Almanaque Jornada
nas Estrelas, Salvador Nogueira e Susana Alexandria. 272 páginas. Capa
de Delfin. São Paulo: Editora Aleph, 2009.
A série de TV Jornada nas Estrelas (Star Trek) é um dos símbolos da cultura popular da segunda metade do século 20 e, nesse sentido, parte formadora de boa parte dos fãs que se tornaram
leitores de ficção científica no Brasil, a partir do início dos anos 1980.
Este livro é o primeiro escrito e publicado no Brasil sobre o mais
popular e influente seriado de TV de ficção científica[1] e,
de quebra, de grande sucesso no país, em virtude de sua exibição quase contínua
entre o fim dos anos 1960 ao início dos 1990, para ficarmos só na chamada TV
aberta.
Os autores são conhecidos fãs da série e bastante ativos. Salvador Nogueira,
um jornalista de divulgação científica, criou o bom
site Trek Brasilis, uma das principais referências para a informação sobre a série no Brasil. Já Susana Alexandria é uma tradutora de recente
destaque ao verter para o português clássicos como, por exemplo, Fim da eternidade,
de Isaac Asimov, e tem atuado junto à Jornada através de seu
interessante trabalho de pesquisa sobre as fontes literárias, principalmente de
William Shakespeare, presentes nos episódios da série clássica. Inclusive, a
presença de um capítulo no livro sobre isto é um dos pontos altos a ser
ressaltado.
O livro é muito bonito e agradável, fartamente ilustrado – ainda que sem
cores internas –, diagramado com desenvoltura e leveza. Além dos textos
principais, há várias informações complementares e curiosidades em textos
curtos, envoltos em balões e quadros, talvez para agilizar uma consulta rápida,
como requer um livro identificado como um “almanaque”. E talvez por se
aferrarem demais a este método, o livro acaba revelando suas fraquezas em
termos de conteúdo e de prioridades.
Primeiro, o livro é claramente enfocado na série clássica. O início da
série é recontado com um nível de detalhe muito bom e inclui também um guia de
episódios das três temporadas – bem feito, mas que nada acrescenta aos vários à
disposição do trekker brasileiro, inclusive em português.[2]
Daí em diante, as demais séries são comentadas de forma resumida,
ressaltando-se apenas os seus aspectos principais e algumas informações de
bastidores. Mas onde está ao menos a lista dos episódios de cada série? Com
relação aos filmes para o cinema, a ênfase se repete, pois comenta até o sétimo
filme – onde termina a participação dos personagens da série clássica –, e os
demais são apenas citados nominalmente. O mesmo procedimento acontece quando escrevem
sobre histórias em quadrinhos e os livros publicados no Brasil. Um diferencial
relevante seria publicação de uma listagem dos títulos lançados no país. Uma
chance perdida. E mais estranho ainda é que nem os 23 livros da própria Aleph
sobre a série são listados, mas sim os de outras editoras! Tomaria tantas
páginas assim a publicação dos títulos? É o tipo de informação que deixaria o
livro útil para o fã e colecionador.[3]
Mas a pior falha do almanaque é sua abordagem distorcida do fenômeno Star
Trek no Brasil. Para começar, poderiam abordar a repercussão da série no
país, estabelecendo um instigante paralelo com a da terra natal do seriado e com
isso fugir do tradicional de contar como foi nos Estados Unidos. Eu mesmo tenho
o recorte da revista Intervalo, de São Paulo, anunciando a estréia no
país da série, pela TV Excelsior, em 1968.[4] O
incêndio que acabou com esta emissora teve repercussão sobre a exibição da
série no país, já que alguns rolos de episódios foram perdidos. Um tópico sobre
os dubladores poderia ter sido abordado, falando das versões da AIC e depois da
VTI. Isso está disponível na internet.[5]
O mais polêmico, porém, ficou reservado para o capítulo nove, “Trekkers!”,
ao comentarem sobre a comunidade de fãs no Brasil. Eles escreveram na página
239:
“Foi durante as reprises das séries coloridas no Brasil, no início dos
anos 1980, que toda uma geração de novos fãs veio juntar-se aos antigos. Mas,
naqueles tempos pré-internet, pré-celular e pré-teve a cabo, a comunicação
entre os fãs era muito precária – para não dizer inexistente. É muito comum
ouvir histórias de trekkers que se achavam os únicos fãs brasileiros da série.
Isso mudou quando surgiram os primeiros fã-clubes de Jornada nas Estrelas no
Brasil, particularmente dois deles, que se tornaram conhecidos nacionalmente: o
Jetcom, do Rio de Janeiro, e a Frota Estelar, de São Paulo. Ambos surgiram no
mesmo ano em 1989.”
Este trecho não condiz com a verdade. O primeiro fã-clube organizado
sobre a série é a Sociedade Astronômica Star Trek (SAST), criada em São Paulo, em
1982. O clube tinha reuniões semanais e publicava o fanzine Star News, que durou onze anos, em 48 edições. A
SAST tinha sócios por todo o Brasil e contatos com grupos de fãs semelhantes no
Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e interior de São Paulo. Além de contatos no
exterior, como nos Estados Unidos e em Portugal. Se Nogueira e Alexandria
afirmam que havia fãs que se achavam os únicos, bem se vê que não era o pessoal
da SAST.
A SAST foi retratada em mais de uma oportunidade por jornais, revistas e
programas de TV da época.[6] Dizer
que a comunicação era precária ou inexistente é um equívoco de julgamento risível e preconceituoso, como se o mundo sem as tecnologias de hoje praticamente
não fosse viável. Além disso, Susana Alexandria manteve contato com a SAST durante um breve período.
Para os autores, ao que parece, a história organizada dos trekkers
no Brasil começou com os clubes com os quais eles tiveram mais contatos e
participação. Mas por que desconsideraram de maneira tão contundente os fãs dos
anos 1980? E nem é possível dizer que não tinham como ter acesso a eles, porque
alguns se integraram com destaque aos clubes que vieram depois e existe alguma
literatura histórica já escrita sobre o assunto.[7]
É fato que com a Frota Estelar nos anos 1990 houve mais organização,
visibilidade e repercussão, principalmente por conta das chamadas “convenções
estelares” e do feito significativo de trazer três atores do elenco principal
da série clássica para o país: Walter Koenig (Checov), George Takey (Sulu) e
Leonard Nimoy (Spock). Mas é prematuro desconsiderar o movimento de fãs dos
anos 1980, já que manteve o interesse sobre o seriado, com fãs articulados e
ativos. E nunca é demais lembrar que a SAST é considerada uma das primeiras
associações de fãs que assinalam o ressurgimento da própria ficção científica
brasileira, a chamada Segunda Onda, ao lado do Clube de Ficção Científica
Antares, de Porto Alegre, e do fanzine Hiperespaço, ambos de 1983. O que
preocupa é que por este ser o primeiro livro sobre a série escrita no Brasil, a
defesa da posição dos autores sirva como a versão oficial sobre o assunto.
Quando soube deste livro pensei no que ele poderia trazer de diferente
para o trekker brasileiro, já que existem vários livros excelentes sobre
a série publicados nos Estados Unidos, e mesmo no Brasil, se pensarmos em Jornada
nas Estrelas Compendium, de Allan Asherman e as biografias de William
Shatner e Leonard Nimoy. Ou seja, o Almanaque só seria útil como fonte
de consulta se tivesse informações básicas completas, como listas de obras e
episódios das séries e trouxesse algo brasileiro sobre o assunto. Talvez
a obra não tenha sido concebida para o trekker, mas sim para o público
em geral. Afinal, a Aleph tem adotado este princípio para os seus livros de
ficção científica. Isso explicaria este almanaque light, ao invés de um
com mais ênfase em informações de pesquisa. Se assim for, o interesse para o trekker
é reduzido. Por tudo isso, embora o livro seja bem produzido, ainda se espera outro
sobre a série que traga informações bibliográficas e de pesquisa e,
principalmente, mais voltadas à rica – e ainda mal contada – história do
movimento trekker no Brasil.
– Marcello Simão Branco
[1] Mas não
é o primeiro abordando a série. Em 1993, Ana Creusa Zacharias escreveu uma novelização
chamada A abadia, em edição independente.
[2] O
mais completo, claro, é Jornada nas Estrelas Compendium, de Allan Asherman,
publicado pela Sci-Fi Books, em 1999. Já em termos de guia produzido por
brasileiros, o melhor é TV Séries – Jornada nas Estrelas: Guia de Episódios,
edição especial da revista em seu ano II, número 16, outubro de 1998, num ótimo
trabalho de Fernanda Furquim e Marta Machado.
[3] Talvez
por desconhecimento, os autores deixaram de comentar sobre um álbum com 240
figurinhas colantes sobre Jornada nas Estrelas: A Nova Geração,
publicado pela editora Abril Panini S/A, em 1991.
[4] O título
da reportagem é “Lá em cima onde mora a aventura: Emoção e garotas bonitas, é o
que promete ‘Jornada nas Estrelas’. Fotos dos episódios “Deste lado do paraíso”
e “Miri” ilustram o texto.
[5] Veja o
artigo “Jornada nas Estrelas (Star Trek): Uma dublagem através do tempo”, de
Thiago Siqueira, publicado em
http://universofantastico.wordpress.com/2009/04/11/jornada-nas-estrelas-uma-dublagem-atraves-do-tempo.
[6] Veja os
títulos de algumas reportagens sobre os fãs dos anos 1980: “Um jeito trek de
ser”, no Jornal do Campus da USP, n. 67, 1º de junho de 1988; “A guerra
dos trekies brasileiros”, no Jornal da Tarde, de São Paulo, em 27 de
maio de 1989. As duas com fotos de fãs. E também na revista Video Business,
em 1988, com “Fãs além da imaginação”. Participaram também num programa sobre
vídeo e cinema na Rede Bandeirantes, em São Paulo, em 1988, apresentado por
Serginho Café. Exemplos que atestam que existia uma intensa atividade de fãs,
ao contrário do que defende os autores do Almanaque.
[7] Escrevi
uma história dos fãs da série no Brasil, de 1982 a 2006, “Os fãs de Jornada nas
Estrelas no Brasil”, em http://www.scarium.com.br/artigos/simao02.htm.
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