Scavone celebrar
sua nostalgia por uma São Paulo que não existe mais e o amor aos seus futuros
herdeiros.
Max
Mallmann estréia ficcionalmente no CLFC, com “História natural”, uma parábola
sobre o desenvolvimento das formas de vida no planeta. Que pena, entretanto,
que não passe de uma vinheta, um esboço inteligente do que poderia ser tornar
uma ficção instigante. Pois talento é o que não lhe falta. Talvez o incentivo
de um editor, fizesse Mallmann escrever uma história de verdade.
M.R.R.
Olivieri é, provavelmente, a mais jovem deste livro. Um bem-vindo sopro de
renovação em nossa ficção científica de meia-idade. O conto é “O apanhador do
tempo” e narra em primeira pessoa um cientista que encontra o elixir da
juventude, em meio à solidão em uma ilha deserta.
Há
um sentimento de deja vù, pois o tema do abandono da civilização e, por
meio dela, a descoberta de milagres ocultos em lugares afastados, está longe de
ser uma novidade. O cientista em questão está sendo julgado, mas não fica claro
qual é a acusação concreta que ele sofre. Esta indefinição somada ao tom
distanciado e resumido do relato, termina por limitar um potencial dramático
maior.
E
se a autora me permite, sugiro que altere o seu nome artístico. M.R.R.,
sinceramente, soa mais como uma sigla enigmática do que a assinatura de uma
artista. Simplicidade e objetividade tem um efeito maior, tanto em termos
comerciais, como de retenção na memória de seus futuros leitores. Assim sendo,
“Márcia Olivieri” seria um nome mais interessante para a continuidade de uma
carreira que, espero, esteja só começando.
E
o livro termina com o conto de Edgard Guimarães, “O menino que descrescia”.
Também é sua estréia literária no CLFC e, ao que me consta, um dos seus poucos
trabalhos em prosa, ele que é um prestigiado roteirista e ilustrador de
histórias em quadrinhos no Brasil. A premissa do conto é interessante: Uma
mulher tem cinco filhos gêmeos, todos com a mesma composição genética, mas
nascidos em épocas diferentes, ou seja, de diferentes gestações. O relato se
desenvolve não como um texto ficcional, mas como se fosse um artigo em tom
acadêmico, daí o peso um tanto exagerado do tom professoral. Isso acaba por
diluir qualquer possibilidade dramática ou fantástica. Esta mesma história
recontada dentro de um molde literário, pode render uma ficção científica
instigante; do jeito que está fica difícil manter o interesse até o fim.
Qual
o balanço possível depois da leitura destas duas dezenas de contos? A de uma
antologia das mais irregulares e desniveladas em termos de qualidade. De um
lado o livro está muito bem produzido, contando, inclusive com o prefácio, as
orelhas e ótimas introduções para cada história, a cargo da verve bem-humorada
e espirituosa de Alfredo Keppler. De outro lado há problemas de revisão em
todas as histórias, a maioria de ortografia. Porém, o mais importante é a
análise do conteúdo. E como afirmei no início, a decisão dos formuladores do
projeto – não foi só do organizador, mas de outros membros do CLFC – de se
eximirem de selecionar as histórias foi um fator responsável por um resultado
final aquém do que poderia apresentar.
Olhe
o índice e veja os nomes presentes. A maior parte dos principais escritores brasileiros
de FC&F dos últimos 20 anos está no livro. Vinte voltas ao redor do Sol
é uma das mais representativas antologias da história desta Segunda Onda, mas
desperdiça este simbolismo e potencial, por não tratá-la de forma profissional
na seleção das histórias, mas sim amadora, no sentido do fã. De se revelar num
projeto corporativo para dentro do ambiente do clube. Sem dúvida que esse é um
argumento defensável, a de comemorar uma data com contos dos sócios. Mas depois
de tantos anos pede-se mais do CLFC do que uma publicação voltada apenas para
seus pares.
A
decisão de limitar a distribuição para os sócios – sem divulgação e venda
externa –, é outra mostra desta visão intramuros, que contribui pouco para um
esforço de melhora na qualidade e divulgação da ficção científica escrita em
nosso país, tão carente de espaço e oportunidade. A ausência de um projeto
editorial mais engajado talvez tenha se refletido na própria postura da maioria
dos autores. Ou enviaram histórias antigas – algumas muito boas, é verdade,
mais ainda assim já conhecidas – ou então textos novos de segunda categoria
dentro da carreira do autor. Tanto é que no livro inteiro, rigorosamente, só
há, ao meu ver, duas histórias inéditas realmente boas, “O par” e “A grande
obra”. Convenhamos, isso é pior do que um pessimista poderia esperar.
No
dia do lançamento do livro, 18 de dezembro de 2005, alguns sócios lançaram a ideia
de que o CLFC realize uma antologia anual, ou então uma dentro do mandato de
dois anos. Assim como houve uma surpresa positiva quando o projeto deste livro
foi anunciado, espero que a ideia de continuá-la em novas edições realmente
vingue. Mas também é preciso que os futuros responsáveis das novas antologias
tenham uma visão do CLFC como uma associação ‘inter muros’. Isto é, que procure,
por meio de uma iniciativa do seio do fandom, realizar um projeto
profissional em termos de conteúdo – com seleção das histórias –, e talvez
abrindo a participação para escritores não sócios. Com isso, creio, aumentará o
alcance da publicação junto a um público maior e poderá ajudar a elevar o nível
de qualidade da antologia e, por extensão, da ficção científica brasileira como
um todo.
– Marcello Simão
Branco
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