A produção de não-ficção no ambiente editorial fantástico brasileiro não é grande, mas tem se mantido estável, com dois ou três publicações por ano. Contudo, geralmente são textos oriundos de trabalhos de graduação acadêmica, com toda a parafernália que caracteriza os ensaios de pesquisa científica universitária: muitas citações, notações de referência e notas de pé de página, o que torna a leitura fragmentada e cansativa, sem esquecer que são textos voltados a provar uma tese, ou seja, são construídos em torno de um objetivo específico e o perseguem até que seja atingido; afinal, se isso não acontecesse, o trabalho seria rejeitado pela banca e seu autor teria de refazê-lo até obter esse resultado. São, portanto, leituras pragmáticas, de interesse específico, que depois de defendidas, aprovadas e publicadas, ficam nas estantes esperando que futuros pesquisadores acadêmicos as tomem para buscar referências e citações para seus próprios trabalhos.
Mas, algumas vezes, surgem títulos que não foram produzidos para o ambiente acadêmico e tornam-se trabalhos de leitura mais fluida para o leitor leigo, como por exemplo O que é ficção científica (Brasiliense, 1986) e Um rasgão no real (Marca de Fantasia, 2005), ambos de autoria de Braulio Tavares.
E também é o caso de Muitas peles, primeiro livro de não-ficção de Luiz Bras, publicado pela Editora Terracota com recursos do ProAC (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo), distribuído gratuitamente pelo autor. Trata-se de uma coletânea que reúne os melhores artigos de Luiz Bras, publicados na coluna “Ruído branco” do jornal literário Rascunho, de Curitiba, PR.
Luiz Bras notabilizou-se nos últimos anos por uma atitude de militância no gênero da ficção científica, atuando como escritor e ensaísta, com propostas de impacto e provocações que transcendem o fandom e ecoam no mainstream literário como nunca antes foi conseguido pelos escritores do gênero. Isso porque Luiz Bras é a persona autoral de Nelson de Oliveira, escritor multipremiado no mainstream que, há alguns anos, optou por se retirar em favor de seu alter ego mais identificado com a literatura especulativa.* Bras tem sido extremamente ativo, publicando vários livros a cada ano, sempre de qualidade acima da média, tendo sido extensamente entrevistado pelo Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica em sua edição referente a 2010, ano em que teve publicada a ótima coletânea de contos Paraíso líquido, pela mesma Terracota.
Além de Muitas peles, Bras publicou em 2011 o romance infanto-juvenil Sonhos, sombras e super-heróis, na coleção Jovem Leitor da editora Ciranda das Letras, além de, como Nelson de Oliveira, ter participado da organização da antologia As cidades indizíveis (Llyr Editorial), ao lado do também escritor Fábio Fernandes.
Não por acaso, Muitas peles traz na capa um desenho de Teo Adorno, o mesmo artista que ilustrou a capa de Paraíso líquido, e isso até pode confundir o leitor, mas trata-se de um trabalho completamente diferente.
São 16 textos que discutem questões interessantes ligadas ao ato da escrita e da crítica literária, bem como sobre os valores da literatura de gênero, especialmente a ficção científica, frente aos caminhos do mainstream.
Entre os textos está o importante “Convite ao mainstream”, no qual Bras convida todos os autores brasileiros a experimentarem a ficção científica como uma alternativa ao engessamento estilístico da literatura brasileira, um texto que já se tornou basilar no ambiente da fc&f nacional.
Mas o livro tem muito mais a oferecer. Além de “Convite ao mainstream”, Muitas peles traz outros artigos que ampliam a percepção do leitor tanto para a literatura de gênero quanto para o mainstream, como por exemplo “Duas elites”, no qual Bras confronta lucidamente os parâmetros analíticos que predominam nos ambientes da ficção de gênero e do mainstream. O artigo é composto por breves depoimentos de Ana Cristina Rodrigues, Braulio Tavares, Fabio Fernandes, Guilherme Kujawski, Marcello Simão Branco, Roberto de Sousa Causo e Tibor Moricz, todos nomes vinculados ao fandom brasileiro de fc&f, ampliando o leque de opiniões expostas. Faltou, contudo, a contraparte mainstream para configurar um bom debate.
Os demais artigos que compõe o volume são: “O infinito: um delírio?”; “Fim do papel, fim da poesia”; “Escolha um futuro”; “Cinco erros”; “Três leis”; “Sabedoria secreta”; “Olha, mãe, uma cor voando!”; “Encontro com o autor-personagem”; “O autor e seu editor”; “Elogio do acaso”; “Paraíso perdido: a infância”; “Morte e imortalidade” e “Crítica é cara ou coroa”. A coletânea também abre espaço para o artigo “Um bárbaro que se preze não vem para o chá das cinco”, de Roberto de Sousa Causo, escrito a convite de Bras.
Muitas peles é um livro ágil, de leitura leve e agradável, mas de impacto contundente. Sem dúvida, uma das mais importantes publicações do gênero nos últimos anos.
— Cesar Silva
* Nelson de Oliveira permanece assinando textos de crítica e a organização de antologias.
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